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4 O PROCESSO DE AUXILIARIDADE VERBAL NO PB

4.1 O F ENÔMENO DA I NACUSATIVIDADE

4.2.2 V ERBOS ASPECTUAIS

4.2.2.2 T ORNAR /V OLTAR

À semelhança do verbo começar, tornar e voltar podem ser empregados como verbos lexicais ou funcionais. As sentenças a seguir ilustram, respectivamente, cada um desses empregos:

(87) a. O trem tornou/voltou de Madri. b. Maria tornou/voltou a fumar.

Os verbos tornar e voltar projetam sempre uma estrutura de alçamento, pois constituem inacusativos quando selecionam tanto um complemento DP quanto um P InfP. Na sentença (87a), tornar e voltar são inacusativos lexicais. Com esse emprego, subcategorizam DP e expressam ideia de movimento. Na sentença (87b), por sua vez, são inacusativos funcionais. Neste caso, subcategorizam um P InfP e assumem uma conotação aspectual, indicando repetição de um evento.

Nesta subseção, abordamos os verbos tornar e voltar com complemento P InfP. Estes são candidatos a auxiliar, pois expressam apenas noção aspectual e não impõem restrições semânticas ao seu complemento, conforme se verifica a seguir:

(88) a. Carlos tornou/voltou a competir. b. O carro tornou/voltou a estragar. c. Tornou/Voltou a chover à noite.

d. Tornou/Voltou a haver manifestações contra o governo.

A boa formação das sentenças em (88) mostra que tornar e voltar se combinam com verbos de ação, inacusativos e impessoais, não oferecendo, portanto, restrições semânticas ao verbo lexical. Por consequência, figuram em sentenças com sujeitos animados, como em (88a); inanimados, como em (88b), ou expletivos, como em (88c-d). Esse resultado indica que tornar e voltar são transparentes para movimentos de DPs argumentos do verbo encaixado para a posição de sujeito da sentença, manifestando um comportamento próprio de verbo auxiliar.

Esses verbos podem, ainda, figurar com sujeito de expressões idiomáticas, como mostra o exemplo a seguir:

(89) a. O tempo vai fechar lá em casa.

b. O tempo vai tornar/voltar a fechar lá em casa.

Mesmo com o acréscimo de tornar ou voltar, (89b) mantém o sentido idiomático da expressão (89a). Esse fato é mais uma evidência de que esses verbos constituem auxiliares, pois permitem o alçamento do DP argumento do verbo encaixado para sua posição Spec.

Os verbos tornar e voltar com complemento P InfP manifestam também o fenômeno da transparência de voz, como mostram as sentenças em (90):

(90) a. Pedro tornou/voltou a negociar os carros.

b. Os carros tornaram/voltaram a ser negociados (por Pedro).

O alçamento do DP argumento do verbo encaixado (os carros) para a posição de sujeito da sentença, em (90b), revela que esses verbos não selecionam argumentos, exibindo um comportamento próprio de auxiliar também em relação a esse fator.

Os verbos tornar e voltar com complemento P InfP não admitem, entretanto, a forma passiva, ratificando suas propriedades auxiliares. O exemplo a seguir mostra a reação desses verbos ao processo de apassivação: (91) a. Abel tornou/voltou a escrever poemas.

b. *Poemas foram tornados/voltados a escrever.

A agramaticalidade de (91b) é esperada, pois se tornar e voltar com complemento P InfP constituem, de fato, auxiliares, não selecionam argumentos, resistindo, portanto, à apassivação. Isto é de se prever mesmo para as versões lexicais, já que se trata de verbos inacusativos, que não toleram passiva.

A retomada de tornar e voltar pela anáfora fazer isso também é possível apenas quando esses verbos figuram em sentenças com sujeito [animado/agente], como mostra o contraste de gramaticalidade entre as sentenças do exemplo (92):

(92) a. Paula tornou/voltou a bater a porta do carro, e Júlia fez isso também.

A boa formação da sentença (92a) não evidencia a projeção de uma estrutura de controle, como propõe Perlmutter (1970), pois o sujeito da sentença (Paula) constitui argumento externo do verbo encaixado (bater), e não dos aspectuais voltar e tornar.

Por carregarem a informação aspectual de repetição de um evento, é provável que os verbos tornar e voltar se combinem apenas com predicados de accomplishment e de achievement, que apresentam término lógico definido. O exemplo a seguir mostra as restrições que esses verbos impõem ao aspecto do seu complemento:

(93) a. Maria tornou/voltou a caminhar com ritmo. (atividade) b. *Os alunos tornaram/voltaram a saber matemática. (estado)

c. As funcionárias tornaram/voltaram a separar o lixo. (accomplishment)

d. Carlos tornou/voltou a bater o carro. (achievement)

As sentenças (93a), (93c) e (93d) são gramaticais, evidenciando que tornar e voltar formam sequência com predicados de atividade, de accomplishment e de achievement. Os predicados de atividade, embora não apresentem término lógico definido, são admitidos na posição de complemento dos verbos tornar e voltar. Essa possibilidade revela que tornar e voltar marcam também retomada de um evento, e não apenas repetição. A boa formação das sentenças (93c) e (93d) já era esperada, pois os predicados de accomplishment e de achievement apresentam término lógico definido, e a repetição de um evento está condicionada ao seu término. Enfim, a restrição de tornar e voltar a predicados de estado, conforme (93b), ocorre por estes não permitirem interrupção nem apresentarem término lógico definido.

A posição que os verbos tornar e voltar ocupam em relação a outros verbos funcionais também constitui fator importante na sua classificação como auxiliar. O exemplo a seguir ilustra as possibilidades combinatórias entre esses verbos e os modais poder, dever e ter de/que:

(94) a. A criança pode tornar/voltar a andar. b. A criança tornou/voltou a poder andar. (95) a. Joana deve tornar/voltar a dançar balé. b. *Joana tornou/voltou a dever dançar balé.

(96) a. Pedro tem de/que tornar/voltar a tomar a medicação. b. Maria tornou/voltou a ter de/que tomar a medicação.

Os verbos tornar e voltar indicam a repetição de um evento, correspondendo ao núcleo Asprepetitivo, que segue o modal de

possibilidade/probabilidade (Modepistêmico), mas antecede os demais núcleos

modais (Modvolição, Modobrigação, Modpermissão e Modhabilidade). Em princípio, as

sequências que estão de acordo com a hierarquia proposta por Cinque (2006, p. 12) são as expressas em (94b), (95b), (96a) e (96b), em que os aspectuais tornar e voltar são seguidos pelos modais que expressam (ter) permissão, (ter) obrigação, habilidade e desejo. É importante observar que, embora siga o ordenamento previsto na hierarquia, a sentença (95b), em que dever assume uma conotação de (ter) obrigação, é mal-formada. As sentenças (94a) e (95a), por sua vez, não seguem o ordenamento, pois os verbos poder e dever podem indicar habilidade, (ter) permissão e (ter) obrigação, além das noções de possibilidade/probabilidade. Para explicar as sequências Modpermissão/habilidade > Asprepetitivo, em (94a), e Modobrigação >

Asprepetitivo, em (95a), Cinque postula duas posições para o núcleo aspectual

repetitivo: o Asprepetitivo(I), localizado abaixo do Modepistêmico e acima dos

outros núcleos modais; e o Asprepetitivo(II), localizado abaixo de VoiceP,

seguindo todos os núcleos modais. Assim, todas as sequências ilustradas nos exemplos de (94) a (96) estariam de acordo com a hierarquia. Sem considerar esse recurso, observamos que os verbos tornar e voltar se assemelham ao verbo começar em relação a esse fator, ou seja, não seguem rigidamente o ordenamento proposto por Cinque.

Ao longo desta subseção, verificamos que os verbos aspectuais tornar e voltar se comportam como um auxiliar em relação às restrições de seleção semântica, formando sequência com quaisquer verbos; à ocorrência em expressões idiomáticas, combinando-se com o sujeito da expressão sem alterar seu sentido; à transparência de voz, mantendo a correspondência ativa-passiva; e ao processo de apassivação, não admitindo a forma passiva. Esses verbos manifestam, entretanto, restrições ao aspecto do seu complemento, combinando-se com predicados de atividade, de accomplishment e de achievement, mas não com predicados de estado. Além disso, não seguem rigidamente a hierarquia de núcleos funcionais proposta por Cinque (2006). Os resultados dos testes para os verbos tornar e voltar são muito próximos aos obtidos para o verbo começar. A sua análise ratifica, portanto, a hipótese de que os aspetuais encontram-se em um estágio menos avançado de gramaticalização que os verbos modais (ver seção 4.2.1).

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