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2.7 A Imunização

2.7.1 Caballero Teutón

Standle é um homem misterioso de compleição robusta cuja descrição, feita por Bordenave para Félix Ramos, o destinatário de sua carta, chega a ser bastante ameaçadora: “Haga memoria: un gigantón de gabardina, rubio, derecho como palo de escoba, medio

cuadrado en razón de las espaldas anchas, de cara afeitada, de ojos chicos, grises, que no parpadean, le garanto, aunque el prójimo se retuerza y clame.” (CASARES, 2005, p. 18). O mistério que envolve Standle alimenta as mais diversas especulações sobre sua origem entre os moradores da vizinhança:

En el pasaje corren sobre ese individuo los más variados rumores: que llegó como domador del Sarrasani, que fue héroe en la última guerra, fabricante de jabones con grasa de no sé qué osamenta, e indiscutido as del espionaje que transmitió por radio, desde una quinta en Ramos, instrucciones a una flota de submarinos que preparaba la invasión del país. (CASARES, 2005, p. 18).

Mas a especulação que mais chama a atenção do relojoeiro é a de seu amigo Aldini, que, cheio de cuidados para que ninguém mais escutasse sobre sua suspeita, cochicha aos ouvidos de Bordenave: “-Es caballero teutón”. (CASARES, 2005, p. 18).

A presença do alemão na casa do sistemático e reservado relojoeiro irrita-o bastante, sobretudo porque Bordenave presencia o quanto o professor da escola de cachorros hipnotiza toda a família. Após narrar toda a cena e reproduzir o discurso de Standle sobre cachorros, o relojoeiro comenta com seu destinatário: “Al oír estas pesadeces yo ni remotamente sospechaba sus terribles consecuencias.” (CASARES, 2005, p. 23). Bordenave ainda não tinha como saber tudo o que aconteceria depois de ter recebido o alemão misterioso em seu próprio lar, mas sua intuição, um pesadelo que teria de noite e uma observação que ele faz sobre uma fala de Standle já anunciavam a terrível imunização que vitimaria sua família. Sobre a fala de Standle, o relojoeiro pensa: “Algunos alumnos de la escuela se desenvuelven – si me atengo a los relatos del alemán – como seres humanos hechos y derechos.” (CASARES, 2005, p. 22). Quanto a isso, Bordenave jamais aventaria a possibilidade de que em muitos dos corpos dos cachorros do alemão habitavam espíritos humanos transplantados. O pesadelo de Bordenave também se baseia nesse horror que mistura cachorros com seres humanos:

Por fin me dormí para soñar que perdía a Diana, creo que en la Avenida de Mayo, donde nos habíamos encontrado con Aldini, que anunció “Los aparto por un instante, para decirte un secreto sin ninguna importancia”. Muy sonriente hacía el ademán de apartarnos y en seguida me apuntaba con un dedo. El carnaval desembocó entonces en la avenida y la arrastró a Diana. La vi perderse entre máscaras disfrazadas de animales, que incesantemente pasaban, con el cuerpo a rayas de colores como de cebras o de víboras y con la cabeza de perro en cartón pintado, de lo más impávida. No me creerá: todavía dormido, me pregunté si mi sueño era un efecto de lo que sucedió o un anuncio de lo que iba a suceder. (CASARES, 2005, p. 27)

O pesadelo que, mais tarde, revela-se um anúncio do que ia acontecer, intriga pela pessoa que separa o casal: Aldini. O melhor amigo de Lucho Bordenave sofre de reumatismo e, por isso, tem o físico bastante debilitado. O rengo (manco), como o relojoeiro costuma chamá-lo, representa, como amigo e como enfermo, duas coisas que são um dos alvos e um dos pretextos usados pela imunização: a vida em comunhão com o Outro e a enfermidade, respectivamente.

Após a visita indesejada do alemão, a vida de Bordenave se transforma em um pesadelo. Diana, ávida por conviver com cachorros depois de ouvir o discurso de Standle, passa a frequentar sua escola todos os dias, deixando seu lar e seu marido sozinhos até avançada a madrugada. Com um discurso sobre a saúde muito bem tramado e com a ajuda do egoísmo e da debilidade do relojoeiro, o professor alemão o convence a internar sua esposa. No início do diálogo, Bordenave desconversa sobre a possibilidade de sua esposa estar doente, mas, esperto, Standle afirma: “-No se haga el que no capta. Está muy enferma. Si no actuamos, puede llegar a ese punto del que nadie vuelve.” (CASARES, 2005, p. 31). Como mesmo depois dessa ameaça, o relojoeiro segue insistindo que Diana está bem, o alemão resolve ser taxativo e, dessa forma, consegue convencer o pobre Bordenave, que nem procura saber, antes, que tipo de tratamento será feito: “-Actuamos en el acto o pierde prácticamente a la señora. –Actuemos – le dije y le pedí que me explicara como.” (CASARES, 2005, p. 31). Porém, ao saber que se trata de internar Diana no hospício, o relojoeiro resiste à ideia e, diante disso, Standle apela para seu egoísmo e insinua a vergonha que é para ele ter a esposa todo o dia fora de casa, passeando até de madrugada: “-Mientras dure la internación, para usted se acabaron los dolores de cabeza. Dios me perdone, dije: -¿Usted cree?” (CASARES, 2005, p. 32). O relojoeiro recorda uma cena que faz com que ele saiba que Standle e Samaniego eram muito próximos:

Lo miré sorprendido, aunque sabía perfectamente que era compinche del doctor, porque los viernes a la noche juegan al ajedrez, a la vista y paciencia del público, en La Curva, de Álvarez Thomas y Donado. Es verdad que yo sabía todo esto de mentas: por una de esas grandes casualidades del destino, hasta aquel momento nunca se me había cruzado ante los ojos el doctor Reger Samaniego, con su cara de momia. (CASARES, 2005, p. 33).

Apesar de intuir que o alemão estivesse de conluio com Samaniego, o orgulho ferido de marido, a vaidade e o egoísmo são maiores e, então, ele aceita a internação de sua esposa: “Cuesta creerlo, pero le repetí varias veces ‘Gracias’, porque aún lo veía como un amigo y como um protector. Nada más que por la dificultad de encontrar las palabras, no le dije: ‘No

sabe el peso que me ha sacado de encima’” (CASARES, 2005, p. 33). Assim, a internação que instaura a violência na família Bordenave fica acertada entre ambos. Depois de se despedir de Standle, Bordenave começa a refletir sobre sua atitude e percebe que se deixou enredar pela maneira ardilosa com que o alemão discursou: “Quién sabe si Standle no me había parecido un protector, porque no me dejaba abrir la boca para plantear mis dudas.” (CASARES, 2005, p. 34). Mais uma vez, a observação de Esposito é bastante pertinente quando alerta que o medo excessivo de riscos, que muitas vezes são forjados e estimulados justamente para que haja súplicas por proteção, adquire características de doenças autoimunes altamente destrutivas, pois “el exceso de defensa contra los elementos extraños al organismo se vuelve contra él, con efectos potencialmente letales.” (ESPOSITO, 2009a, p. 117). É exatamente o que acontece com o relojoeiro que opta por ter uma vida imunizada, pois seus temores e suas defesas excessivas levam-no a viver o horror que se inicia com a visita inoportuna de Standle. Sobre a presença desse misterioso alemão na trama de Casares, muitas questões podem ser postas. Como mencionado no primeiro capítulo, algumas passagens da obra suscitam um debate sobre a antiga querela que envolve os peronistas e sua suposta relação estreita com nazistas. Se consideramos um conto intitulado “La fiesta del monstruo” que Casares escreveu com Borges sob o famoso pseudônimo de Bustos Domecq, no ano de 1947, ou seja, quando o peronismo começava, alguma afirmação de provocação sobre o fato é suscetível de aparecer já que, resumidamente, trata-se da história de uma massa de seguidores do presidente, que recebe a alcunha de monstro, que faz uma viagem em comboio rumo à Plaza de Mayo para um evento que alude ao Día de la Lealtad, ocorrido em 17 de outubro de 1945, quando sindicatos e operários se reuniram no centro de Buenos Aires para exigir a liberação de Perón, que seria eleito dois anos depois. Antes de chegarem ao destino, os seguidores cruzam com um estudante judeu a quem obrigam a elogiar o “monstro” diante de sua foto. Como o judeu se nega a obedecer, acaba sendo assassinado. Muito já se escreveu sobre o conto como o encerramento de uma trilogia composta por El Matadero, de Esteban Echeverría e La Refalosa, de Hilario Ascasubi, que tratavam da disputa entre dois grupos políticos na época da organização territorial da Argentina: federales (representavam as províncias, a população gaucha e preferiam um governo descentralizado e mais voltado para as questões locais) e unitários (representavam a capital, queriam um governo centralizado na mesma e defendiam os ideais iluministas). Tanto Echeverría quanto Ascasubi eram unitários e trataram a disputa como uma luta entre a barbárie que precisava ser civilizada (federales) e a civilização (unitários). As críticas mais comuns, encabeçadas pelos intelectuais engajados no Revisionismo Histórico de Argentina, estudos que apresentam outra versão para a História

oficial de substrato iluminista, costumam analisar o conto de Borges e Casares como um elitismo ressentido no qual os peronistas representariam a barbárie, argumento que corroboram destacando a forma sarcástica com que Borges e Casares descrevem a massa popular. Porém, duas questões merecem ser postas. Em primeiro lugar, concordamos com alguns críticos literários argentinos como Paola Cortés Rocca, quem afirma que o incômodo de Borges e Casares não tinha relação com certo elitismo ressentido com o protagonismo das classes populares no governo peronista, mas, sim, com o populismo que incitava o fanatismo cego e reprimia, sutilmente, as vozes dissonantes, impedindo o debate: “Lo que parece exasperar a Borges y a Bioy Casares no es tanto la visibilidad de cierta clase social en el espacio público sino el mecanismo mismo de la representación política que constituye al peronismo y sus modos de legitimación de poder.” (CORTÉS ROCCA, DIELEKE, SORIA (Eds.), 2010, p. 189). Com isso, seguimos defendendo o respeito e a admiração que Bioy Casares revela ter, tanto em sua ficção quanto em entrevistas já citadas, pela cultura popular argentina, sobretudo no que tem de irreverente, o que já se discutiu na análise do personagem Gordo Picardo e será discutido, ainda, com Ceferina e seus ditos populares.

Para essa seção, que analisa o papel de Standle, o professor alemão da escola de cachorros, interessa discutir a forma como ele é caracterizado por Casares e a questão que se pode levantar sobre o tema do nazismo. Se em “La fiesta del Monstruo” a insinuação sobre a relação do peronismo com nazistas está claramente posta na passagem em que os seguidores do “monstro” matam o estudante judeu, cena pouco sutil que pode ser explicada pela confissão de Casares de que ele e Borges escreveram o conto em um momento de ódio ao peronismo; em Dormir al sol, ficção primorosa do escritor, tudo é feito com uma argúcia narrativa que tanto pode levar a uma leitura das cenas como discussão de um fato histórico quanto como provocação do debate que esse fato, então questionável, suscita. Novamente, um dos recursos estéticos do escritor é o riso que ao ser estimulado após uma sutil referência ao fato histórico, arrefece o engajamento do leitor e, dessa forma e a partir de então, retira-se desse fato seu caráter de acontecimento. Percebe-se, assim, uma estratégia narrativa que não afirma totalmente, mas tampouco nega a questão. Além de todas as lendas criadas pelos vizinhos, já mencionadas, a passagem mais interessante para se comentar o assunto é a da visita que Bordenave faz ao professor em sua escola depois da internação de Diana. O relojoeiro repara todo o ambiente em que é recebido por Standle: “En el cuartito faltaba aire. De las paredes colgaban retratos de perros enmarcados como si fueran personas y una acuarela que presentaba un barco de guerra, en cuya proa descifré la palabra Tirpitz.” (CASARES, 2005, p. 40). A inocência de Bordenave, que ignora ser o Tirpitz um couraçado

nazista, dá o tom cômico a uma cena que evoca justamente a discussão sobre as relações estreitas de Perón com o nazismo. O relojoeiro cita o couraçado como se descrevesse um navio de guerra qualquer e tanto o riso que provoca no leitor por seu jeito trapalhão quanto o fato de que em nenhum momento da trama o quadro é usado ou discutido como prova concreta contra Standle, fazem com que o tema seja tratado da seguinte maneira: se é lenda já virou fato, se é fato já virou lenda. Porém, repetimos, a questão é lançada pelo escritor quando trata do personagem, que é comparsa dos doutores Samaniego e Campolongo em seus planos imunizantes.

No documento Experiências do excesso: Casares & Bellatin (páginas 119-124)

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