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4 O PROCESSO DE AUXILIARIDADE VERBAL NO PB

4.1 O F ENÔMENO DA I NACUSATIVIDADE

4.2.2 V ERBOS ASPECTUAIS

4.2.2.3 C ONTINUAR

O verbo continuar é um aspectual que indica o desenvolvimento do evento. Conforme verificamos nos exemplos (72) e (73) anteriormente, esse verbo admite um DP na posição de complemento e sofre apassivação, manifestando um comportamento próprio de verbos lexicais54. Entretanto, continuar pode subcategorizar também um P InfP, um GerP ou uma SC, conforme mostram, respectivamente, as sentenças a seguir:

(97) a. Marta continua a treinar para o campeonato. b. Marta continua treinando para o campeonato.

c. Marta continua dedicada.

d. Marta deve continuar dedicada.

O fato de continuar figurar em sequências verbais, em que o verbo encaixado assume a forma infinitiva, como em (97a), ou a forma gerundiva, como em (97b), o torna candidato a auxiliar. Mas se ocorre em sentenças como (97c) e (97d), onde subcategoriza uma SC, ele não preenche os requisitos para ser auxiliar já que ou é o único verbo da predicação ou o último da sequência.

Os exemplos a seguir mostram como o verbo continuar se comporta em relação às restrições de seleção semântica com complementos P InfP e GerP, em (98):

(98) a. O bebê continua a chorar/chorando. b. O gelo continua a derreter/derretendo. c. Continua a nevar/nevando na serra.

d. Continua a haver/havendo reclamações dos professores na ouvidoria.

As sentenças em (98) revelam que o verbo continuar não impõe restrições de seleção ao seu complemento, formando sequência com quaisquer verbos. Por consequência, figura em sentenças com sujeitos agente/humano, como em (98a); inanimado, como em (98b); ou até mesmo em sentenças sem sujeito, como em (98c-d).

54 Continuar se comporta como começar se sofre alternância sintática: (i) a. O trabalho continuou durante a noite.

O verbo continuar pode, ainda, figurar com sujeitos de expressões idiomáticas, sem que a idiomaticidade da expressão seja afetada. O exemplo a seguir ilustra esse emprego:

(99) a. O bicho (es)tá pegando no escritório. b. O bicho continua pegando no escritório.

O sentido idiomático de (99a) não se perde em (99b), em que o verbo continuar foi acrescido à expressão. O DP o bicho, argumento externo do verbo pegar, é alçado para a posição Spec InfP de continuar em (99b). Esse movimento foi possível porque continuar não projeta a posição do argumento externo, constituindo um verbo de alçamento. Esse resultado é, portanto, compatível com sua classificação como um verbo auxiliar.

O verbo continuar com complemento P InfP ou GerP também revela um comportamento próprio de auxiliar em relação ao fenômeno transparência de voz, como se verifica no exemplo a seguir:

(100) a. Joana continua a encaminhar/encaminhando crianças para a adoção.

b. Crianças continuam sendo encaminhadas para a adoção (por Joana).

A sentença (100b) revela que continuar admite a apassivação do verbo encaixado, mantendo a correspondência de sentido com a sentença ativa, em (100a). Esse teste manifesta propriedades de um auxiliar no verbo continuar, que permite o movimento do DP argumento interno do verbo encaixado para a posição de sujeito da sentença, revelando ausência de argumentos.

Conforme vimos ao longo deste capítulo, um auxiliar admite o encaixe de uma sentença passiva, mas não é suscetível à apassivação. O exemplo a seguir mostra como o verbo continuar com complemento P InfP e GerP se comporta em relação a essa propriedade:

(101) a. Maria continua a escrever/escrevendo histórias infantis. b. *Histórias infantis são continuadas a escrever por Maria.

A má-formação da sentença (101b) ratifica a classificação de continuar como um verbo auxiliar, pois mostra que este reage à apassivação.

As sentenças a seguir ilustram o comportamento do verbo continuar com complemento P InfP ou GerP em relação à retomada pela anáfora fazer isso também:

(102) a. Maria continuou a contar/contando os doces, e Júlia fez isso também.

b. *O motor continuou a aquecer/aquecendo, e o radiador fez isso também.

A diferença de gramaticalidade entre as sentenças em (102) revela que a possibilidade de retomar o verbo continuar pela anáfora fazer isso também é possível apenas quando este figura em sentenças cujo sujeito exibe o traço [animado/agente]. É importante observar, entretanto, que a definição desse traço não é determinada por continuar, e sim pelo verbo de seu complemento. Logo, esse fator não revela propriedades de um verbo de controle em continuar.

O verbo continuar traz a informação aspectual de desenvolvimento do evento. É esperado, portanto, que seja compatível apenas com predicados em que se verifica transcurso no tempo. As sentenças em (103) confirmam essa hipótese:

(103) a. Meu pai continua a trabalhar/trabalhando. (atividade) b. *A Vivian continua a estar/estando doente. (estado)

c. João continua a limpar/limpando o auditório. (accomplishment) d. *Carlos continua a vencer/vencendo a luta por nocaute.

(achievement)

A diferença de gramaticalidade entre as sentenças em (103) revela que o verbo continuar impõe restrições aos predicados a que não se pode atribuir transcurso no tempo: os de estado e os de achievement.

Enfim, vamos verificar como continuar se comporta em relação ao ordenamento rígido dos núcleos funcionais. Esse verbo corresponde ao núcleo Aspcontinuativo, que se localiza à direita dos núcleos Modepistêmico e

Modvolição, mas à esquerda dos núcleos Modobrigação, Modhabilidade e

Modpermissão. As sequências possíveis deveriam ser, portanto, aquelas em que continuar é antecedido pelos verbos que remetem às ideias de possibilidade, probabilidade e desejo; e seguido por aqueles que remetem às ideias de obrigação, habilidade e permissão. Para testar este fator, apresentamos a seguir sentenças em que continuar forma sequência com os modais poder, dever e ter de/que, respectivamente:

(104) a. Joana pode continuar a praticar/praticando esportes. b. Joana continua podendo praticar esportes.

(105) a. Carlos deve continuar a pagar/pagando a pensão dos filhos. b. *Carlos continua a dever/devendo pagar a pensão dos filhos. (106) a. Maria tem de/que continuar a trabalhar/trabalhando.

b. Maria continua a ter de/tendo de trabalhar.

Na sentença (104a), o verbo poder expressa ideias de possibilidade, permissão ou habilidade, gerando sequências de núcleos em desacordo com a hierarquia, segundo a qual apenas poder com sentido de possibilidade poderia anteceder continuar. Na sentença (104b), poder admite apenas as interpretações de permissão e habilidade, gerando sequências compatíveis com o ordenamento de núcleos. Na sentença (105a), dever pode significar tanto probabilidade quanto (ter) obrigação, e o único sentido licenciado nessa posição é o de probabilidade. Já a má-formação de (105b) causa estranhamento, pois o núcleo modal de obrigação segue o aspectual de continuidade na hierarquia, e dever pode corresponder à ideia de obrigação. No par de sentenças em (106), verificamos que ter de/que pode ser associado à obrigação independente da posição que ocupa em relação ao verbo continuar. Os exemplos de (104) a (106) revelam, portanto, que o verbo continuar não segue rigidamente a ordem proposta na hierarquia de núcleos funcionais.

Os testes realizados com continuar com complemento P InfP e GerP ao longo desta seção apontam para a existência de um único núcleo funcional correspondente a esse verbo. Este projeta uma estrutura de alçamento, sendo, portanto, candidato a verbo auxiliar. À semelhança dos verbos aspectuais começar, tornar e voltar com complemento P InfP, continuar parece estar em processo de gramaticalização, pois impõe restrições ao aspecto de seu complemento e, ainda, não segue rigidamente a hierarquia de núcleos proposta por Cinque (2006). É importante ressaltar que esse autor não prevê mais de uma posição na hierarquia para o núcleo correspondente ao aspecto continuativo, como o faz para os núcleos aspectuais inceptivo, repetitivo e completivo. Assim, sua proposta não explica algumas das possibilidades de ordenamento ilustradas nos exemplos de (104) a (106).

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