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6. ANÁLISE E DISCUSSÃO

6.1. Usar ou não usar, como me explicar?

6.1.1. Repertórios utilizados para justificar o uso de próteses auditivas

6.1.1.2. Em busca da prevenção e auto-cuidado

Neste repertório, destacamos trechos de conversas nos quais os entrevistados associam o uso da prótese auditiva a uma forma de prevenção de problemas futuros e de cuidado consigo mesmos. Expressões como “tenho que cuidar de mim” e “eu me gosto” são utilizadas para realçar essa idéia, como mostram os trechos abaixo.

Trecho 1

L: E o que a sra. pensa, D. Zilá, sobre aparelho auditivo?Em geral?

Z: O aparelho auditivo é uma ajuda, não é mesmo? Pras pessoas que tá com deficiência. Então, eu até bem pouco tempo eu não dava muita importância pro aparelho, quando eu... .as várias vezes que eu fiz (audiometria), aliás, só uma vez, a última vez é que eles falaram que eu precisava colocar um aparelho. Mas, até então, diz que era a idade, e tal, que a gente perdia a audição mesmo. Mas na última vez é que falaram pra mim que... e eu fui percebendo também, né? Principalmente no telefone e....em casa. Mesmo agora, que ontem, no meu aniversário, fui à missa, saí depressa e esqueci os aparelhos, eu tive dificuldade, pois tive que concentrar muito pra mim poder ouvir. Aí eu percebi que tá valendo a pena o aparelho. Valendo a pena mesmo.

L: E antes da sra., é... descobrir que tinha perda de audição, antes de ter o aparelho, a sra. sabe se a sra. pensava alguma coisa sobre o aparelho, já tinha alguma noção? O que a sra. entendia por aparelho auditivo?

Z: Não, porque quando eu comecei a perceber que....que tava assim, não tava ouvindo bem, falei: “Uai gente, assim como a gente precisa de óculos também pode precisar do aparelho”,

né? Já que tem o aparelho, né? Então eu pensei de a gente procurar né, porque....é ficar assim e, e....como eu sou uma pessoa ativa e pode piorar mais, né? Porque se eu soubesse que não fosse piorar, às vezes nem teria colocado o aparelho, né? Mas a gente sabendo que a tendência é piorar mais, aí eu falei, “não, eu tenho que cuidar de mim.”(Zilá)

Trecho 2

L: E por que que ouvir é tão importante pra sra., D. Iara?

I: Ah, porque a gente comunica mais, a gente aprende mais e... Ah, como eu me amo desde que nasci, né, eu fui uma pessoa que eu gosto de mim, né, era pequena, já me arrumava pra

escola, sou um pouquinho vaidosa, sempre fui porque eu me gosto. Então ouvir, eu dô graças à Deus porque eu ouço bem com o aparelho. Eu tenho cinqüenta por cento de falta,

né? Mas melhorou bastante. (...)

L: E o que que a sra. pensa dessas pessoas que usam aparelho, D. Iara? O que que a sra. acha dessas pessoas?

I: É uma pessoa caprichosa, né, consigo mesma, né? Ah, eu..., né, num tinha motivo,

porque eu conversando com você tô sem aparelho (aparelhos haviam sido enviados para

revisão de rotina em São Paulo). E pela boca a gente...teve um dia que uma mulher que tava fazendo uma palestra na igreja, e ela tava com o telefone (microfone) na boca eu não entendi nada. Porque tava longinho e ela com o...

L: Microfone?

I: Microfone na frente da boca, eu num senti nada do que ela falou. (...)

L: Aí a sra. então, é...via outras pessoas com o aparelho. I: Via, via.

L: E o que que a sra. achava dessas pessoas com o aparelho? Antes da sra. ter o da sra.?

I: Ah, eu achava que era uma pessoa dedicada, né, a si, né, que usava o aparelho porque

tava precisando, podia usar, né? Apesar que hoje acho que tudo é caro, né?

(...)

L: E por que que a sra. decidiu usar o aparelho auditivo então, D. Iara?

I: Porque e eu queria uma melhora. Se eu tenho chance de ter uma coisa melhor pra mim,

claro que eu vou. (Iara)

Pelos relatos acima, podemos perceber que, para estas pessoas, usar a prótese auditiva significa cuidar de si. Observamos ainda que, para elas, o uso do aparelho funciona quase que como um recurso preventivo. Isso fica claro quando dizem que “se soubesse que ia piorar, às vezes nem teria colocado o aparelho” e “eu num tinha motivo (para usar o parelho), porque conversando com você eu tô sem o aparelho”. Esses trechos mostram que uma importante função do uso da prótese, para estas pessoas, é tentar impedir que o problema se agrave.

É importante ressaltar ainda que essa idéia do uso da prótese como algo que irá prevenir a piora da perda de audição não é algo que foi ressaltado pela fonoaudióloga durante o processo de adaptação, já que sabemos que o uso da prótese não necessariamente impedirá uma piora dos limiares auditivos. Entretanto, essa parece ser uma crença, principalmente da D. Zilá, e vemos, em um trecho subseqüente, que ela reafirma essa crença através do relato da escuta de uma conversa na sala de espera, mostrado a seguir:

Z: Às vezes eu nem tivesse procurado, mas a gente fica sabendo, conversa com uma pessoa ou outra, aí, fica sabendo que a tendência era piorar mais, né? Aí eu falei, “O jeito é usar”,

né?

L: Então, o que motivou a sra. a usar principalmente foi o medo de que piorasse mais?

Z: Piorasse, que eu não ouvisse mais, né? Cê ficar uma pessoa de idade aí, sem ouvir o que os outros tá falando. Ah não, não vale a pena, não né?

L: E por que não vale a pena, por que que é ruim?

Z: Uai, porque a gente, sem poder participar, não é mesmo, de ouvir, deve ser muito triste.

Porque, inclusive um dia eu tava lá no seu consultório, lá tinha uma senhora, ela falando que começou a usar o aparelho e depois parou. E a filha dela falando numa altura e ela falando que ela não tava ouvindo nada, que ela piorou muito depois que ela parou de usar o aparelho. Aí eu tirei a conclusão que tem que usar mesmo. Se quer ouvir, né? Tem que usar, não é mesmo? Né? (Zilá)

Este relato nos faz refletir a respeito da produção de sentidos existente nas conversas do cotidiano. A forma como a D. Zilá significou para si essa conversa e a imagem da pessoa falando alto a fez pensar na importância de se usar a prótese auditiva. O medo de perder a possibilidade de se relacionar com as pessoas a fez decidir usar a prótese. Para ela, essa conversa funcionou como fator decisivo no uso da prótese, o que não necessariamente aconteceu para as outras pessoas que estavam na sala de espera, ouvindo a mesma conversa. Menegon (2004) afirma que a diversidade de sentidos que podemos encontrar em uma mesma conversa nos auxilia a compreender a riqueza dessa forma corriqueira de comunicação, bem como o seu caráter de construção social.

Através deste repertório, as pessoas tentam passar ao outro a idéia de que são cuidadosas consigo mesmas, que se valorizam e por isso procuram prevenir problemas futuros utilizando os recursos que lhes são oferecidos. O uso deste repertório também ajuda a combater uma visão do indivíduo como alguém que realmente necessita do aparelho por ter uma deficiência auditiva significativa. Desta maneira, ele ajuda a minimizar o possível estigma relacionado à deficiência auditiva e ao uso de prótese auditiva, já que o entrevistado se coloca como alguém que usa, mas não precisa ou usa para se prevenir de um problema futuro.

Erler e Garstecki (2002) afirmam que muitos adultos negam a perda auditiva e rejeitam a amplificação, em parte, por causa do estigma que a deficiência auditiva traz consigo. Costa

(2006) realizou um estudo no qual investigou os sentidos de deficiência auditiva e do uso de próteses auditivas para idosos. Verificou que ao deficiente auditivo foi atribuído um sentido negativo, sendo este visto como uma pessoa menos capaz. A autora ressalta que a deficiência auditiva tem um potencial de estigmatização do sujeito.

Com relação ao repertório do uso da prótese apenas com um objetivo futuro, qual seja, o da prevenção, e, portanto, sem fornecer benefícios imediatos, como melhora da audição e da compreensão, pensamos que tal justificativa possa causar estranheza às outras pessoas, já que estes deveriam ser os objetivos principais de quem decide usar uma prótese auditiva. Dessa maneira, este repertório pode parecer frágil. Então, para combater essa possível impressão e fragilidade, os indivíduos precisam mostrar que as próteses também trazem os benefícios tidos como imediatos e principais, como veremos no repertório seguinte.