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O direito processual penal anda sempre de mãos dadas com a Constituição, de tal forma que, no domínio processual penal, surgem, inevitavelmente, questões de realização, compreensão e efetivação de Direito Constitucional, obrigando à apreciação conjunta das duas disciplinas normativas.

Ora, nesse sentido tornou-se tão recorrente falar-se em direito processual penal como um verdadeiro “direito constitucional aplicado”236

que tal afirmação é atualmente uma ““frase batida”, que já dispensa mesmo a aposição de aspas”237

. Com efeito, não restam dúvidas de que este está sempre estreitamente associado à Constituição, sendo também considerado como um “sismógrafo” ou “espelho da realidade constitucional”238

, ou como um “sintoma do espírito político-constitucional de um ordenamento jurídico”239

. Estas afirmações têm de ser entendidas, segundo JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, o qual não resistimos a citar, “[n]uma dupla dimensão, aliás: naquela, já caracterizada, derivada de os fundamentos do direito processual penal serem, simultaneamente, os alicerces constitucionais do Estado, e naquela outra resultante de a concreta regulamentação de singulares problemas processuais ser conformada jurídico- constitucionalmente”240

.

De facto, as normas constitucionais não são meros princípios programáticos, nem diretrizes dirigidas ao legislador ordinário que este pode moldar de acordo com a sua vontade e entendimento. A Constituição prescreve verdadeiras normas jurídicas, daí que a “marca constitucional”241

deve estar sempre presente no direito processual penal. Este traduzir-se-á, assim, “no produto de uma longa evolução dirigida à escolha dos meios conducentes à realização óptima das tarefas próprias da administração da justiça

236 H. HENKEL apud JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, ob. cit., p. 74, que foi depois citado por inúmeros autores.

237 MARIA JOÃO ANTUNES, “Direito processual penal – “direito constitucional aplicado””, in Que Futuro para o Direito Processual Penal? – Simpósio em Homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português, (coord.) Mário Ferreira Monte, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 746.

238 CLAUS ROXIN apud JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal – Lições…, ob. cit., p. 35. 239 H. J. RUDOLPHI apud idem, ibidem.

240 JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, ob. cit., p. 74.

241 Expressão de ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR. Cfr. ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR, “As exigências da investigação…”, ob. cit., p. 87.

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penal, sendo certo que na sua base estão sempre os alicerces constitucionais do Estado”242

.

Fica, assim, nítido que o modelo e a construção do direito processual penal devem obedecer e respeitar os parâmetros constitucionalmente fixados e os princípios estruturantes do processo, criando institutos e soluções respeitadoras dos direitos fundamentais processuais das pessoas, e efetuando a necessária compatibilização prática entre os valores relativos a direitos fundamentais materiais243. Ou seja, a definição do quadro estrutural base do processo penal deve estar de acordo com as soluções constitucionalmente impostas e com os princípios fundamentais consagrados.

Assim, “a cada nova ordem constitucional, um novo direito processual penal”244

. A evolução constitucional reflete-se na evolução do processo penal, mais ainda num ordenamento jurídico como o português, que tanta atenção dedica diretamente na CRP ao domínio do processo penal. Tendo isto em conta, nem a mais perfunctória exposição sobre um tema do processo penal poderia prescindir da perspetiva constitucional sobre o mesmo.

De tal forma, importa começar por expor que é no art. 32.º da CRP que residem os principais princípios do processo penal, isto é, a chamada constituição processual criminal. Ora, tendo presente a matéria que temos vindo a abordar na nossa investigação, importa destacar o n.º 4 do referido artigo, que atualmente dispõe que “[t]oda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais”. Contudo, para compreender o sentido e o alcance do conceito constitucional de instrução afigura-se-nos necessária uma perspetiva histórica sobre a evolução do preceito, acompanhada da sua relação com o novo CPP.

Já antes nos pronunciámos sobre toda a polémica da inconstitucionalidade do inquérito preliminar que surgiu no final da década de setenta. Ora, não pretendemos

242 JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal – Lições…, ob. cit., p. 36. 243 ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR, “As exigências da investigação…”, ob. cit., p. 87.

244 J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada – Volume I…, ob. cit., p. 515.

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alongar-nos novamente nestas considerações, pelo que, neste capítulo, abordaremos tão- somente de forma ligeira essa evolução.

Com efeito, bem se sabe que, no domínio do CPP de 1929, era o juiz que dirigia a instrução, competência que, contudo, lhe veio a ser retirada pelo Decreto-Lei n.º 35.007, que, remodelando, de forma significativa, o CPP, atribuiu ao Ministério Público na instrução preparatória os poderes e funções que pertenciam, anteriormente, ao juiz, mas tornando, simultaneamente, a instrução contraditória obrigatória nos processos de querela. Com vista à simplificação e celeridade do processo penal, surgiu, trinta anos mais tarde, o Decreto-Lei n.º 605/75, que instituiu o inquérito policial relativamente aos crimes puníveis com pena correcional. Ora, tendo em conta a formulação originária do art. 32.º, n.º 4, primeira parte, da CRP, que dispunha que "toda a instrução será da competência de um juiz”, muitas dúvidas se suscitaram sobre a conformidade constitucional do inquérito, isto não obstante as alterações efetuadas pelo Decreto-Lei n.º 377/77, que inclusivamente alterou a designação do inquérito policial para inquérito preliminar. Parecia, com efeito, resultar da letra da lei e de um elemento histórico de interpretação que o legislador constituinte pretendera subtrair ao Ministério Público a competência que lhe fora entregue para a direção da instrução pelo Decreto-Lei n.º 35.007, conduzindo, assim, novamente, à integral jurisdicionalização da instrução245.

Ora, enquadrada a questão246, urge perceber que o cenário se foi alterando em dois momentos distintos: num primeiro momento, em 1982, com a revisão constitucional do art. 32.º, n.º 4, da CRP, apesar de esta não ter solucionado diretamente a questão; e, em segundo lugar, com a entrada em vigor do CPP de 1987, que atribuiu a direção do inquérito, em termos genéricos equivalente à antiga instrução preparatória, ao Ministério Público, não obstante a proclamação constitucional de que a instrução seria competência do juiz.

O art. 32.º, n.º 4, da CRP, que antes dizia que "toda a instrução será da competência de um juiz, indicando a lei os casos em que ela deve assumir forma contraditória”, foi alterado para a redação que ainda hoje se mantém, tendo a segunda parte do primitivo n.º 4 passado para a segunda parte do atual n.º 5.

245 Nas palavras de ÁLVARO DA CUNHA GOMES RODRIGUES, “não é possível duvidar” da intenção do legislador constituinte. Cfr. ÁLVARO DA CUNHA GOMES RODRIGUES, “Controlo garantístico dos direitos…”, ob. cit., p. 190.

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De facto, se se continuava a prescrever que a instrução era da competência de um juiz, o novo n.º 4 do art. 32.º da CRP era, no entanto, menos exigente do que o anterior, na medida em que se permitia a delegação noutras entidades dos atos instrutórios que não se prendessem diretamente com os direitos fundamentais. Nesse sentido, mesmo autores como, por exemplo, GERMANO MARQUES DA SILVA247, que antes se pronunciavam no sentido da inconstitucionalidade do inquérito preliminar, fazendo uma interpretação atualista da CRP, alteraram a sua posição, passando a entender que o conceito de instrução usado no art. 32.º, n.º 4, da CRP, não equivalia já a toda a atividade de averiguação, investigação e recolha de prova.

Com efeito, instrução “não é um conceito cujo conteúdo esteja fixado antecipadamente, à revelia dum contexto normativo espacial e temporalmente localizado”248

, havendo que o interpretar numa perspetiva dinâmica249. Aliás, também a CRP não definiu onde começa a instrução250, nem este está inscrito em qualquer lei natural, concedendo-se, pois, alguma margem de manobra ao legislador ordinário, que fica incumbido de densificar tal conceito. Assim, indo de encontro à posição há muito assumida por JORGE DE FIGUEIREDO DIAS251, o Tribunal Constitucional, nos seus Acórdãos n.º 7/87252 e n.º 23/90253, concluiu pela constitucionalidade dos arts. 263.º e 286.º, n.º 2, do então novo CPP, fundamentalmente porquanto a CRP atribui ao Ministério Público, magistratura caraterizada pela sua autonomia e que deve pautar-se por critérios de estrita legalidade e objetividade, o exercício da ação penal e a direção do inquérito, reservando ao juiz de instrução a prática de todos os atos que se prendam com

247 GERMANO MARQUES DA SILVA, Do Processo Penal Preliminar…, ob. cit., p. 59. 248 JOSÉ SOUTO DE MOURA, “Inquérito e instrução”, ob. cit., p. 110.

249 Idem, ibidem.

250 J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada – Volume I…, ob. cit., p. 520.

251 JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, “Para uma Reforma Global…”, ob. cit., p. 228.

252 Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/87, Proc. n.º 302/86, Relator: Mário de Brito, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19870007.html, consultado em 25-06-2015.

Não resistimos aqui a transcrever parte da declaração de voto de VITAL MOREIRA, que arguiu a inconstitucionalidade do art. 263.º do CPP: “É certo que o Código se guarda de considerar o tal «inquérito» como instrução, pretendendo, assim, solertemente, esquivar-se à condenação por inconstitucionalidade. Mas a «habilidade» é demasiado grosseira para merecer o sucesso com que o presente acórdão entendeu dever premiá-la. A verdade é que o legislador não pode pretender definir livremente os conceitos utilizados pela CRP.

Se a lei fundamental utilizou indubitavelmente o conceito de instrução para abranger «toda a instrução» (isto é, na antiga nomenclatura, não apenas a «instrução contraditória», mas também a «preparatória»), não pode vir o legislador a rebaptizar de «inquérito» a antiga instrução preparatória para assim a furtar à competência do juiz. Se o conceito constitucional compreende duas partes (a + b), não pode vir o legislador decretar que ele passa a abranger apenas a parte b, para desse modo afastar a parte a da mesma disciplina constitucional. As garantias constitucionais não podem ser terreno propício para a cultura de puros jogos de palavras ou para exercícios de nominalismo terminológico”.

253 Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/90, Proc. n.º 180/90, Relator: Tavares da Costa, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19900023.html, consultado em 25-06-2015.

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os direitos fundamentais, e dando ao arguido a possibilidade de requerer a abertura de instrução.

Ou seja, acabou por se restringir o conceito de instrução à antiga instrução contraditória, garantindo-se a sua judicialização apenas nestes moldes e libertando-se, nestes termos, o inquérito da intervenção judicial254. Nesse sentido, “[o] conceito de instrução usado na Constituição não coincide, pois, com os de acto de instrução ou fase de instrução do CPP; é mais amplo, por uma parte, enquanto abrange actos que no Código são actos de inquérito, e mais restrito, por outra, enquanto não abrange todos os actos que são qualificados de instrução pelo Código”255

.

Apesar de o problema estar hoje relativamente pacificado e ultrapassado, para alguns autores “a decisão ficou longe de convencer e de encerrar a controvérsia”256

. Veja-se, v. g., a visão de ÁLVARO DA CUNHA GOMES RODRIGUES, muito crítico da opção tomada pelo nosso legislador. É seu entendimento que a subtração da instrução ao juiz, no seu sentido de recolha e valoração de prova, “está longe de ser «quimicamente pura»”257.

Concluindo, tenha sido ou não a intenção inicial do legislador constituinte a entrega ao juiz de instrução de toda a atividade processual penal até ao julgamento258, e independentemente das opiniões no sentido da inconstitucionalidade da entrega do inquérito ao Ministério Público, a verdade é que da leitura harmonizada que se faz da CRP resulta o figurino que temos hoje assente no CPP: uma fase de investigação (o inquérito) dirigida pelo Ministério Público, e ao qual o juiz de instrução é alheio, salvo no que concerne aos atos que se prendem diretamente com a esfera de direitos fundamentais das pessoas, que por ele devem ser autorizados ou mesmo praticados; e

254 De facto, entendendo-se que o art. 32.º, n.º 4, da CRP, confere a direção de toda a investigação criminal a um juiz, “estaremos perante um preceito inexequível, desnecessário com tal amplitude, e o que será mais grave, responsável pelo completo bloqueamento da justiça penal”. Cfr. JOSÉ SOUTO DE MOURA, “Inquérito e instrução”, ob. cit., p. 109.

255 GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal – III, ob. cit., p. 157.

256 J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada – Volume I…, ob. cit., p. 521.

257 ÁLVARO DA CUNHA GOMES RODRIGUES, “Controlo garantístico dos direitos…”, ob. cit., pp. 194 e ss..

O Autor afasta o argumento, que carateriza de “farisaico”, “de que ao Juiz compete decidir e julgar e não instruir”. No seu entender “é indiscutível que ao Juiz compete julgar! Porém, a Instrução não é uma recolha mecânica e acrítica de provas, supõe a valoração do material probatório recolhido. E valorar é julgar e decidir!”.

258 JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS consideram que vingou “uma interpretação, que se diria, mais do que minimalista, como que invertida, dessa garantia constitucional, que identificou como seu sentido essencial a reserva ao Juiz dos actos que se prendam com direitos fundamentais”. Acrescentam ainda os aludidos Autores que essa interpretação, não obstante ser dotada de lógica, “fez tábua rasa da vontade história do legislador constituinte”. Cfr. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa

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uma fase de instrução, de caráter facultativo, dirigida pelo juiz de instrução, a que corresponde a ideia de garantia processual de salvaguarda do direito do arguido ao esclarecimento dos factos, com a sua participação, em ordem à decisão de o submeter a julgamento259.

É, pois, este o sentido da previsão constitucional da instrução. Alcançou-se um razoável equilíbrio ao garantir-se a intervenção do juiz de instrução, na fase de inquérito, em todos os atos que se prendem diretamente com os direitos fundamentais, mas libertando-o da responsabilidade da luta contra a criminalidade260. Esta fica a cargo do Ministério Público, coadjuvado pelos órgãos de polícia criminal, mas prevendo-se uma fase, a fase de instrução, que visa o controlo judicial da sua decisão no fim do inquérito com vista a submeter ou não o arguido a julgamento.

259 Cfr. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada – Tomo I…, ob. cit., pp. 728 e 729. 260 Cfr. GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Processual Penal Português…, ob. cit., p. 59.

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Capítulo V: Perspetiva Espacial da Fase de Instrução: Notas Breves sobre o