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Capítulo 3. Indústria da música e sua relação com a crítica

3.2. Cadeia produtiva da música

Indústria da música e cadeia produtiva da música são duas noções que muitas vezes se confundem. Entretanto, não podemos considerá-los sinônimos. Como vimos anteriormente, a indústria da música diz respeito efetivamente as pessoas envolvidas nos processos do filão dos discos e shows. Suas relações comerciais são mais simples e diretas. E, ainda assim, essas relações não envolvem os terceiros - como, por exemplos, empresas de distribuição e varejo - no que podemos entender por indústria da música.

A cadeia produtiva, no entanto, envolve um processo que é mais inclusivo. Leonardo Salazar (2010) ao fazer uma relação de agentes dessa cadeia, cita algumas relações que são mais evidentes, como o artista (interprete e compositor) e também o agente de shows, DJ, produtor musical e executivo e o promoter. Mas o que é ainda mais interessante para ajudar a construir essa ideia de cadeia produtiva são agentes listados como advogados, designers, contadores, sindicatos, governo e fornecedores em geral.

Se imaginarmos, portanto, a situação hipotética de uma apresentação musical, entrariam como membros dessa cadeia produtiva - destrinchando a ideia de fornecedores - pessoas nas funções de seguranças, barmans, vendedores ambulantes, cozinheiros, etc. Toda função e todo emprego gerado, mesmo que indiretamente, na jornada de fornecer uma experiência musical ao público final. Com a consciência - mesmo que não militante a isso - do esforço no entorno dessa causa. A cadeia produtiva da música é formada todos aqueles que trabalham, em algum momento de seu cotidiano, mesmo que indiretamente, em favor dessas experiências.

É um fluxograma observado na forma de fractal - uma imagem onde não existe um começo ou fim de suas conexões - como propões Prestes Filho (2004) em seu estudo sobre a economia da música no Brasil. Uma contribuição importante dessa percepção é a presença não apenas desses profissionais associados, mas do público. O público como elemento ativo, contrariando as propostas originais referentes a indústria cultural, e transformador do contexto musical que está inserido. Que reconhece esses demais agentes de formas mais natural, ao ponto de interagir cotidianamente com eles.

Isso ganha novo sentido principalmente se encararmos o impacto do potencial local (ou mesmo glocal) de uma cadeia produtiva. Não estamos falando de uma música que passa por grandes empresas, que circula em uma mídia nacional, nem estará presente nas grandes lojas. Mas que faz parte da construção, por exemplo, de uma cena musical. Onde artistas locais interagem com um público local, junto com fornecedores locais, dando vida a uma determinada expressão artística que é característica de uma cidade, ou mesmo de um bairro de uma cidade. Nesse contexto, a cadeia produtiva se torna uma proposta de participação consciente de seus atores.

Associando essa proposta conceitual a relativização que foi apresentada anteriormente, é importante pontuar que não existe uma cadeia produtiva definitiva, mas diversas cadeias produtivas. Afinal, nem todos os agentes presentes em um determinado gênero estarão presentes, ou mesmo terão o mesmo capital social, quando se tratar de outros gêneros e outras cenas musicais. Inclusive, e fundamental para as relações que serão construídas aqui, no que diz respeito a imprensa musical e a crítica em diversos gêneros. A crítica musical, por exemplo, não desempenha o mesmo papel na cadeia produtiva da música gospel que desempenha no caso do rock. Em outros casos, a crítica sequer estará presente e dará espaço, por exemplo, para o jornalismo de celebridades.

Desde já, é importante pontuar algo que aparece em comum acordo as categorizações apresentadas por Prestes Filho, Salazar e outros autores, como Micael Herschmann, é a participação da imprensa e da crítica como agente possível da cadeia produtiva da música. O que é interessante observar nessa interseção é que todos os autores têm um direcionamento bem claro a uma cadeia

produtiva composta por novos artistas - ou, como chamam, artistas independentes - e de fora de uma estrutura impulsionada por grandes corporações de mídia. E, nesse contexto, ganham um sentido quase militante.

Isso é visível, por exemplo, quando Salazar, ao listar esses agentes, fala da imprensa:

A imprensa é fundamental no mercado brasileiro para divulgar a música independente na grande mídia. Sem dinheiro para investir em campanhas midiáticas, resta ao artista independente recorrer aos espaços jornalísticos dos cadernos de cultura dos jornais, às revistas especializadas, aos blogs, aos programas de rádio e televisão. O papel da imprensa é informar o público, analisar a obra, promover o artista, executar o fonograma (rádio ou televisão). [...] Geralmente eles são bem receptivos em relação aos novos artistas. Cabe destacar a figura do assessor de imprensa, profissional igualmente jornalista que faz a ponte entre o veículo de comunicação e o artista (SALAZR, 2010, p.44).

Merschmann fala sobre como a região da Lapa, no Rio de Janeiro, se configura como uma cadeia produtiva própria para o samba, como exemplo da diversidade que essas cadeias produtivas podem se configurar. Em seu exemplo o autor demonstra como a imprensa especializada também faz parte dessa cadeia de agentes:

Com o tempo, essas experiências nesses países anglo-saxõoes terminaram por elaborar mercados com alguma especificidade, dedicados principalmente às produções independentes, como a criação de veículos de comunicação especializados [...] que não atuavam exatamente dentro da lógica do

mainstream (HERSCHMANN, 2007, p. 23).

O objetivo final desse sistema de relações e interações sociais e comerciais que constitui a cadeia produtiva da música está não apenas a colocação de um produto musical no mercado, mas a manutenção do próprio processo. Se considerarmos os produtos finais mais importantes da indústria da música - o disco e o show - e aplicá-los nesse contexto, temos um organismo vivo formado por estúdios de gravação, vendedores de instrumentos, escolas de música, bares, restaurantes e o mais variado tipo de comércio informal. Além de lojas de discos, de roupas, os já citados serviços terceirizados e tudo o que mais envolve um ouvinte de música a determinada canção.

Cadeia produtiva da música, portanto, é um conceito muito mais próximo ao de cena musical, que o de indústria da música. Como podemos perceber na afirmação a seguir, trata-se de:

[...] Relação orgânica entre a música e a história cultural local e as maneiras nas quais a cena emergente usa a música apropriada via os fluxos globais e redes para construir narrativas particulares locais (BENNET & PETERSON, 2004, p. 07).

Freire Filho e Fernandes conectam essa ideia da construção narrativa as práticas urbanas para consolidar uma noção ainda mais consistente de cena musical:

A utilização do conceito de cena permite escaparmos de uma descrição mais restrita da mecânica da experiência sociomusical, ampliando o escopo da análise, passando a considerar a rede de afiliações mais ampla que permeia atividade musical [...] Lançar mão do conceito de cenas musicais – como moldura analítica para o estudo da lógica de formação das alianças, no campo da experiência musical independente da cidade – pode ajudar a capturar, mais integralmente, a gama de forças que afetam a prática musical urbana. (FREIRE FILHO, 2006, p. 33).

Nesse sentido, conectando portanto as ideias de cena e cadeia produtiva é interessante e um tanto inevitável a metáfora da rede apresentada por Prestes Filho et al:

Cadeia produtiva da economia da música é um complexo híbrido, constituído pelo conjunto de atividades industriais e serviços especializados que se relacionam em rede, complementando-se num sistema de interdependência para consecução de objetivos comuns artístico, econômico e empresarial (PRESTES FILHO, 2004, p. 29)

Com isso construímos uma relação entre agentes da música que passa por um sistema comercial, mas tem uma relação simbiótica ainda mais forte. Diferente de um modelo clássico de processo da indústria da música, onde uma relação entre um artista e gravadora ou uma gravadora e um fornecedor pode encerrar repentinamente por algum direcionamento institucional ou necessidade financeira. No organismo vivo que é a cadeia produtiva, encontramos os artistas que abrem mão do cachê, os técnicos de som que trabalham por uma ajuda de custo e, no

ponto que interessa mais a esta pesquisa, o jornalista, blogueiro e fanzineiro que frequenta e escreve sobre determinados contextos musicais não por estar sendo pautado por um editor, mas por se reconhecer e participar de uma cena ou cadeia produtiva local.

A metáfora da rede, que será abordada em detalhes no próximo capítulo, é fundamental neste ponto. A cadeia produtiva da música - e do livro, do filme e qualquer outra área de economia da cultura - tem na base de suas engrenagens um sistema de trocas simbólicas e de capital cultural por vezes mais forte e recorrente que a troca comercial clássica. Muitas das ações desencadeadas nesse contexto também dizem respeito a pura manutenção do status quo dentro da rede. Um sentimento que vai além do pertencimento e ganha força na militância, tão comum ao que está na superfície do senso comum em relação às cenas musicais.

Podemos, desta forma, compreender que a indústria da música tradicional - as grandes gravadoras e sua relação com corporações de mídia e etc - não é um sinônimo, mas uma das diversas partes que compõe o que podemos chamar de cadeia produtiva da música. A relação entre essas duas instancias sempre teve limites muito bem estabelecidos, por vezes com uma compreensão própria, como o uso do termo mainstream para explicar o que faz parte da indústria e “alternativo” para delimitar o que faz parte da cadeia produtiva, mas estando fora dessa indústria tradicional. Esses limites, como veremos logo a seguir, perdem um pouco de - ou ganham novo - sentido com a chegada da internet.

Estamos falando, até então, de uma noção construída com a limitação tecnológica e comunicacional presente até a primeira metade da década de 1990. Onde uma mídia de massa era decisiva tanto para um resultado de sucesso para um determinado artista, tanto quanto uma crítica considerada de referência precisava fazer parte de um sistema de mídia de massa. Como vimos no primeiro capítulo desta tese, muito do que se estabelece no Brasil em termos de crítica vem de jornais tradicionais, como a Folha de S. Paulo e o Globo, assim como, no que diz respeito específico a música, a revistas como Showbizz e, mais recentemente, Rolling Stone Brasil e Billboard Brasil. Uma mídia, como também foi pontuado, refém do potencial agendador da indústria do entretenimento como um todo.

É notável que todas relações e processos listados até então no que diz respeito a indústria e cadeia produtiva da música, não se basta em artistas de um mínimo de reconhecimento público. Citando, mais uma vez, Steve Jobs, “a música sempre esteve e sempre estará presente”, o que significa que para cada Roberto Carlos, temos centenas de outros cantores trabalhando cotidianamente sua música. Na segunda metade da década de 90 e a popularização da internet doméstica, presenciamos o surgimento de ferramentas que dão uma vazão maior a esses esforços menores e chega, inclusive, a relativizar um pouco da própria noção de sucesso. Como veremos a seguir, temos não uma mudança, mas um processo de mudança de paradigma, com o próprio negócio das grandes gravadoras em posição questionável.

Mesmo tratando de instâncias diferentes, o impacto da indústria da música - pelos seus números, seu poder econômico e potencial agendador através da mídia tradicional - é suficiente para ditar muitas das regras que o restante da cadeia produtiva da música interage. Mesmo não fazendo parte dessa estrutura, a parte independente / alternativa sempre trabalhou na mesma lógica e dinâmica de produção, circulação e consumo. E a internet traz uma mudança nesse contexto. Mudança que causa um impacto decisivo na crítica e nas possibilidades de surgimento de uma nova crítica dentro desse novo contexto musical.