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Diferentemente de teorias sociológicas que têm como base o estudo de comportamentos socialmente desviantes, estamos nos referindo ao termo “desvio” não como algo negativo. Nossa ideia não é classificar certos comportamentos como anormais, anômicos, ou patológicos. Ou seja, aqueles que fogem da norma e devem voltar a ser integrados.

Encontramos este modo de análise em abordagens funcionalistas ou positivistas. Sociologicamente, foi Émile Durkheim quem sistematizou, na perspectiva teórica funcionalista, o comportamento normal e o seu oposto, o patológico. Para este autor, a saúde está ligada à perfeita adaptação do sujeito ao meio e, consequentemente, a doença é tudo que perturba esta adaptação. A ideia de Durkheim sobre normalidade está diretamente relacionada ao estado de saúde, conforme seu método de análise, que comparava a sociedade a um organismo vivo, como

um sistema integrado. A falha de um elo deste sistema comprometeria a saúde e o adequado funcionamento do todo social.

Segundo este autor, ao se observar a sociedade, é possível verificar a existência de duas ordens de fatos sociais que são opostos: “os que devem ser e aqueles que deveriam ser diferentes daquilo que são, os fenômenos normais e patológicos" (DURKHEIM, 1986, p. 43). A noção do fenômeno que “deve ser” traz, de modo subjacente a ideia de um modelo naturalizado, no lugar de histórico e socialmente construído, o mesmo ocorrendo com “os que deveriam ser e não são”. Neste sentido, normal, para ele, seria um fenômeno que se repete de forma genérica na maioria da população, em determinado contexto social. Em contrapartida, o que difere desta generalização é considerado doença, ou seja, um comportamento patológico (DURKHEIM, 1968).

Em uma concepção totalmente oposta à Durkheim situa-se Foucault. Seguindo uma direção quase contrária, Foucault (2002) não considera a doença algo necessariamente a ser evitado. Ou seja, ele concebe o patológico ou a doença não como uma essência contra a natureza da "normalidade", mas sendo a própria natureza desta normalidade. Ao doente, o diferente ou o desviante são conferidos outros sentidos. Ou seja, ele desnaturaliza a ideia do que seria considerado “normal”, concebendo-a como um fenômeno histórico, socialmente construído e mostrando que é a própria normalidade que cria o desvio.

No advento das sociedades burguesas é onde Foucault localiza o desvio, no contexto de uma nova tecnologia de poder: o poder disciplinador. A norma, na medida em que intervém na realidade social como um dispositivo classificatório e de controle, faz surgir os comportamentos desviantes. Os que fogem ao processo de normalização tornam-se o alvo das ações de readaptação e inclusão. Em suas palavras:

Enfim, vê-se que não se trata de uma demarcação definitiva de uma parte da população. Trata-se do exame perpétuo de um campo de regularidade no interior do qual julgar-se-á sem trégua cada indivíduo para saber se ele é conforme a regra, a norma de saúde definida (FOUCAULT, 1997, p. 43).

É desta perspectiva foucaultiana que gostaríamos de enfatizar a possibilidade de considerar o “anormal” como uma experiência de criação, como uma experiência de ser outro e o desvio como uma vivência de algo novo, como sinônimo de não repetição da norma e, sim, como uma fuga das regras preestabelecidas.

Ao longo das narrativas conseguimos identificar que os espaços de resistência vão sendo construídos no interior das famílias e se alargam para um território mais amplo, tal como procuraremos demonstrar no decorrer das nossas análises.

A história de Cláudio nos surpreende. Cláudio foi alfabetizado (aprendeu a ler, escrever e contar) com seus pais, ajudando-os no trabalho. “Minha mãe é analfabeta; meu pai analfabeto; não me pergunte como ela me ensinou a fazer conta e escrever. Eu não sei. Mas ela me ensinou” (Cláudio). Escapando das séries iniciais da escola, Cláudio se beneficia das

estratégias criativas desenvolvidas por sua família. Os pais, excluídos de um processo de formação escolar, encontraram meios de sobreviver em um mundo letrado.

Seus pais migraram do interior para João Pessoa e as precárias condições da vida urbana os levaram a viver em uma área de invasão; em seguida, em um abrigo e, depois, conseguiram uma casa na São Rafael. Eles são considerados analfabetos por não terem frequentado a escola. O pai é ajudante de pedreiro e a mãe é doméstica, mas cuida de uma “barraca” que funciona na frente da casa. Esta barraca existe desde que Cláudio era criança.

Com incentivo da família, Cláudio, desde pequeno, construiu caminhos para não repetir a história de seus pais. Cláudio ressalta os aprendizados do “mundo da vida” ou da “escola da vida”. De alguma forma, para além dos muros da escola, seus pais constroem vivências criativas para lidar com a realidade das contas e das letras e ainda ensinam tais estratégias para o próprio jovem, o que nos parece certo “desvio” à norma dos processos sociais de escolarização. No entanto, a formação vivenciada acaba sendo um caminho alternativo que

vai seguir na mesma direção convencional. Parece se tratar de uma preparação que se antecedeu à adaptação à norma, tanto da alfabetização como da inserção na instituição disciplinadora.

Ela não estudou; meu pai não estudou. É...eles não estudaram, mas é aquela

história da vida; eles foram aprendendo e tal; aí lá em casa a gente...depois

que minha mãe conseguiu construir a casinha, a casa na invasão, ela montou uma barraquinha de vender cereal, essas coisas. Aí, a gente conta. Desde criança os três lá em casa tinham que fazer conta (Cláudio - grifo nosso).

Assim como Cláudio, Rita procura quebrar o círculo reprodutor das condições de exclusão que envolve as camadas populares e, portanto, os jovens pobres:“porque meu pai é encanador e minha mãe lavadeira, eu não preciso ser” (Rita).Como as narrativas indicam, no

âmbito da instituição familiar, estes jovens atuam no sentido de fuga do poder normalizador. Procuram redirecionar a trajetória de vida que, por princípio, este poder determinaria para eles.

Observamos nessas narrativas situações já referidas por Takeuti (2012). Na sua percepção, quando trata dos paradoxos vivenciados pelas juventudes na atualidade, ela se refere ao fato de que eles se sentem “mais inteligentes do que os seus pais”, na medida em que têm a chance de vivenciar um maior tempo de escolaridade e dominar as ferramentas informacionais. Não obstante, quase sempre isto não vai significar uma inclusão efetiva na sociedade de consumo, em face das limitações que vão sendo tecidas pelas desigualdades. Paradoxalmente, no entanto, é possível detectar que jovens de periferia “se movem, ativamente, bem mais que na década anterior, para encontrar caminhos inventivos de inclusão e/ ou de participação social e política, através de redes sociais e outras atividades alternativas” (TAKEUTI, 2012, p. 429/430).

Nesta mesma direção, Márcia e Rita vivenciam situações de estranhamento em seu grupo familiar. Elas dizem que são vistas como estranhas por seus familiares. Márcia afirma que tem primos da sua mesma idade, que logo largaram a escola por questões de sobrevivência material. Ou seja, praticamente reproduziram a trajetória de seus pais. Ela diz: “meus primos

não entendem como eu faço francês na Aliança Francesa” (Márcia). A jovem afirma que, por vezes, é tida como “sonhadora” ou “alguém que está fora da realidade”.

Já Rita afirma que seu pai não compreendia como ela já tinha quinze anos e não trabalhava, pois priorizava os estudos.“Ele me chamou de vagabunda! Eu não sou vagabunda. Eu gosto de me destacar”. Aparentemente seu pai, pelas condições de pobreza e pela internalização do sentimento de impotência que estas condições podem gerar, tende a estimular a reprodução das suas próprias condições de vida. Rita nos disse que entende seu pai, pois ela vive sua juventude de forma diferente da que ele viveu. Ela, por iniciativa própria e por experiências coletivas que vivenciou na comunidade, investiu mais tempo nos estudos formais. Ao mesmo tempo, integrou-se a grupos de educação não formal. Rita é conhecida como alfabetizadora dentro da comunidade de São Rafael e tornou-se uma referência para outros jovens. Ela diz: “aqui na comunidade eles pedem para que eu ensine [alfabetize] para que eles possam tirar a habilitação” (Rita). Já a mãe dela sempre lhe alertou sobre a importância de estudar.

Isso minha mãe sempre disse: vocês tem que estudar pra ser alguém na vida. Então, eu quero ser alguém na vida, eu preciso estudar, né? [...]Pra mim a Universidade foi muito útil nesse processo e nesse processo de disseminar a Universidade na comunidade, porque a Universidade ela é muito elitizada, né? Já tenho especialização, mas não vou parar. Vou fazer mestrado, doutorado. Um dia vou conseguir” (Rita).

Rita rompeu, de certa forma, com o que estava previsto para a sua juventude. Inclusive nos conta da quantidade de amigas que não puderam compartilhar de vivências semelhantes e que não estão ao seu lado. Suas amigas seguiram os caminhos ditados por seus familiares que, por sua vez, são reflexos de discursos presentes na sociedade.

Helder é o único da sua família que concluiu o ensino médio e agora está cursando Economia. Em suas narrativas, expõe: “a gente aprende a ver o novo, a gostar do novo e não

querer mais o velho” (Helder). O jovem se refere às novidades que encontrou na universidade

e em João Pessoa. Helder gostaria que outros jovens do município de Zabelê pudessem sonhar como ele sonha. Ele nos contou que muitos colegas não acreditam que possam sair de Zabelê e alçar voos mais altos. Diz que sair de Zabelê não é “fugir da cidade”, mas sim, sair para voltar e poder contribuir com a vida dos moradores de lá. Curiosamente, como já mencionado anteriormente, o nome da cidade refere-se a um pássaro chamado Zabelê, típico da região. Este pássaro, já em extinção, não gostava de voar, preferia andar no chão.

Helder nos contou que sua família tem dificuldade de compreender o seu cotidiano, pois, diferentemente do pássaro, o jovem vive “voando” por outras cidades da Paraíba. Como já vimos no capítulo 5, ele mora em João Pessoa, mas participa de um coletivo chamado “Atissar”, que reúne jovens de várias cidades diferentes. Ele nos contou que as famílias dos jovens do coletivo “Atissar”, assim como a sua, ficam sem entender a dinâmica de vida deles. E, por isto, uma vez por ano eles organizam um encontro para os pais, onde apresentam todas as ações desenvolvidas pelo coletivo. Segundo Helder “é uma maneira de esclarecer o que a gente faz e de justificar nossa ausência em casa”.

As manifestações de resistência que fazem com que esses jovens não se integrem totalmente aos processos de controle de suas vidas têm uma base em práticas associativas. Estas práticas coletivas devem contribuir para a elaboração de outras subjetividades que abalam a lógica do processo formativo desenvolvido nas suas famílias. As famílias, como sabemos, tendem a funcionar como uma potente agência normalizadora.