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Capítulo II: Perspetiva Histórica do Processo Penal em Portugal

2.3. O Código de Processo Penal de 1929

O Código de Processo Penal de 1929, aprovado pelo Decreto n.º 16.489, de 15 de fevereiro de 1929, e que viria a vigorar durante mais de meia década, tal como era caraterístico nos Códigos da época47, traduziu-se numa verdadeira reforma da justiça processual penal portuguesa. Acentuando a procura da verdade material como fim mais importante do processo48, o CPP não se limitou a uma mera tarefa de compilação e

que, «para todos os efeitos, será considerado juiz de direito»”. Ora, “[o] que caracteriza o juiz não é o facto de ser licenciado em direito, mas a sua situação de independência e imparcialidade no exercício da função jurisdicional. Se o Governo vai buscar um juiz para chefiar uma polícia, a polícia não deixa de ser polícia, mas o juiz é que deixa de ser juiz para passar a ser polícia”. Cfr. FRANCISCO SALGADO ZENHA, Notas sobre a Instrução…, ob. cit., pp. 26 e ss..

45 FRANCISCO SALGADO ZENHA entende que “se a legislação republicana não deu ao juiz de instrução o seu verdadeiro nome – mas o, tecnicamente errado, de juiz de investigação criminal, porque a polícia é que investiga e o juiz instrui -, isso deveu-se ao facto de a designação de «juízo de instrução criminal» ter sido associada por João Franco a uma instituição vergonhosa e de triste memória, que se queria enterrar para sempre, incluindo o seu próprio nome”. Cfr. FRANCISCO SALGADO ZENHA, Notas sobre

a Instrução…, ob. cit., p. 41.

46 Cfr. MANUEL SIMAS SANTOS E MANUEL LEAL-HENRIQUES, Código de Processo Penal Anotado, I Volume…, ob. cit., p. 175; PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, A Reforma da Justiça Criminal…, ob. cit., p. 445.

47 Segundo ÁLVARO DA CUNHA GOMES RODRIGUES, a estabilidade desses Códigos era traduzida “pela referência aos três s: sintético, «scientifico» e sistemático, que eram características daqueles monumentos jurídicos”. Cfr. ÁLVARO DA CUNHA GOMES RODRIGUES, “Controlo garantístico dos direitos do arguido pelo Juiz de Instrução”, in Direito e Justiça, Vol. XIII, Tomo 3, 1999, p. 157.

48 Neste sentido, vide JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, ob. cit., p. 85; JOSÉ LUÍS LOPES DA MOTA, “A Revisão do Código de Processo Penal”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 8.º, Fasc. 2.º, Abril-Junho 1998, p. 164.

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sistematização do direito anterior49. Pretendeu, ao invés, “englobar, numa concepção unitária e ordenada, os princípios do direito processual penal e de os regulamentar dentro de um sistema essencialmente livre de contradições”50.

Porém, “movido pelo desejo de não entregar os arguidos, durante a instrução preparatória, nas mãos de uma magistratura dependente como a do Ministério Público”51

, o CPP acabou, na prática, por consagrar um modelo que representava um regresso ao processo de tipo inquisitório.

Na verdade, concretizando o alcance desta afirmação, importa ter presente que, além da competência para proceder ao julgamento, atribuiu-se ao juiz a competência para realizar a investigação fundamentadora da acusação52 (na terminologia do Código denominada de “corpo de delito”). No entanto, concluída a instrução (corpo de delito), era ao Ministério Público que incumbia a dedução da acusação, respeitando-se, assim, formalmente a conceção acusatória do processo.

Pois bem, não obstante a acusação pertencer ao Ministério Público, era o juiz que conduzia e dirigia a instrução preparatória, ordenando, no fim, ao Ministério Público que acusasse ou não acusasse. Veja-se, aliás, que o art. 346.º dispunha que quando o Ministério Público tivesse promovido que o processo se arquivasse ou aguardasse a produção de melhor prova, caso o juiz entendesse que havia elementos suficientes para o processo prosseguir, poderia determinar que os autos voltassem com vista ao Ministério Público para que este deduzisse acusação. Relembrando as palavras do Ilustre Professor de Coimbra JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, “[a]ssim se esfumava a garantia dos direitos das pessoas ínsita no princípio do acusatório e se regressava, volente, nolente, ao essencial do sistema inquisitório!”53. Neste sentido, o Código consagrava o chamado acusatório formal ou princípio da forma acusatória54,

49Idem, ibidem. Não obstante, no preâmbulo do DL 35.007 escreveu-se que a “publicação do Código de Processo Penal obedeceu

mais ao propósito de compilar a legislação processual, clarificando-a, do que ao de proceder à sua reforma”. 50 Idem, ibidem.

51 ANABELA MIRANDA RODRIGUES, “O inquérito no novo Código de Processo Penal”, in Jornadas de Direito Processual Penal – O Novo Código de Processo Penal (Centro de Estudos Judiciários), Coimbra, Almedina, 1988, p. 67.

52 Idem, ibidem; JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, ob. cit., p. 85. 53

JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, “Para uma Reforma Global…”, ob. cit., p. 199.

54 Importa aqui não confundir processo com princípio de acusação com processo de tipo acusatório. Segundo o douto ensinamento de FIGUEIREDO DIAS, “[s]e um processo deste tipo não é concebível sem aquele princípio, já não faltam exemplos de processos com princípio da acusação que, todavia, não possuem um tipo acusatório mas um tipo misto ou mesmo um tipo inquisitório

mitigado”. Cfr. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal – Lições do Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, coligidas por Maria João Antunes, Secção de Textos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1988-9, p.

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transformando o processo, na sua essência, num processo de estrutura inquisitória, com todas as consequências nefastas que daí advinham.

Tendo presente o que foi exposto, ficava notoriamente comprometida a objetividade, imparcialidade e independência necessárias a um justo e correto julgamento. Inevitavelmente, perante a acumulação no mesmo juiz das funções de investigação e de julgamento, e tal como salientado no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 35.007, esta dupla natureza funcional acabava por desvirtuar a função judicial. Se o juiz exercesse com zelo e diligência a sua missão de investigação, tal circunstância iria redundar, muito provavelmente, numa diminuição da sua imparcialidade enquanto julgador, ou, no mínimo, da serenidade que deve presidir ao julgamento55. Se, pelo contrário, o juiz não exercesse com o afinco necessário a investigação, tornar-se-ia frágil a garantia da ordem jurídica.

Noutro sentido, o Ministério Público, criado para subtrair a acusação pública ao poder judicial, via o seu papel reduzido a uma “pura expressão formal da orgânica dos tribunais”56.

O processo estava, assim, dividido em três fases distintas: a fase de instrução, a fase de acusação e defesa, e a fase de julgamento. A primeira tinha por fim, nos termos do art. 158.º do CPP, averiguar a existência das infrações, fazer a investigação dos seus agentes e determinar a sua responsabilidade, nela se devendo, tanto quanto possível, investigar as causas e circunstâncias da infração, os antecedentes e os estados psíquicos dos seus agentes, no que interessasse à causa, e ainda o dano causado ao ofendido, a situação económica e condição social deste e do infrator, para se poder determinar a indemnização. Era, tal como referido, dirigida pelo juiz de direito. Dentro da instrução distinguiam-se ainda duas sub-fases: o corpo de delito, previsto no art. 170.º do CPP, e que compreendia os atos de instrução; e a instrução contraditória, prevista no art. 326.º do CPP, estruturada como garantia de defesa do arguido. Este poderia requerer a

55 Vide também RUI PINHEIRO e ARTUR MAURÍCIO, A Constituição e o Processo Penal, Reimpressão da 1.ª Edição de 1976, Coimbra Editora, 2007, p. 27.

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abertura de instrução contraditória até ao trânsito do despacho de pronúncia, estando, no entanto, excluída nos processos sumário e de transgressões57.

A instrução contraditória, contrariamente ao que sucede atualmente quanto à fase de instrução, era um mecanismo delineado a pensar na defesa do arguido. Após ser ordenada, o arguido passava a ter acesso aos autos e poderia intervir em todos os atos de instrução, nos termos do preceituado no art. 330.º do CPP58. Contudo, este incidente de defesa suscitado pelo arguido tinha lugar apenas após o corpo de delito e a dedução de acusação por parte do Ministério Público, o que foi merecedor de críticas por alguma doutrina. Por exemplo, FRANCISCO SALGADO ZENHA entendia que uma “instrução contraditória post-acusatória é uma hipocrisia e uma máscara”59. Defendia este Autor que, se a contraditoriedade for, de facto, necessária para iluminar a fase instrutória, deve ser admitida desde o início do processo; se, por outro lado, só se precisar do arguido para o inquirir, “o adesivo da contraditoriedade escrita, depois de acusado formalmente o réu, não adianta, nem atrasa”60. Não resistimos a citar o eloquente parágrafo do referido Autor no qual constata que “a instrução contraditória post-acusatória não é mais do que um expediente falaz. (…) no fundo, o que tem lugar é um preliminar do próprio julgamento, votado quase sempre ao insucesso, em que o réu vai desvendar trunfos e razões que, depois de repudiadas, ainda mais perderão o seu valor ao ser repetidas no julgamento final. Nestas condições, e sobretudo estando na cadeia, o arguido evitará naturalmente lançar mão dela”61

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Também PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE entendeu que se estaria a desrespeitar o sentido da garantia constitucional da instrução contraditória, pois esta, precisamente com o fito de obviar a uma acusação injusta, implicava a possibilidade de o arguido exercer a sua defesa ainda antes da dedução de acusação62.

Finalizando esta breve análise do CPP de 1929, importa deixar presente uma última nota. Sendo, fundamentalmente, um Código elaborado por um regime

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Veja-se que a Constituição de 1933, no seu art. 8.º, n.º 10, conferia aos cidadãos o direito a uma “instrução contraditória, dando-se aos arguidos, antes e depois da formação da culpa, as necessárias garantias de defesa”.

58 No corpo de delito apenas poderia intervir nos casos expressamente previstos no Código. 59 FRANCISCO SALGADO ZENHA, Notas sobre a Instrução …, ob. cit., p. 48.

60 Idem, p. 49. 61 Idem, ibidem.

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autoritário, o arguido não tinha um leque de direitos tão alargado como atualmente, embora também não estivesse reduzido a um mero objeto processual63.

2.4. As Sucessivas Alterações ao Código de Processo Penal de 1929