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C onselhos Tutelas como Espaços de Perpetuação do Poder de Polícia?

III RESULTADOS

IV.3. C onselhos Tutelas como Espaços de Perpetuação do Poder de Polícia?

Em toda sociedade o Estado desenvolve estratégias e poderes de intervenção social, utilizando inclusive legislações como o direito penal. Se a posição social for de um direito penal mínimo, o Estado passa a intervir apenas na produção e condução de processos que considerar estar em desordem. Quando a intervenção aponta um uso do direito penal máximo, o Estado passa a intervir sempre, marcando presença nas

elaçõesàf e teà sàte ti asàtutel eis.à D Elia,à2014, p. 35-43).

Na sociedade atual, segundo Augusto (2012), diversos dispositivos vêm servindo às práticas de penalização e julgamento de crianças e aos jovens. Conforme este autor, talà a a te ísti aàdeà juridicialização da vida , com posturas características a um Poder Judiciário ple ipote te ,à poisà e t aià ual ue à possi ilidadeà deà autodete i aç o (Nascimento & Scheinvar, 2007, p.154), conforme serve à disciplinarização das condutas desses indivíduos, mas também de suas famílias, ganhando caráter oculto na democracia contemporânea através de palavras como participação e empoderamento , mas que da mesma forma que os dispositivos de controle apontados por Foucault (1997):

... produzem sentenças e refazem a centralidade necessária à produção de corpos e mentes assujeitados, ao manter exatamente a necessidade de um julgamento, de uma sentença, agora produzida de maneira coletiva, democrática, i lusivaàeàpa ti ipativa (Augusto, 2012, p.33).

Partindo da teoria da sociedade de controle policia em fluxos , de Passetti (2006), para a discussão da contenção da violência urbana, Augusto (2010, p.165) aponta que as sociedades vêm ultrapassando o nível de controle para além das instituições públicas, envolvendo a participação de setores da própria comunidade em

101 novos controles plurais que se utilizam de líderes comunitários e/ou agentes, atuação de ONGs e outras regulações, para demarcar controle nas chamadas áreas de

ul e a ilidadeàso ial :

Po à issoà i te essa -se por associações de bairros, paróquias de igrejas e ministérios protestantes ou pentecostais, escolas estatais, como via de acesso para promover atividades culturais e laborais, fazendo com que as famílias se en- volvam a partir de uma preocupação com seus filhos (Augusto, 2010, p.266).

No Brasil, esse fortalecimento das políticas de participação popular veio no bojo das lutas pela redemocratização das décadas de 1970-80, visando a descentralização político-administrativa isso deu maior poder à sociedade civil na esfera pública (Pinto, 2004). Assim, o Conselho Tutelar, como seria o espaço de exercício da democracia participativa, da gestão conjunta e do controle social sobre as ações do Estado (Ferreira, 2002).

Atualmente, autores como Scheinvar (2009) alertam para a idealização da representação que coloca a sociedade civil e sua participação no poder, como a expressão autêntica, o caminho correto, portadora do bem , em oposição ao Estado regulador da sociedade. Para essa autora tal perspectiva é fruto de uma interpretação liberal que considera a participação da sociedade civil como fundamental para a implementação de uma democracia participativa e naturaliza sua posição, desconsiderando ser esta própria sociedade também parte constituinte do Estado. Assim, o papel do Estado como planejador da economia e responsável pela correção das desigualdades sociais, tarefa primordial do Estado de Bem-Estar Social, termina sendo tachado por intervencionista e de caráter negativo (Augusto, 2010).

Para Scheinvar (2009), opor a sociedade civil ao Estado, explicita uma relação de dominação, onde, se por um lado, não se aceita apenas imposições do Estado, dá margem para que a sociedade civil se imponha de forma autoritária sobre toda a sociedade. Na análise das ações dos Conselhos Tutelares, essa discussão seria imprescindível, pois este equipamento é definido por uma legislação que o habilita e o legitima para funcionar em todos os municípios, conforme a autora, com abrangência geográfica comparável aos postos de saúde ou às delegacias de polícia. Eles têm poder coercitivo de convocação, autuação, encaminhamento de deliberações e representação

102 e poder de testemunho junto aos órgãos jurídicos, embora não esteja submetido a nenhum poder público, nem mesmo ao Ministério Público, ou ao CMDCA - Conselho Municipal da Criança e do Adolescente, já que se constitui em um conselho totalmente autônomo.

Confome Scheinvar (2009), embora o argumento de formação dos grupos e conselhos da sociedade civil tenha sido a intenção da Constituição Federal (Brasil, 1988) de incluir a participação popular no poder, os Conselhos Tutelares têm feito pouca representação da sociedade (Neves, 2014) e servido à necessidade de desjudicializar as práticas voltadas à criança e ao adolescente (até então concentrada nas mãos do Poder Judiciário). Por isso, talvez menos por incoerência e mais pelos limites da concepção liberal de democracia, anos após a implantação desses conselhos várias de suas práticas são questionadas, tidas como abusivas, desviantes e até, improcedentes, como exemplo o apoio de diversos Conselhos Tutelares municipais a toques de recolher impostos a adolescentes (como o implementado na cidade paulista de Fernandópolis) (Tavares, 2010), ou a iniciativa de apreensão de adolescentes em parques públicos pela alegação de que estariam no horário de aulas (como ocorrido no Parque do Estado no município de São Paulo) (Bedinelli & Ramos, 2011).

A retirada do Estado da prestação de serviços e de sua condição de garantidor de direitos, terminou por colocá-lo na arbitragem do controle, onde a população civil, representada por esses conselhos, assume responsabilidades de polícia e, sem contar com recursos para lidar com tal questão, se tona numa força conservadora que garante a própria conservação. Por isso também na área de temas tabus, como a sexualidade e a saúde sexual e reprodutiva, não seja de surpreender que representem discursos e práticas de opressão contra os próprios adolescentes aos quais deveriam promover direitos. Não à toa, essa postura invariavelmente provoca reações violentas por parte da população e até violência e morte contra conselheiros (ACONTEMIG, 2015).

Scheinvar (2009) aponta assim, que esse conceito de democracia é produzido como um salvo-conduto para a convivência de grupos com forças políticas desequilibradas, acreditando que essa relação por si garantiria a defesa dos direitos legalmente instituídos, sem entrar nos fundamentos. Na verdade, a autora aponta que o

103 ideal transformador dos Conselhos Tutelares terminou gerando o exercício do poder tradicional, caritativo e filantrópico, ao contrário do almejado e proposto no ECA (Brasil, 199a). Na prática, as ações desses conselhos punem e criminalizam, ao invés de voltar- se às condições de transformação social que reduziriam suas vulnerabilidades causadas pelas injustiças sociais.

Assim, como aponta Foucault (1997, p.89):

num sistema preocupado com o respeito aos sujeitos de direito e à li e dadeà deà i i iativaà dosà i divíduos,à o oà se à ueà oà fe e oà populaç o ,à com seus efeitos e seus problemas específicos, pode ser levado em conta? Em nome de quais regras é possível geri-lo? (Foucault, 1997, p.89).

A atuação principal é a mediação de conflitos, encarando-os como questões pessoais e comportamentais, não produzindo reivindicações, propostas ou práticas éticas que levariam a cessação da violação dos direitos. Por isso, Passetti (2006, p.91) atribui a esse tipo de intervenção social a característica de o se ado is oà ode ado ,àque por meio da participação popular produz práticas de assujeitamentos por assujeitados ; além da delegação de poderes, já que a participação social nesses conselhos só ocorre no momento da votação, passando depois a ser alvo de procura individual como prestador de serviços (Neves, 2014).

Para Foucault (1997, p.92) essa distinção entre Estado e sociedade civil seria uma fo aà de es ue atizaç oà p óp iaà aà u aà te ologiaà pa ti ula à deà go e o para os i te essesàdoàsiste aàpolíti oàeàso ialàe à igo ,àouàseja,à i st iasàdeà o t oleàpolíti o à (Scheinvar, 2001, p.34). Embora se utilizem de discursos como segurança, saúde, bem comunitário, para efetivar, dirigem condutas dos que compõem a população garantindo a moralidade e obediência dos cidadãos (Foucault, 1997).

Também cabe lembrar que os Conselhos Tutelares são alvo de poder local e não necessariamente apresentam-se internamente como um grupo democrático em suas posições. Muitas vezes há distorções que vão desde fraudes nas eleições desses representantes (Araújo, 2015), até uso do Conselho Tutelar para outros fins políticos, como obtenção de vantagens/renda, uma vez que a salário atual de R$ 1.416,77 (na época da pesquisa) (PMSP-SP, 2014) é significativo na realidade social brasileira. A

104 imprensa noticia também essas distorções políticas em vários locais do país, como o seu uso formação de base política para futuros vereadores (Meneguetti, 2015), financiamento de candidatos conselheiros por vereadores locais ou partidos políticos (Silva, 2015) e até disputas internas após a eleição que atrapalham ou sabotam os trabalhos seu próprio funcionamento, já que a maioria dos Conselhos Tutelares brasileiros têm adotado a estruturas hierárquicas com conselheiros-presidentes (Nascimento & Scheinvar, 2007, p.157). Por isso, segundo Scheinvar (2009), mesmo quando não se concorda com as atitudes adotadas ou realizadas por conselheiros tutelares, não se deve avaliá-las como se essas estivessem fugindo a sua função, uma vez que suas práticas oà te à u aà atu ezaà dada,à e à efe eà ualidadesà pessoais (p.4), mas são fruto de expectativas acumuladas em processos históricos e de subjetivação que são perpetuados socialmente.

Podemos questionar, inclusive, se a busca de participação nesses espaços socialmente definidos não aponta a necessidade de participação das pessoas, movidas individualmente para se sentirem empoderadas ,àouà o fe idasàdeà auto idadeàso ial à (como diria Bourdieu, 1989), quando adentram essas instituições (tal como vemos os conselheiros). Numa sociedade complexa pós-moderna como a nossa, onde há a sensação de anonimato, desprestígio e isolamento Bauman (2008)16;, poder participar da resolução de questões e problemas sociais esferas coletivas poderia gerar a sensação de importância, segurança, tornando a própria participação democrática um amparo simbólico.

Finalizando, Passetti (1999) aponta que a sociedade de controle não eliminou ou substituiu a sociedade disciplinar anterior, mas elegeu novas prioridades, redimensionando os interesses sobre o corpo. Isso inclui, obviamente, a intervenção sobre a saúde e a sexualidade humanas, com propostas de comportamento hegemônico, genérico, universal, certo, que entende todos como iguais, homogeneizando as pessoas, condição para dar-lhes a liberdade individual propagada, ignorando as diferenças entre elas e reforçando as desigualdades sociais (Nascimento e Scheinvar, 2007, p.158).

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IV.4.

S

ubstituindo a Noção de Objetos de Controle pela de Sujeitos