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HISTÓRICA

1.4 A BRINCADEIRA DE BARALHO COMO FORTALECIMENTO DOS ESPAÇOS DE CONVIVÊNCIA

Em uma visita despretensiosa, já que eu não havia agendado nenhum encontro específico, cheguei até a casa de Cosme (pescador profissional e sujeito de nossa pesquisa) para um simples bate-papo. Durante a conversa, olhei para a pracinha e vi um aglomerado de homens, formando dois grupos sentados e outros em pé. Perguntei a Cosme do que se tratava aquele movimento e ele me respondeu que era um jogo de baralho realizado aos domingos.

Quando aproximei daquele movimento, encontrei vários sujeitos que, em momentos anteriores, contribuíram com nossa pesquisa, como o Sr. Carlinhos, o presidente da associação dos moradores, um pequeno agricultor, assim como outros que passaram a fazer parte deste trabalho. Um deles nos deu a narrativa abaixo, quando perguntado sobre do que se tratava aquele jogo:

Tem anos que jogamos aqui. Só para você ter uma ideia, eu era criança e meu pai já jogava. Ele me trazia. O início até que eu gostava, né?! Aquele negócio de jogar a carta rodando, batendo e virando a carta, as gozações. Mas aí eu fui crescendo e eu ficava doido era pra tá com os outros meninos na beira do rio. Aí depois de adulto, voltei a jogar (Jierlys Bis – morador da comunidade).

Todos os domingos, a partir das 8h 30min., os moradores, em sua maioria homens que vivem do cultivo ou criação de gado leiteiro se reúnem na pracinha – Figura 1 – para jogarem baralho, especificamente o famoso e tradicional “Três Setes”. A princípio, quem participava eram apenas os descendentes das famílias tradicionais, aquelas que foram primeiras a chegarem na margem do Rio do Norte, porém o que se tem hoje é uma mistura de jogadores de diferentes origens familiares.

Figura 5 - Moradores no jogo de três setes aos domingos Foto: Alberto Cabral

Ali, algumas vezes, os jogadores assam carne, e todas as vezes falam de futebol, fofocam e tiram sarro dos supostos “vacilos”. Porém, um fato interessante é que quando perguntados, de forma individual, sobre o que aqueles momentos representavam para eles, todos, sem exceção, diziam que era muito bom estar naquele lugar e, com aquelas pessoas já que descontraiam um pouco, tiravam o estresse de uma semana corrida de trabalho. Outras arriscavam a dizer que quando acabava o domingo e entrava a semana de trabalho, ficavam contando os dias para chegar aquele momento de lazer.

Outro aspecto interessante é que o momento se torna ímpar, no sentido de os pequenos agricultores estabelecerem um diálogo para se discutir formas variadas de aumentar a produção, por meio de combates a pragas, uso de fertilizante, controle de capim etc. Já aqueles que vendem sua mão de obra, indicam trabalho, falam sobre defeitos e qualidades de seus patrões, trocam experiência para maximizar a produção e, ainda, minimizar o desgaste físico, já que geralmente trabalham por empreitada.

Todos esses espaços criados pela comunidade representados pelo território e pela cultura local, construído cotidianamente, constituem em modos de vida e produzem existências e visão de mundo. Os moradores representam a re-existência da população ribeirinha ao

processo de dominação instituído pela racionalidade ocidental. Cada elemento que constitui a Comunidade Patrimônio do Bis acaba por determinar um espaço de vivência próprio, traduzindo assim, aspectos relacionados a re-existência, manifestados materialmente pela organização territorial, fortemente ancorada na organização espacial de quiosques e, imaterialmente pela importância dada ao catolicismo, aspecto que orienta todos os demais elementos materiais e imateriais da cultura, como a relação com água, a terra e a religiosidade por meio da celebração que ocorre nas festas de cultos aos santos católicos.

Para os ribeirinhos, o significado da água está associado à sobrevivência, característica comum a todos os membros da comunidade. Portanto, a comunidade se configura como um espaço de produção coletiva, de socialização e, sobretudo de espaços de convivência. Dessa forma, esse conjunto de fatores nos leva a fazer uma leitura do potencial que carregam as narrativas desses sujeitos para a educação ambiental, como um novo campo de atividade e de saber que busque reconstruir a relação entre a educação, a sociedade e o meio ambiente, visando formular respostas teóricas e práticas aos desafios colocados por uma crise socioambiental global, que culmine na “renovação do código de valores dominante na sociedade no sentido da construção de uma nova ética que valorize não apenas a vida humana, mas a vida não-humana” (Lima, 2004, p.94).

Portanto, entendemos que estes aspectos acabam caracterizando as manifestações socioculturais, como um espaço para a re-organização e fortalecimento desse grupo marginalizado em face da racionalidade que desconsidera qualquer forma de conhecimento e modo de vida que não seja semelhante ao dos centros urbanos.

Observar os ribeirinhos do Patrimônio do Bis, mesmo superficialmente, como processo sociocultural, é considerar toda sua dimensão enquanto fenômeno social concreto de re- existência da população ribeirinha e de seus descentes ao sistema capitalista. É considerar os ribeirinhos como sujeitos sociais e que, portanto, se encontram em permanente processo de elaboração e reelaboração de seu papel na sociedade contemporânea por meio da elaboração de diferentes mecanismos para consolidar o processo de construção do reconhecimento da peculiaridade local. Como se observa a narrativa de um dos moradores durante uma partida de “Três Setes”:

...tão falando aí que vão reconstruir nossa pracinha. Já vieram e mediram, de novo. Todo ano eleitoral é assim. Chega aqui, promete um monte de coisa e somem. Mas dessa vez vai ser diferente. Vamos pegar eles pelo pé. Vai ter que deixar a pracinha pronta (Sr. Carlinhos - Morador da comunidade).

Tal narrativa revela uma real preocupação pela melhoria da estrutura da Comunidade do Patrimônio do Bis, já que não é mais satisfatório as ruas limpas. Também querem as ruas calçadas, ou seja, exigem melhorias em nível de espaços privativos de cada unidade familiar (moradias), mas também por espaços coletivos.

Portanto, depreende-se que tal narrativa, dialoga com Lima (2004, p. 91), ao afirmar que,

Entende que há agentes econômicos, países, classes sociais e setores produtivos que inegavelmente infringiram e continuam infringindo danos de maior magnitude ao ambiente e que deveriam oferecer contribuição diferenciada na superação desses problemas (LIMA 2004, p. 91).

Com isso, entende-se que os ribeirinhos também fazem essa mesma leitura da relevância da participação política para melhoria da pavimentação da comunidade local.

2 APONTAMENTOS SOBRE OS GTs 18 (EDUCAÇÃO DE JOVENS E