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A busca pelas imperfeições do cinema

No documento Ver, ouvir e ler os cineastas (páginas 130-135)

de um Panorama Artístico

JOURNAL, DE JONAS MEKAS

4. A busca pelas imperfeições do cinema

Antes mesmo de ser reconhecido como cineasta, de haver criado a Film Culture e escrito para o Village Voice, Mekas já filmava. Poucos meses depois de chegar aos EUA como exilado, em 1949, e com um empréstimo de 200 dólares, Mekas conseguiu comprar sua primeira câmera, uma Bolex 16mm. Não seria a primeira vez que registrava algo em fílmico nos EUA, mas era pelo menos o início de um novo caminho. Como ele próprio comenta,

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estivemos filmando muito. Entenda o que isso significa, em nosso caso, não tenho que lhe dar longas explicações. Em Hollywood é muito mais simples: se faz com dinheiro. Lá não há problemas que o dinheiro não possa resolver. Mas nós estamos tentando fazer com nossos últimos mi- seráveis centavos nos poucos minutos que temos disponíveis. A maioria das pessoas aqui pensa que estamos loucos. Dizem que o cinema nos deixou loucos (...) e sim, além disso, se sonha ser artista, então o único modo de fazê-lo é tornar-se louco. (Mekas, 2008: 300, minha trad.). Entre esses primeiros passos de um exilado que resolveu registrar o seu cotidiano nos subúrbios de Nova York e o cineasta que se tornou referência pelos seus filmes-diário muitos anos depois, existem os seus textos na revis- ta Film Culture e no jornal Village Voice. Mekas conseguiu unir a teoria com a prática, fazendo com que as suas publicações se tornassem um campo de gestação de ideias e conceitos que, mais tarde, seriam aplicadas na sua obra cinematográfica. Em muitos textos que escreveu na coluna Movie Journal, ele evidencia o quanto é partidário de um cinema amateur, um cinema “que não tem medo de parecer feio, que ousa dar as costas para a arte” (Mekas, 2013m: 72). No artigo A linguagem mutante do cinema (1962), Mekas extrai dos ruídos, das falhas técnicas, uma atitude para ressignificar ao próprio cinema.

Mesmo os erros, os planos fora de foco, os planos tremidos, os passos inseguros, os movimentos hesitantes, os pedaços superexpostos ou su- bexpostos fazem parte do vocabulário. As portas para a espontaneidade se abrem; o ar viciado do profissionalismo rançoso e respeitável esca- pa. (...) O insignificante, o efêmero, o espontâneo são as passagens que revelam a vida e que possuem todo o entusiasmo e a beleza. (Mekas, 2013m: 72).

Não por acaso, anos depois do seu início como colunista no Village Voice, Mekas fez filmes-diário que se tornaram referência na história do cinema de não-ficção, como Walden (1964-1969), Lost Lost Lost (1976), a partir de imagens caseiras nas quais registrava a si próprio, sua família, os seus ami-

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gos e os lituanos exilados nos EUA. Com uma Bolex 16mm, Mekas fez das imperfeições dos seus registros e das falhas técnicas da câmera uma forma para potencializar uma construção estética, como ele próprio afirmou ao se referir às filmagens que fez em Reminiscences of a Journey to Lithuania (1971-1972).

Quando comecei a filmar, descobri que a minha nova Bolex não era de forma alguma idêntica à antiga. Ela era, na verdade, defeituosa, nunca mantinha uma velocidade constante. Eu a ajustava em 24 quadros (por segundo), e após três ou quatro cenas ela estava em 32 quadros. Você tinha de olhar constantemente para o mostrador, porque as velocidades de quadros por segundo afetam a iluminação, a exposição. E quando finalmente me dei conta de que não havia jeito de consertá-la ou de fixar a velocidade, decidi aceitar e incorporar o defeito como um dos recursos estilísticos, usar as mudanças de luz como um meio estrutural. (Mekas, 2013n: 137).

Mekas construiu sua trajetória em conjunto com uma geração de cineastas americanos que já não viam em Hollywood um parâmetro para construí- rem as suas obras. Com filmes de baixo orçamento, muitos deles feitos com câmeras portáteis e sem a necessidade de locações ou de uma equipe téc- nica por trás, o cinema realizado a partir de imagens caseiras afirmou-se como uma busca por novas formas narrativas ou inventividades estéticas. Os seus textos no Village Voice procuram mostrar a convicção de que “o cinema foi liberado do ‘regime’ de Hollywood. O realizador está livre das técnicas ‘profissionais’, dos temas de Hollywood, das rotinas de argumento, da iluminação de Hollywood” (Mekas, 2013c: 219, minha trad.). Mekas nos leva assim para um caminho onde o cinema amateur libera o realizador de uma busca pela precisão e perfeição técnica.

Justamente por apoiar e realizar esse tipo de filmes que seguiam a contra- corrente do cinema dos estúdios hollywoodianos, Mekas utilizou o Movie Journal para criticar o sentido pejorativo empregado na palavra amateur dentro do meio cinematográfico. Ele partia do entendimento de que “a mais

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bela poesia cinematográfica será revelada algum dia pelo cinema caseiro de 8 mm; poesia simples, com crianças sobre a grama e criaturas nos braços das suas mães. (...) Há poesia nos filmes caseiros” (Mekas, 2013o: 156, mi- nha trad.).

Para Mekas, porém, também não bastava que esse cinema amateur fosse reconhecido somente dentro de nichos relacionados ao cinema experimen- tal ou de vanguarda. Muitos dos seus textos revelam o descontentamento pela indiferença da grande mídia e até mesmo de jornais underground em relação àqueles filmes de baixo custo. Em textos como Por que estou escre- vendo este artigo (1969), ele afirma que “um grande número de bons filmes de baixo orçamento estreiam em Nova York a cada semana, muito mais que os filmes de grande orçamento, e ninguém sabe. É pedir muito à imprensa que informe o público sobre “todos” os filmes que estreiam em Nova York?” (Mekas, 2013p: 397, minha trad.).

Partindo dessa falta de espaço na grande mídia é que Mekas passou não somente a escrever sobre esse cenário, mas também a atuar sobre ele, ao se tornar um dos mentores na criação do New American Cinema Group (1960), composto por um grupo de cineastas que buscava afirmar tanto o novo ci- nema americano, como também uma nova forma de produção e distribuição dos seus filmes.

Nesse processo, tanto a Film Culture como o Movie Journal foram impor- tantes para divulgar as posições do grupo. No ano de 1961, foi publicado, na edição número 22-23 da revista Film Culture, o manifesto Primeira Declaração do Novo Cinema Americano. Tratava-se de uma declaração de intenções, assinada por Jonas e Adolfas Mekas, entre outros 1, em que se buscavam

formalizar as posições do grupo de cineastas que começava a despontar

1. Os demais cineastas que assinaram este manifesto foram Lionel Rogosin, Peter Bogdanovich, Robert Frank, Alfred Leslie, Edouard de Larout, Ben Carruthers, Argus Speare Juilliard, Emile de Antonio, Lewis Allen, Shirley Clarke, Gregory Markopoulos, Daniel Talbot, Guy Thomajan, Louis Brigante, Harold Humes, Bert Stern, Don Gillin, Walter Gutman, Jack Perlman, David C. Stone, Sheldon Rochlin e Edward Bland.

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no cenário nova-iorquino. No texto, formulava-se uma série de proposições estéticas e administrativas que confrontavam o cinema com apelo mais co- mercial americano e mundial.

Num dos fragmentos, o grupo afirma que “se o Novo Cinema Americano tem sido até agora uma manifestação inconsciente e esporádica, sentimos que chegou a hora de nos unirmos. Somos muitos (...) e sabemos o que deve ser destruído e o que defendemos” (Mekas, 2013q: 32-33). Por trás dessa proposta que transitava entre um caráter combativo e idealista – como grande parte dos novos cinemas que surgiram nos anos 1960 pelo mundo –, existia pela primeira vez, no cenário do cinema underground americano, o desejo de se realizar uma ação conjunta que buscasse entrar num embate com entidades e estúdios que construíam o sistema industrial americano.

Ao nos unirmos, queremos deixar claro que há uma diferença básica entre nosso grupo e as organizações, tais como a United Artists. Não estamos nos unindo para ganhar dinheiro. Estamos nos unindo para realizar filmes. Estamos nos unindo para construir o Novo Cinema Americano. E o faremos com o restante dos Estados Unidos e com o restante da nossa geração. (...) Não queremos filmes falsos, polidos, lisos – os preferimos ásperos, mal acabados, mas vivos; não queremos filmes cor-de-rosa – os queremos da cor de sangue. (Mekas, 2013q: 35). A afirmação desse grupo também passava pela atuação de Mekas como mediador desse processo, na medida em que ele se tornou um dos cria- dores de entidades como Film-Makers Cooperative (1962), Film Culture Non-Profit Corporation (1963), Film-Makers Cinematheque (1964), Film- -Makers Distribution Center (1966), além da referencial Antology Film Archives (1969), que se tornaram fundamentais para a consolidação e a preservação da memória dessa nova geração de cineastas. Como afirma David James,

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sem a Film Culture, a Film-Makers Cooperative e a Anthology Film Ar- chives, nas quais ele desempenhou um papel importante, a elaboração social das renovações perceptivas e imaginativas fornecidas ao indiví- duo pelo novo filme teria permanecido um sonho. (James, 1989: 100, minha trad.).

Por meio de uma atuação não somente nos seus textos, como também nas entidades e nas medidas criadas para firmar este novo cinema americano dentro de um contexto cinematográfico mais amplo, Mekas construiu o seu espaço no cinema norte-americano. Seja através das posições tomadas na Film Culture e no Movie Journal, seja na sua atuação administrativa como co-criador do New American Cinema Group, da Film-Makers Cooperative e da Anthology Film Archives, ele fez desse contexto um campo de afirmações sobre as suas convicções estéticas e cinematográficas.

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