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PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS E TÉCNICOS

2.2 Cadeias operatórias e sistemas técnicos

Marcel Mauss foi quem empregou primeiramente a noção de técnica, para ele “técnica é qualquer ato eficaz e tradicional, sendo o corpo o primeiro e o mais natural objeto técnico, e ao mesmo tempo, meio técnico do homem” (MAUSS, 2003, p. 407). Mauss percebeu a arbitrariedade cultural de nossos comportamentos mais casuais, sendo que as técnicas corporais são culturalmente apreendidas, de forma que os gestos também seriam. Lemonnier (1992, p. 1) considerou Marcel Mauss como o inspirador desta que costuma ser chamada de “antropologia das técnicas”.

Mauss (1993) também aborda a tecnicidade tradicional como processo, como série de etapas de transformação da matéria ao tratar das técnicas nas sociedades primitivas:

Princípios gerais da observação - todo o objeto deve ser estudado: 1º em si mesmo; 2º em relação às pessoas que se servem dele; 3º em relação à totalidade do sistema observado. O modo de fabricação dará lugar a um inquérito aprofundado: o material é local ou não? Certas calcites foram transportadas ao longo de distâncias consideráveis; a procura de jazigos de sílex é característica de toda a era paleolítica e neolítica; várias tribos australianas vão procurar o ocre a seiscentos quilômetros de distância. [...] Por vezes, ainda, a ferramenta é emprestada já fabricada. Estudo dos diferentes momentos de fabricação desde o material bruto até o objeto acabado. Estudar-se-á, em seguida, da mesma maneira, o modo de emprego e a produção de cada ferramenta (MAUSS, 1993, p. 47).

Em seu Manual de Etnografia, Mauss não deixa dúvidas sobre a busca pelo fato social total, quando define fato tecnológico para se chegar a outras dimensões: o objeto, as pessoas, o sistema:

Os trabalhos etnográficos apresentam demasiadas vezes o aspecto de uma caricatura: aquele que se interessa pela museografia negligenciará, com efeito, tudo o que não for cultura material; outro, especializado no estudo das religiões, só verá cultos, santuários e magia; outro ainda só procurará fenômenos econômicos (MAUSS, 1993, p. 28).

Lemonnier, no mesmo sentido de Mauss, trata a tecnologia como uma construção social que deve ser analisada dentro da noção de sistema, compreendido a partir: a) das técnicas em si; b) do conjunto de técnicas; c) do sistema técnico em comparação com os demais sistemas culturais (LEMONNIER, 1986, p. 154). A técnica envolve uma ação efetiva sobre a matéria, energia, artefatos, gestos e conhecimento específico. Esse conhecimento

97 específico pode ser consciente ou inconsciente e envolve habilidades manuais, é também o resultado da percepção de possibilidades e escolhas, realizadas ao nível individual ou social, as quais moldaram a ação tecnológica; essas possibilidades e escolhas são, no entendimento do autor, representações sociais (LEMONNIER, 1992, p. 5).

A combinação dos conjuntos técnicos de uma dada sociedade forma seu sistema tecnológico. No caso dos arqueólogos que estudam tecnologia, é preciso entender quais foram as técnicas empregadas, como elas se relacionam entre si, para se chegar ao entendimento maior: a sociedade (LEMONNIER, 1992, p. 8-9). Segundo ele:

Como os arqueólogos sabem, muitas vezes podemos reconstruir como os artefatos foram feitos e usar a partir de sua forma, características dinâmicas, padrões de desgaste ou composição físico-química [...]. Podemos ainda experimentar alguns destes processos de fabricação e uso. Nós também podemos ter uma idéia das relações sistêmicas entre os elementos de alguns conjuntos de artefatos em uma dada sociedade. Partindo das características de artefatos, dos gestos e materiais, podemos até entrar no reino das representações sociais dos sistemas tecnológicos (LEMONNIER, 1992, p. 12).

Mauss e seu discípulo Leroi-Gourhan trouxeram o estudo das cadeias operatórias como sendo de fundamental importância no campo da tecnologia pré-histórica (BALFET, 1991). O conceito de cadeia operatória começou a ser construído num contexto de observação etnográfica, para a descrição e a documentação de técnicas tradicionais. Balfet (1991), Desrosiers (1991) e outros antropólogos europeus reconhecem Marcel Mauss como sendo precursor da noção de encadeamento para compreensão da transformação da matéria-prima em artefato.

Leroi-Gourhan, partindo da abordagem sistêmica, elaborou o conceito de “graduações de fato”, estabeleceu conexões entre a matéria-prima escolhida para debitagem ao resultado final: o artefato. Elaborou, assim, os fundamentos da cadeia operatória: busca de matéria- prima, translado até o assentamento, lascamento, emprego social, reuso etc. (LEMONNIER, 1983, 1986). Para o autor, a principal preocupação ao se fazer uma etnologia dos processos técnicos é a sequência operacional, a cadeia operatória compreende uma série de operações que levam uma matéria-prima do seu estado natural para um estado fabricado (LEMONNIER, 1986, p. 149).

O termo cadeia operatória foi apropriado pela Arqueologia, porém surgiu na etnologia, um dos autores mais importantes foi Leroi-Gourhan (1984a, 1984b), quando realizou um trabalho sistemático de análise das técnicas, fazendo referência explícita à noção de cadeias e

98 operações. A ênfase na cadeia operatória não como um fim em si, mas com o objetivo de entender as escolhas efetuadas ao longo desse processo. Nesse ponto, o trabalho de Leroi- Gourhan (1984a, p. 24-25) é importante porque compara as técnicas em diferentes sociedades, parte do mais geral (tendência), para o mais específico (fato), passando por uma série de estágios (graduações do fato) nos quais determinados elementos são compartilhados. Ao procurar entender as sequências operatórias envolvidas na produção dos artefatos e também na sua utilização, esse autor procura identificar em que ponto pode haver variações que sejam decorrentes de especificidades culturais, particularizando os objetos a grupos culturais definidos, o que em outros termos pode ser entendido como um grande mapeamento das escolhas, ou antes, das possibilidades (BUENO, 2007, p. 16-18).

Nesse sentido, cadeia operatória para Lemonnier (1986) é uma série de operações que transformam a matéria-prima em um produto acabado, ela não precisa necessariamente apresentar-se de forma linear, mas pode ser interceptada por momentos que se sucedem simultaneamente ou se sobrepõem. As sequências operacionais indicam o tipo de ação a ser processada sobre o material, a ferramenta utilizada, o estado do material, a duração, o nome da operação, a identidade do artesão. Assim, cada técnica pode ser decomposta em operações embutidas uma na outra, cada uma delas constitui uma técnica, como o autor exemplifica, dizendo que a construção de uma casa é uma técnica. Lemonnier (idem) destaca as tecnologias como sistemas de significados vinculados às relações de gênero, idade ou étnicas.

Lemonnier (1986) considera a tecnologia uma preocupação antropológica, onde as escolhas são feitas pelas sociedades a partir de um universo de possibilidades das quais as técnicas, em seus aspectos mais materiais, fazem parte. Assim, a tecnologia deve ser entendida como um sistema de relações, uma vez que cada técnica arbitrariamente definida é locus de múltiplas interações e de constantes ajustes entre os elementos, pois sem a ação que o anima e o conhecimento de seus efeitos, o artefato não é nada. Em uma sociedade, as técnicas interagem ao compartilhar os mesmos recursos, conhecimento, sítios e atores. Assim, o uso de algumas tecnologias, bem como a existência de sequências operacionais ou princípios técnicos em comum, criam múltiplas relações de interdependência entre as diferentes técnicas, conferindo a estas um caráter sistêmico. A representação cultural das técnicas e sua classificação por um dado grupo contribuem para afirmar seu caráter sistêmico e ao mesmo tempo reafirmar as identidades culturais nele representadas. O estudo das relações entre a cultura material e a sociedade torna-se, então, o estudo das condições de coexistência e transformação recíproca de um sistema tecnológico e da organização tecnológica da sociedade na qual opera (LEMONNIER, 1986, p. 154-155).

99 De acordo com Lemonnier (1986), se a tecnologia é um produto social, as escolhas tecnológicas são dinâmicas e relacionadas com as diferentes identidades sociais, dessa forma as técnicas são como produtos sociais que definem e expressam identidades. De acordo com essa lógica, grupos vizinhos, em geral, têm plena consciência das suas escolhas técnicas e a ausência de um dado traço tecnológico em um dos sistemas pode representar uma estratégia consciente de demarcação de diferenciação social. Fica evidente esse exemplo, quando Lemonnier trata dos vários grupos Anga, que tem diferentes operações técnicas para uma mesma atividade, as ações não utilizadas por um grupo podem não ser desconhecidas dos outros, que podem conhecê-las através de observação, comércio ou guerra, por isso pode-se falar em “escolhas”. A compreensão de por que determinadas escolhas foram feitas em detrimento de outras, ou seja, a arbitrariedade das escolhas tecnológicas, mapear e compreender as razões e escolhas tecnológicas envolve uma estrutura de trabalho contextual voltada para estudos particularistas e para a construção de um quadro histórico-cultural. O que se busca são especificidades, particularismos e não grandes generalizações e formulações de leis gerais do comportamento humano. Para entender a arbitrariedade das escolhas, é necessário investigar as inter-relações intrínsecas à relação estabelecida entre os sistemas tecnológicos e demais esferas da sociedade, o que por sua vez é totalmente particular e contextual (LEMONNIER, 1986, p. 154-155).

Dentro dessa perspectiva, todas as atividades têm significado; a produção e utilização dos artefatos envolvem escolhas efetuadas em um universo de possibilidades culturalmente definido; há diferentes maneiras de se fazer a mesma coisa (variações isocrésticas) que são características de um tempo e de um lugar. Assim, a tecnologia entendida como um sistema de representação social no qual estão inseridos, além de artefatos, conhecimentos/habilidades específicas, relações sociais de trabalho, redes de ensino aprendizagem, enfim, uma visão de mundo específica, não só característica de um tempo e um lugar, mas também definidora e indicadora de grupos culturais (BUENO, 2007, p. 16-18).

Esses conceitos foram criados e aplicados em sociedades vivas, mas têm sido adaptados a contextos pré-coloniais, logo é necessário cautela, já que os vestígios arqueológicos estão expostos à perda de muitas informações devido aos processos pós- depocisionais46 que ocorreram entre o tempo de abandono do sítio e sua posterior descoberta. 46

Os sítios arqueológicos são resultado da produção humana e de processos naturais de deposição, segundo Schiffer (1972), os remanescentes obtidos em escavações não são sistemas culturais fossilizados como sugeriu Binford, já que os artefatos são sujeitos a uma série de processos culturais e não-culturais que ocorrem entre o período de tempo que foram manufaturados, utilizados, descartados e, posteriormente, evidenciados nas pesquisas arqueológicas, logo, o registro arqueológico é um reflexo distorcido ou transformado do sistema comportamental do passado.

100 O conceito de técnica foi enriquecido por Leroi-Gourhan (1985a), como processo pluridimensional “[...] simultaneamente gesto ou utensílio, organizados em cadeia por uma verdadeira sintaxe que dá às séries operatórias a sua fixidez e subtileza” (LEROI- GOURHAN, 1985a, p. 117). Ele ainda trabalha com a ideia de linguagem e técnica:

As manifestações operatórias do homem inscrevem-se portanto num fundo instintivo muito importante, constituído simultaneamente por dispositivos de regulação das pulsões orgânicas profundas, comuns a todos os indivíduos, e por dispositivos apropriados à inscrição de programas operatórios, que podem apresentar variações sensíveis de pormenor de um indivíduo para outro. [...] No domínio das práticas operatórias mais correntes, a linguagem parece não ter qualquer intervenção e inúmeras ações são efetuadas num estado de consciência crepuscular que não é fundamentalmente distinto do estado em que se desenrolam as operações animais, mas, a partir do momento em que as cadeias operatórias são postas em causa pela escolha, esta escolha não se pode fazer sem a intervenção de uma consciência lúcida, intimamente ligada à linguagem. A liberdade de comportamento só é realizável a nível dos símbolos, não a nível dos actos, e a representação simbólica desses últimos é indissociável da sua confrontação (LEROI- GOURHAN, 1985b, p. 18-20).

Para Leroi-Gourhan o comportamento técnico do homem se manisfesta em três níveis: a) Nível específico “[...] a inteligência técnica do homem está ligada ao grau de evolução do seu sistema nervoso e à determinação genética das aptidões individuais; guardadas as devidas distâncias nada a distingue formalmente do comportamento animal [...]” (LEROI- GOURHAN, 1985b, p. 21), ou seja, inteligência técnica geneticamente determinada, comportamentos ligados a tradição; b) Nível sócio-étnico “Quando do seu nascimento, o indivíduo encontra-se em presença de um corpo de tradições próprias à sua etnia, [...] cuja conservação e transmissão são asseguradas em cada comunidade étnica pela linguagem” (LEROI-GOURHAN, 1985b, p. 22-23), ou seja, efeitos da coletividade social, da educação, da aquisição de um comportamento operatório por intermédio da aprendizagem, educação e experiência vão transmitir as cadeias operatórias maquinais47; c) Nível individual:

[...] a espécie humana apresenta igualmente um caráter único, visto que, dado a sua aparelhagem cerebral lhe dar a possibilidade de confrontar situações traduzidas em símbolos, o indivíduo está em condições de se 47 Fogaça (2001), com base em Leroi-Gourhan, discute a ideia de cadeias operatórias maquinais: “Nas essências

das práticas cotidianas do ser humano encontram-se as cadeias operatórias maquinais [...]. Servimo-nos constantemente da sequência de gestos estereotipados (escovar os dentes, escrever, dirigir, etc.) cujo encadeamento não faz apelo a consciência, à reflexão constante, mas não se constituem tampouco, como as cadeias operatórias automáticas. As cadeias maquinais correspondem a programas operatórios adquiridos pela aprendizagem (comunicação verbal, imitação, ensaio e erro) desde a pré-adolescência e nos limites da etnia, da comunidade social” (FOGAÇA, 2001, p. 108).

101 emancipar simbolicamente dos laços simultaneamente genéticos e sócio- étnicos” (LEROI-GOURHAN, 1985b, p. 21).

Essa ideia traduz atividades ou práticas cotidianas do ser humano, as cadeias operatórias maquinais. O conceito de sistema técnico e a sequência de operações com base na totalidade de elementos técnicos e sociais desde a aquisição da matéria-prima até o descarte contribui para o desenvolvimento desta pesquisa, especialmente no detalhamento de procedimentos necessários para a produção cerâmica das sociedades agricultoras Guarani e Itararé-Taquara que habitaram a Volta do Uvá, no alto rio Uruguai.

Nesse sentido, também prevalece o conceito de cadeia operatória proposto por Balfet (1991), segundo ela pode ser entendido como observação, descrição e análise dos processos técnicos com base em elementos sociais e técnicos. O termo “cadeia” remete, segundo a autora, para o encadeamento de procedimentos do qual resulta determinada transformação da matéria, requerendo a análise das práticas (sócio) técnicas, como primeiro passo, o recorte desse encadeamento, para efeitos de registro e sistematização. Ao se definir as etapas ou elos da cadeia, se estabelece com um conjunto de parâmetros de observações-interpretação: nome da etapa, tempo, lugar, agentes, gesto, fonte de energia, matéria, etc. (BALFET, 1991).

Ainda segundo Balfet (1991), a cadeia operatória entendida como um encadeamento de operações mentais e gestos técnicos visa satisfazer uma necessidade imediata ou não, com base num projeto pré-existente. A autora entende que uma atividade técnica de transformação da matéria para se obter um produto recobre uma realidade rica e complexa, mesmo considerando uma operação técnica elementar: gesto, instrumento, mas também ator, com seu saber técnico ligado a sua posição social. Um gesto técnico pode ser entendido como instrumento e agente de uma realidade complexa, de atividade técnica de transformação da matéria (BALFET, 1991). Nessa perspectiva, a cadeia operatória é tida com um utensílio de descrição interpretativa dos processos técnicos, a descrição é orientada em função das problemáticas a serem elucidadas, sendo que os parâmetros de observação-interpretação da cadeia operatória resultam da escolha do observador.

Desrosiers (1991) entende que o ato técnico se organiza numa série de operações que envolve três ordens de fenômenos: matérias-primas, objetos e conhecimentos técnicos, para realização da análise técnica. Segundo a autora, os conceitos operatórios em tecnologia podem variar de autor para autor de acordo com seus objetos de análise, no entanto, há um consenso de que o ato técnico não pode ser analisado isoladamente e está organizado em

102 séries de operações indispensáveis e dependentes denominados de cadeias operatórias (DESROSIERS, 1991).