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Ainda em sonho o museu se projetava em uma instrução: Instrucção para os viajantes e empregados nas colonias sôbre a maneira de colher, conservar, e remeter os objectos de historia natural arranjada pela administração do R. Museu de Historia Natural de Paris. (....) Augmentada, em notas, de muitas das instruções aos correspondentes da Academia R. das Sciencias de Lisboa, impressas em 1781; e precedida de algumas reflexões sôbre a historia natural do Brazil, e estabelecimento do museu e jardim botânico em a Côrte do Rio de Janeiro.317 Texto sem referência de autoria. Porém, escrito por alguém que conhecia o fazer da história natural sob diferentes aspectos: o interesse colecionista, viajantes e naturalistas, textos e produção científica, instruções, instituições. Alguém que olhava para a natureza do Brasil a partir de uma história natural europeia, ou das chaves de leitura que ela oferecia. Cita a teoria de M. Geoffroy St. Hillaire sobre a “analogia de estruturas, que existe entre os peixes, os pássaros, os quadrupedes, e o homem”. Recupera também a teoria de Buffon sobre a diversidade das formas e a complexidade da natureza associadas à distribuição geográfica.318 Mas desse olhar buscava especificidades: “Sendo a Instrucção, que agora traduzo, feita com vistas no aumento dos Estabelecimentos de Paris; e sendo as Breves Instrucções Portuguesas para formar um Museu Nacional em Lisboa; julgo conveniente indicar as seguintes reflexões, privativas à História Natural do Brasil; e ao estabelecimento do Museu e do Jardim Botânico em o Rio de Janeiro”.319 Portanto, antes de perscrutar o museu imaginário que esse texto esboçava é preciso alguns apontamentos.

A elaboração dessas instruções indica como a concepção de um museu de história natural no Rio de Janeiro, no princípio do século XIX, esteve impregnada dos modos de fazer dessa ciência conformados no século XVIII. Mais que uma suposta ruptura com a mudança de século e, principalmente, com o deslocamento do lugar da coleção, há permanências. Se

317 Lopes (2009) ressalta aspectos da institucionalização do Museu Real. Dentre esses, a elaboração de decreto de criação, a compra da morada no Campo de Santana, a prescrição de transferência das coleções que se achavam dispersas e a reimpressão de uma “Instrução para viajantes e empregados nas colônias sobre a maneira de colher, conservar e remeter os objetos de História Natural” (p. 44). Tal instrução comporia, para a autora, um documento norteador para “propagar os conhecimentos e os estudos das ciências naturais no Reino do Brasil” e orientar as atividades de coleta e envio de espécimes e amostras para o Museu. Lopes (2009), ressalta como tal instrução sublinha e perspectiva um caráter metropolitano e universal, organizando, de certa forma, uma rede de colecionamento, que se desejava estabelecer no Império. Além disso, ressaltamos que o nosso interesse está, sobretudo, nos modos de exibição que tais instruções delineiam. Obviamente que nem sempre tais aspectos estão explícitos ou trazem prescrições pormenorizadas sobre tal aspecto. É preciso ler nas entrelinhas e privilegiar aspectos que são, geralmente, pouco discutidos pela historiografia – das ciências, dos museus e das coleções. Dessa forma, há detalhes que ganham protagonismo nessa análise.

318 Sobre esse aspecto ver Kury (1998) e Lopes (2005).

apontarmos para a argumentação do autor não nos parece que a tradução das instruções francesas anunciadas logo no título tenha sido o principal objetivo da publicação. Mais coerente é pensar que a criação do Real Museu e Gabinete de História Natural no Rio de Janeiro tenha motivado um retorno aos textos de instruções e métodos da História Natural. Era, portanto, um momento oportuno ou como escreve o autor “pareceu pois a propósito” a tradução da “Instrução que o ano passado deram em Paris, para o aumento dos mesmos Estabelecimentos naquela Cidade, os respectivos Professores Administradores”.320 Não há aí, e isso se reflete na construção textual das instruções brasileiras, uma subordinação a um modelo francês. Apontamos, portanto, para uma estratégia de publicação de alguém enfronhado na imprensa.321

O autor, apesar de propor a tradução de uma instrução francesa, tem em seu ateliê de escrita um conjunto de textos publicados no Reino Português. Grifa e recupera, principalmente, as “Breves Instruções aos correspondentes da Academia das Ciências” de Lisboa, publicadas em 1781. O interessante é que o autor apresenta ao leitor textos que foram impressos. Dentre esses, o texto das Breves Instruções, que de forma transcrita, ocupou grande parte do impresso.322 Há outros: “Diccionario dos Termos technicos de História Natural” e “Memória sobre a utilidade dos Jardins Botanicos, a respeito da Agricultura, e principalmente da cultivação das charnecas” de Domingos Vandelli. Faz referência à publicação de 1793, “Princípios de Agricultura Philosofica” de Félix de Avellar Brotero. Também há referências à Universidade de Coimbra, seja pela apresentação dos professores e obras, seja referenciando aulas ou as publicações do Jornal de Coimbra. Estamos a falar de um autor que mobiliza e participa da circulação de impressos.

As instruções fazem referência a um repertório textual e também mobilizou a experiência de instituições portuguesas. Os exemplos e a inspiração estavam no Museu de Coimbra e no Museu da Ajuda. É preciso marcar essa alusão.

320 Instrucção para os viajantes e empregados nas colonias…, 1819.

321 Brigola (2003) e Lopes (1997) apresentam uma discussão sobre a possível autoria dessa Instrução. Apontam, principalmente, para dois nomes: Fr. Leandro do Sacramento e Dr. José Feliciano de Castilho. A leitura atenta do documento permite identificar a referência ao Fr. Leandro do Sacramento como “Lente de Botânica e Agricultura no Rio de Janeiro”. Seria curioso que o autor citasse seu nome entre os naturalistas que viajavam pelo Brasil naquele momento. Brigola (2003), inclina-se para a hipótese de autoria de José Feliciano de Castilho, fundador e diretor do Jornal de Coimbra, ressaltando, “sobretudo, entre outros indícios menos relevantes, pela evidência de um conhecimento profundo dos textos publicados naquele periódico científico” (p.207).

322 O autor faz a transcrição do capítulo IV das Breves Instruções (1781) “Das notícias pertencentes à História Natural”. Provavelmente, seu desejo era reforçar a argumentação sobre os cuidados nas remessas, sobretudo das informações pormenorizadas que deveriam acompanhar as amostras. Ao final da publicação com o título “Notas” há outras partes transcritas das Breves Instruções, como dos capítulos I “Das remessas dos Animais” e III “Das remessas dos Minerais”.

Constrói um argumento legitimador para o estabelecimento de um museu na América Meridional, trazendo exemplos de animais que para ele, “aqui são exclusivamente produzidos”. Por isso aconselha: “é evidente que devemos por todo o cuidado em conhecer os Produtos naturais desta importante Parte do Mundo; e esperar dele grandes resultados para as Ciências e para as Artes”. Há aí um deslocamento na argumentação do autor: o Brasil deixa de ser apenas um lugar “colecionável”. Dá notícia das coleções remetidas à Europa pelos viajantes estrangeiros, inclusive a Expedição Científica Austríaca, cujos membros, alguns ainda se encontravam no Brasil. Contudo, o autor sublinha esse deslocamento: “As coleções e as obras destes Naturalistas tem dado boa, mas não exata ideia da História Natural do Brasil” Para o autor, “só de naturalistas dignos e judiciosamente empregados no Brasil por toda a sua vida se poderá esperar uma série de observações sabiamente feitas, comparadas, e sistematizadas [...].”323 Também por isso parece cuidadoso na listagem de publicações (memórias, tratados, artigo em periódico) de naturalistas luso-brasileiros. Comparativamente também cita naturalistas luso-brasileiros e estrangeiros que, naquela altura, estavam a viajar pelo país.

Portanto, mais que um conjunto de prescrições apresentadas geralmente em um texto de instruções, o autor se propõe a apresentar um “ponto de situação” da história natural. Parece-nos que tal proposta narrativa, que sobrepõe informações sobre publicações, naturalistas-viajantes, transcrição e tradução de textos buscava legitimar a conformação de um museu no Rio de Janeiro. Muito mais que orientar e prescrever seu funcionamento.

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