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Capítulo 1 – Histórias das escolas brasileiras: diálogos

1.3 Buscando pontos convergentes

Retomando as duas questões com as quais iniciei este capítulo – qual a importância de uma pesquisa sobre a história das escolas isoladas? e por que tentar compreender essa forma de escolarização e não a dos grupos escolares? – e considerando os principais aspectos que apresentei anteriormente, penso ser possível explorar alguns pontos a respeito das histórias das escolas primárias que vêm sendo escritas no Brasil, atualmente.

A partir da leitura da bibliografia relativa ao campo da história da educação e da história da escola que vem sendo produzida no Brasil, compreendi que a emergência dos estudos sobre a história das escolas isoladas se caracteriza como um movimento que decorre dos estudos sobre os grupos escolares no Brasil e se articula a esses estudos.

A tradição da pesquisa desenvolvida com a abordagem da Nova História Cultural proporcionou o estabelecimento de novas metas e propostas de pesquisa a respeito da história da escolarização primária no Brasil. Nos momentos de introdução dessa nova abordagem, especialmente a partir das pesquisas de Souza (1998) e Faria Filho (1997), os grupos escolares se situaram como um dos objetos de pesquisa mais evidentes, tanto pelo motivo de terem tido seus documentos preservados, quanto pelo fato de terem concretizado e carregado em suas histórias o conjunto dos ideários republicanos sobre aquilo que era considerado o ideal para a escolarização primária paulista e brasileira.

Em decorrência da consolidação das pesquisas sobre os grupos escolares no Brasil e da grande quantidade de pesquisas desenvolvidas sobre o tema, foi possível produzir um conjunto de conhecimentos teóricos a respeito dessas instituições e de suas configurações espaciais, geográficas, culturais, temporais, sociais e pedagógicas. Esses resultados de pesquisa, além de contribuírem para o preenchimento de lacunas no campo da história da educação, permitiram colocar em perspectiva os aspectos que foram explorados e aqueles que ainda precisavam ser explorados para avançar no debate sobre a escolarização primária, para o que Souza; Faria Filho (2006) problematizam elementos pertinentes sobre o acúmulo de conhecimentos em relação aos grupos escolares e a necessidade de explorar novas abordagens e novos objetos de pesquisa. Nesse movimento de avaliação dos conhecimentos que vêm sendo produzidos sobre o tema, a visão dos pesquisadores se aquilatou e emergiram os objetos de pesquisa que

foram secundarizados na história da institucionalização e da expansão da escola primária brasileira.

Os textos que apresentei indicam que no âmbito da produção acadêmica sobre a história da escola rural e sobre a história da escola isolada há um aspecto comum que decorre da própria documentação que os pesquisadores analisam no desenvolvimento da pesquisa: a tendência de as falhas das escolas rurais e das escolas isoladas serem supervalorizadas e o destaque de suas características negativas, para o que os grupos escolares são parâmetro.

Esse olhar negativo tem sido habitualmente utilizado para ver as escolas isoladas do ponto de vista da história da escolarização no Brasil, ou seja, de um ponto de vista longitudinal dessa instituição na história da escola brasileira. Mais do que uma ferramenta analítica, essa forma de compreender as escolas isoladas, marginalizadas desde sua implantação, tem conferido uma forma comum aos estudos sobre esse tema, isso porque as escolas isoladas não têm sido analisadas elas por elas mesmas, em suas especificidades, mas continuam sendo analisadas como um constante vir a ser.

A revisão bibliográfica que desenvolvi e apresentei anteriormente corrobora ao trazer à tona a necessidade de promover certo alargamento da importante posição que essas escolas assumiram na expansão do ensino público, de modo conjunto aos grupos escolares, às escolas reunidas, às escolas municipais e às escolas particulares. No processo de inserção de minha pesquisa nessa rede que vem sendo construída pelas pesquisas sobre as escolas primárias brasileiras, consigo dimensionar a existência das escolas isoladas não como locais em que se evidenciavam apenas as falhas como condições decorrentes das escassas condições materiais, físicas e geográficas, mas como locais que, por uma opção política republicana, eram deliberadamente secundarizadas em detrimento dos grupos escolares, "templos de civilização" (SOUZA, 1998) e "alicerces da pátria" (SOUZA, 2009).

Em contrapartida, as pesquisas que abordam a história das escolas isoladas têm como ponto convergente o destaque da função que essas escolas tiveram para a alfabetização de uma grande quantidade de crianças brasileiras que viviam em locais mais afastados dos centros urbanos ou nos espaços rurais e, apesar das dificuldades e das falhas, essas escolas existiram, funcionaram e alfabetizaram.

Em decorrência desses aspectos, considero que no processo de elaboração das políticas republicanas, a partir da tensão entre aquilo que era destinado para o espaço rural e aquilo que era destinado ao espaço urbano, foi construída a imagem de escola

isolada por parte de educadores, diretores, delegados de ensino, pensadores e administradores da educação, os quais divulgaram por meio de publicações oficiais e tematizações as suas representações a respeito dessas escolas. Essas publicações e tematizações, por sua vez, vêm sendo utilizadas como fontes para a escrita da história dessas escolas. Assim, os vestígios dos aspectos históricos e políticos que vêm alimentando e servindo de fonte para as pesquisas sobre a história da escola isolada paulista carregam essas marcas de negatividade e, por esse motivo, vêm corroborando no processo de construção e consolidação de certa imagem das escolas isoladas a partir da supervalorização de suas falhas.

Nesse jogo de relações para a construção da imagem das escolas isoladas, especialmente nas décadas iniciais do século XX, as políticas republicanas foram formuladas tendo como perspectiva o grupo escolar como a representação do espaço urbano e secundarizaram, nesse processo, a escola isolada – urbana e rural – pois ela representava o espaço rural.

A respeito das pesquisas que abordam a história das escolas rurais, a questão que se destaca se refere justamente aos limites e às tensões do próprio conceito de

escola rural abordado pelos pesquisadores. A categoria rural que adjetivava as escolas

parece ser pensada mais como uma condição geográfica, do que como uma condição organizacional de fato, que demandava programas pedagógicos específicos. A esse respeito, tanto a tese de doutorado de Ávila (2014) quanto os textos de Souza e Ávila (2013; 2014) são bastante incisivos no sentido de destacar que a escola primária rural foi se delineando em São Paulo como um espaço próprio e específico a partir da década de 1940.

A partir da análise desses autores, considero que as escolas rurais no período anterior a 1940 eram, portanto, escolas isoladas rurais e, com isso, indico a importância de identificar, analisar e esclarecer as diferenças entre as instituições que convencionalmente eram consideradas rurais apenas porque se localizavam no espaço geográfico rural e as escolas que eram de fato rurais porque partiram de uma proposta organizativa e pedagógica que lhes conferia o estatuto de escolas rurais, para o que considero especialmente as experiências de escolas rurais que foram desenvolvidas a partir da década de 1930. Essas distinções podem até assumir um tom de formalidade, mas se considerarmos que essa confusão conceitual tenha se originado da ausência de limites explícitos, a construção do sentido da escola isolada passa pela delimitação daquilo que essa escola era e daquilo que ela acabou por se tornar simbolicamente.

Pelo que constatei por meio da leitura dos textos que apresentei, tanto no estado de São Paulo quanto nos estados de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, as escolas isoladas urbanas parecem ter tido suas existências quase despercebidas, pois a escola isolada carregou o estigma de ser isolada independente de sua presença urbana, certamente em menor quantidade do que as escolas isoladas rurais. Do ponto de vista normativo, oficial e também do ponto de vista simbólico, a escola isolada era a escola rural e, portanto, as relações entre as políticas educacionais voltadas para o espaço rural e para o espaço urbano são pontos convergentes a partir dos quais as escolas isoladas têm sido analisadas nas pesquisas acadêmico-científicas.

Nesse ponto eu também situo esta tese; pensar a existência das escolas isoladas no bojo das políticas republicanas para a expansão da escolarização primária e considerar os grupos escolares e as escolas isoladas as principais instituições de disseminação da escolarização implica a problematização das questões que se referem às políticas voltadas ao rural e ao urbano, ainda mais quando tomo essas políticas do ponto de vista da secundarização das escolas isoladas em relação aos grupos escolares ou da hierarquização das instituições. O conjunto de conhecimento que vem sendo construído a respeito das escolas isoladas vem apontando para essa direção e a esse respeito, dialogo diretamente com os trabalhos de Souza (1998; 2009); Silva (2004); Gil e Caldeira (2008); Reis (2011); Vieira (2011); e Garnica (2011).

Além desses pontos de convergência, retomo como pertinentes as análises de Reis (2011) a respeito das escolas isoladas no estado do Mato Grosso e as de Silva (2004) a respeito das escolas isoladas no estado de São Paulo. De acordo com Reis (2011), as escolas isoladas viviam à sombra dos grupos escolares, e a interpretação de Silva (2004) é a de que as práticas educativas das escolas isoladas estavam à margem, à deriva, e essas instituições, consideradas pela autora como "ilhas de saber".

O ponto ao qual busco avançar com esta tese se situa nessas interpretações analíticas da escola isolada. Dentro do jogo de luz e sombra, conforme proposto por Reis (2011) e dentro da marginalidade, conforme proposta por Silva (2004) insiro minha interpretação de que as escolas isoladas e os grupos escolares funcionaram como principais instituições de ensino primário no estado de São Paulo de modo codependente. O grupo escolar, apesar de ser a instituição símbolo da modernidade, de veicular práticas essencialmente urbanas, não conseguia alcançar todas as crianças em fase de escolarização espalhadas na capital e no interior do estado – ouso problematizar/questionar se nos demais estados do Brasil não ocorreu dessa forma

também –, nos núcleos urbanos e nos núcleos rurais. Por esse motivo, as escolas isoladas serviam de meio de instrução inicial nos pequenos bairros e vilas que se formavam e/ou que cresciam em decorrência do aumento populacional, enquanto um grupo escolar não era instalado. Nesse sentido, os grupos escolares, isoladamente, não dispunham de condições estruturais e físicas para alcançar todas as crianças em uma determinada cidade ou região; e nesse ponto as escolas isoladas operavam na "retaguarda" dos grupos, ampliando o alcance dessas instituições para uma parcela da população que não conseguia ser atendida pelos grupos.

Isso não significa, porém, que as escolas isoladas e os grupos escolares visavam ao atendimento do mesmo grupo populacional ou que tinham a mesma organização pedagógica. Muito pelo contrário, como Souza (2009) e Ávila (2013) já analisaram, a divisão social da população passava pelas diferentes instituições escolares. Por esse motivo, considero pertinente pensar as escolas isoladas como instituições móveis que apoiaram os grupos escolares no atendimento escolar das crianças, como "células vivas", tomando de empréstimo a expressão de Oscar Thompson. Nesse sentido, penso que as escolas isoladas podem ser entendidas como funcionais e auxiliares no processo de escolarização paulista, mas ouso propor que foram também indispensáveis para a expansão da educação primária, principalmente pelo interior do estado de São Paulo, em conjunto com os grupos escolares, assim como com outras formas de escolarização, tais como as escolas reunidas, as escolas particulares e as escolas municipais.

Considero, portanto, que ter o movimento de expansão das escolas isoladas pelo estado de São Paulo como objeto de pesquisa, alçando as escolas isoladas ao estatuto de auxiliares dos grupos escolares nesse processo de disseminação da escolarização evidencia o quão pertinente e fértil é a problematização acerca dos limites dessa zona de tensões entre os grupos escolares e as escolas isoladas.

Como decorrência, optei por traçar o encaminhamento desta tese questionando as representações que inspetores e delegados de ensino elaboraram acerca das escolas isoladas, trazendo à tona alguns dos debates sobre as tensões nas políticas republicanas paulistas sobre a expansão da escolarização primária, discutindo, nesse processo, as opções políticas tomadas em favor do espaço urbano em relação ao espaço rural, pois considero que esse ponto convergente se evidencia como crucial para entender esse objeto de pesquisa e analisando, por fim, o movimento de expansão das escolas isoladas pelo estado de São Paulo.