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Voltamos aos mapas. Trata-se de uma impressão francesa do ano de 1820. O que nos chama atenção é justamente o registro “Cabinet de Histoire Naturelle”. Mas há na sequência outro mapa que nos interessa. Está incorporado à obra “Vistas e Costumes do Rio de Janeiro” do viajante Henry Chamberlain (1943), que esteve no Brasil entre 1819 e 1820. Nele estão representados alguns espaços que nos interessam situar: Academia Militar (D) e Erário Régio (C).

Voltamos ao deslocamento das coleções que saíram da Casa dos Pássaros. A coleção foi para o Arsenal de Guerra instalado na Casa do Trem, onde também funcionava, em algumas salas, a Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho, criada em 1792, transformada em 1810 em Academia Real Militar. Foi instalada após 1812 no Largo de São Francisco, em uma construção da inacabada Catedral do Rio de Janeiro306. Provavelmente esta coleção acompanhou esse deslocamento.307

Mas há também outra coleção que nos interessa e que provavelmente ocupou os mesmos espaços e teve um deslocamento semelhante àquela coleção da Casa dos Pássaros. Trata-se de uma coleção de minerais. Indícios dessa coleção estão presentes no relatório308 de Schereibers sobre a missão científica Austríaca. Ele relata algumas notícias trazidas pelo conde von Schonfeld, que havia retornado do Brasil, chegando na Áustria em 26 de fevereiro de 1818. A notícia parece-nos reveladora da conformação e do reconhecimento na cidade do Rio de Janeiro de um espaço de colecionismo e também, com isso, de exibição de coleções. “No Real Gabinete do Rio de Janeiro, supervisionado pelo barão von Eschwege, diretor das minas em Minas Gerais, encontra-se a famosa coleção de minerais Pabst v. Chain, já escrita

306 Decreto de 22 de janeiro de 1811. Manda destinar o edifício da Sé para o estabelecimento da Academia Real Militar. “Sendo servido destinar o edifício da Sé para os estabelecimentos do arquivo e das aulas da nova Academia Real Militar, gabinetes de física, química, história natural e mineralogia: ordeno que se execute o plano que baixa com este apresentado pelo Brigadeiro João Manoel da Silva, Inspetor dos Engenheiros, procedendo aos reparos e acomodações necessárias para o dito efeito, cuja despesa deve ser satisfeita pelo meu real Erário na conformidade do que propõe o mesmo Brigadeiro no seu ofício que acompanha o mencionado plano. O Conde de Aguiar, do Conselho de Estado, Ministro Assistente ao Despacho e Presidente do Real Erario, o tenha assim entendido e faça executar. Palácio do Rio de Janeiro, em 22 de janeiro de 1811. Com rubrica do príncipe Regente Nosso Senhor”.

307 Leontsinis (1997), afirma que as coleções passaram do Arsenal de Guerra para a Academia Real Militar. 308 SCHREIBERS, Karl Von. Notícias dos Naturalistas Imperiais Austríacos no Brasil – Resultado de suas atividades (1820). Revista do IHGB, Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa Nacional, v. 283, p. 191-254, abr./jun. 1869. (Tradução de Lavínia Ribeiro da Fonseca).

por Werner, a par de rica série de cristais de diamante de Câmara e ainda uma coleção de minérios trazida por Eschwege”.309

O relato de von Schonfeld é acompanhado da descrição do deslocamento e da formação dessa coleção de minerais: “Essa famosa coleção foi adquirida para Lisboa pelo já falecido amante das ciências naturais o ministro português conde da Barca, durante sua estada em Freiberg, e de lá transportada ao Brasil juntamente com os bens da coroa”. O relatório afirma que foi dada a Eschwege “a incumbência de por em ordem essa coleção e por ela zelar, tendo sido a mesma destinada à Academia Militar não se encontrando porém, ainda, em nenhum lugar conveniente”. Schereibers ainda indica a tradução para o português do “catálogo de Werner” e ainda aponta que “um monge, frei José da Costa, realiza preleções sobre mineralogia”.310 Azevedo (1887), também descreve a formação e o deslocamento dessa coleção:

Por diligencias do general Napion viera da Alemanha um gabinete mineralógico destinado ao uso dos estudantes da academia militar, tendo sido essa coleção comprada ao cavaleiro Tabest de Ohaim por 12:000$000; era quase toda composta de minerais metalíferos classificados segundo o systema de Werner, e depois de permanecer dois anos no arsenal passou para a academia militar, ficando sob a direção do professor de mineralogia frei José da Costa Azevedo, que conduziu-a para o museu e colocou-a na sala principal. (AZEVEDO, 1877, p. 222)

Diante da descrição que compõe o relatório da Missão Austríaca é possível interpor algumas possibilidades de deslocamentos e formação de coleções. Von Schonfeld dá notícias de uma coleção inserida em um “Real Gabinete”. Provavelmente está a mencionar o Real Gabinete de Mineralogia do Rio de Janeiro, criado em 1810. Mas a indicação remete à Academia Militar como o local de guarda ou destino. Contemporâneo a esse relato foi promulgado um decreto em 1818 que oficializava a criação de Gabinete de Mineralogia e História Natural na Academia Real Militar.311 Desse modo, podemos também pensar que esse decreto oficializa, sobretudo, a tentativa de amálgama de duas coleções: a de minerais e aquela advinda da Casa dos Pássaros – mais cuidadosamente uma coleção de “história natural”. Além dessas sobreposições há que se chamar atenção a referência ao Frei José da

309 SCHREIBERS, Karl Von. Notícias dos Naturalistas Imperiais Austríacos no Brasil – Resultado de suas atividades (1820). Revista do IHGB, Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa Nacional, v. 283, p. 191-254, abr./jun. 1869. (Tradução de Lavínia Ribeiro da Fonseca).

310 SCHREIBERS, Karl Von. Notícias dos Naturalistas Imperiais Austríacos no Brasil – Resultado de suas atividades (1820). Revista do IHGB, Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa Nacional, v. 283, p. 191-254, abr./jun. 1869. (Tradução de Lavínia Ribeiro da Fonseca).

311 BRASIL. Decreto, de 22 de janeiro de 1818 – Cria na Academia Real Militar desta Corte um Gabinete de produtos de Mineralogia e História Natural.

Costa tanto no relato de Schereibers e Azevedo, quanto no decreto de criação do Gabinete da Academia Militar:

Tendo em contemplação os bons serviços que me tem prestado Fr. José da Costa e Azevedo no lugar de lente da cadeira de historia natural na Academia Real Militar desta Corte, de que tem a propriedade, e convindo ao meu real serviço que ele passe para a Cadeira de Mineralogia na mesma Academia; sou servido nomeá-lo lente proprietário desta cadeira com o ordenado correspondente; havendo, outrossim por bem conceder-lhe a administração e inspeção do Gabinete dos produtos de Mineralogia e História Natural, que hei por bem criar na mesma Academia, a qual servirá com a gratificação anual de 150$000 por este cargo, além do ordenamento de sua cadeira.312

A tentativa de problematizar o deslocamento dessas coleções está muito mais relacionada à perspectiva de uma historicidade impregnada às dinâmicas institucionais e também à trajetória e aos interesses de alguns sujeitos. Parece-nos que mesmo que haja transformações na conformação da coleção, principalmente daquela advinda da Casa dos Pássaros, a Academia Militar forjou-se como espaço de ensino e convergiu gestos colecionistas naquele dado momento. Podemos ainda sublinhar que provavelmente isso tenha se configurado também pela presença de Frei José da Costa Azevedo. Mesmo que corramos os riscos de uma nota biográfica bastante superficial é preciso salientar que Costa Azevedo tece sua formação em instituições portuguesas, perpassando o Colégio dos Nobres e Coimbra. De retorno ao Brasil assume a cadeira de mineralogia da Academia Militar.313 Parece-nos que desse lugar que ocupa e, principalmente, como responsável pelas coleções de história natural da mesma instituição, que estaria implicado à criação do Museu Nacional ocupando o cargo de primeiro diretor do Museu Nacional.

Sublinhamos diferentes aspectos que, sobrepostos, conferem camadas de sentido à criação do Museu Real nos idos de 1818. Na nossa percepção não há uma linearidade, uma coerência explícita, desencadeada, que culminou na conformação de um museu. Muito menos a criação se dá de maneira desconexa a um tempo. São fragmentos e estilhaços que conformam um quadro propício. Não há hierarquia nesses diferentes aspectos e muito menos causalidade e linearidade. Nesse exercício encontramos: transferência da corte, ressignificação do espaço urbano do Rio de Janeiro, a vinda de Leopoldina,314 a presença da

312 BRASIL. Decreto de 22 de Janeiro de 1818. Cria na Academia Real Militar desta Corte um Gabinete de produtos de Mineralogia e História Natural.

313 “Inclinado às doutrinas filosóficas e às ciências naturais granjeou em pouco tempo o monge brasileiro a reputação de profundo filósofo e de distinto naturalista; foi convidado para reger a cadeira pública de filosofia em Lisboa, e a academia real de ciências, há pouco instituída, ofereceu-lhe o diploma de sócio correspondente” (AZEVEDO, 1877, p. 240).

314 Leontsinis (1997), ao problematizar a participação de Leopoldina na criação do Museu Real, afirma que do interesse pelas ciências naturais originaram-se os pedidos a D. João VI para a criação da instituição (p. 57).

Missão Científica Austríaca, trânsito de naturalistas e coleções. Encontramos também estilhaçados gestos do colecionismo português conformados no final do século XVIII. Carregam esses estilhaços sujeitos e textos. Vamos a esses. Mas antes uma mônada:

Querendo propagar os conhecimentos e estudos das Ciências naturais no Reino do Brasil, que encerra em si milhares de objetos dignos de observação e exame, e que podem ser empregados em beneficio do Comércio, da Indústria e das Artes que muito desejo favorecer, como grandes mananciais de riqueza: Hei por bem que nesta Corte se estabeleça um Museu Real para onde passem quanto antes, os instrumentos maquinas e gabinetes que já existem dispersos por outros lugares, ficando tudo a cargo das pessoas que Eu para o futuro nomear.315

A casa em construção de João Rodrigues Pereira de Almeida, no Campo de Santana, é escolhida para abrigar o Museu:

E sendo-me presente que a morada de casas que no Campo de Santana ocupa o seu proprietário, João Rodrigues Pereira de Almeida, reúne as proporções e cômodos convenientes ao dito estabelecimento, e que o mencionado proprietário voluntariamente se presta a vendê-la pela quantia de 32:000$00, por me fazer serviço: Sou servido a aceitar oferta [...]”. D. João VI assina o decreto de fundação do Museu Real.316

Reconhecemos, inspiradas em Lopes (2009), que o Museu Nacional não é uma continuidade da Casa dos Pássaros. Mas há fragmentos dele: não só nas coleções, mas no desejo, nos sujeitos, nos gestos. Podemos sim concordar com a autora de que a criação do Museu Nacional articula-se, sobretudo, com o desejo de conformação de um “Museu Metropolitano, de caráter universal” (p.41). Mas isso não implica somente rupturas, principalmente com um modus experimentado nas últimas décadas do século XVIII. Sinalizamos continuidades. Se o desejo era de um Museu Metropolitano, sua inspiração também está no molde dos museus portugueses. Mas também isso: a cidade se metropolizava.

315 BRASIL. Decreto de 6 de junho de 1818. Cria um Museu nesta Corte, e manda que ele seja estabelecido em um prédio do Campo de Santa’Ana que manda comprar e incorporar aos próprios da Coroa.

316 Palácio do Rio de Janeiro em 6 de junho de 1818. Rubrica de D. João VI, Decreto de fundação do Museu Nacional.

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