• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 1 Multifaces da Gestão: do Privado ao Social

1.3. Economia Solidária: trajetória e conceitos

1.3.1. Campo conceitual da Economia Solidária

Emprega-se uma variedade de expressões no debate da economia solidária. É notório que não há precisão teórica acerca do que seja economia solidária. Este fato tem sido alvo de críticas, porém, conforme afirma Tiriba (apud Vasconcelos, 2007) “assim como construímos a realidade, construímos os conceitos”. Assim, devo frisar que o campo teórico da economia solidária encontra-se em contínua construção e reconstrução.

Entretanto, verificam-se claramente duas perspectivas distintas de compreensão e militância no campo da economia solidária. A primeira está alinhada à visão marxista de revolução social, apoiada no Brasil por Paul Singer, cujo pensamento defende que este tipo de empreendimento autogestionário surge como implantes socialistas no capitalismo e que seu êxito o tornará predominante e, paulatinamente, contribuirá para a desestruturação do sistema capitalista. Esta tese tem a limitação de vislumbrar uma hegemonia do modelo autogestionário, que incorre em perigo justamente por promover uma visão unidimensional de mundo, sem a existência de um par dialético contraditório, cerceando a liberdade de escolha do tipo de empreendimento produtivo que a população deseje criar e desenvolver.

Em contrapartida, a segunda perspectiva reforça a possibilidade das manifestações do campo da economia solidária conviverem junto ao sistema capitalista, defendendo a premissa de pluralismo econômico, onde os empreendimentos coletivos e autogestionários atuam no campo da produção e comercialização, todavia, na sua gestão predomina a racionalidade substantiva, ao invés da racionalidade instrumental usual nos empreendimentos capitalistas. É com esta perspectiva que esta pesquisa interage, na opção por qual tipo de comportamento econômico empreender, no entanto, com críticas à limitação de atuação, com livre-arbítrio na constituição e desenvolvimento do empreendimento coletivo autogestionário, devido ao fato de, por vezes, este ser financiado por empreendimentos capitalistas como “válvula de escape” para abrandar as vicissitudes sociais por estes provocadas. São estes os casos de financiamento, via Responsabilidade Social Empresarial (RSE), a associações e cooperativas de produção.

Há concepções como economia popular, economia do trabalho, economia social, economia solidária e socioeconomia solidária. Tal riqueza vocabular reflete diferentes contextos sociais e experiências distintas. Porém, encerram algo em comum, que consiste em retratar práticas econômicas e sociais baseadas na autonomia do homem perante o trabalho, na promoção da democracia e no resgate da solidariedade. Trata-se de uma lógica de

desenvolvimento sustentável com geração de trabalho e distribuição de renda, mediante o crescimento econômico com proteção dos ecossistemas (SENAES, 2008).

No quadro 1 segue uma síntese de conceitos e respectivos autores.

Quadro 1 – Campo Conceitual da Economia Solidária

Termos e Autores Conceito

Economia Popular

Ana Mercedes Sarria Icaza e Lia Tiriba

Entende-se por economia popular o conjunto de atividades econômicas e práticas desenvolvidas pelos setores populares no sentido de garantir, com a utilização de sua própria força de trabalho e dos recursos disponíveis, a satisfação de necessidades básicas, tanto materiais como imateriais (ICAZA e TIRIBA, 2003, p. 101).

Economia do Trabalho

José Luis Coraggio A economia do trabalho trata de formas de organização da produção de acordo com a lógica produtiva da vida, onde o trabalhador é sujeito da sua produção, com autonomia (CORAGGIO, 2009, p. 120).

Economia Social

André Guélin

A economia social é composta de organismos produtores de bens e serviços, colocados em condições jurídicas diversas no seio das quais, a participação dos homens resulta da livre vontade, e o poder não tem por origem a detenção do capital, e ainda, a detenção do capital não fundamenta a aplicação dos lucros (GUÉLIN, 1998 apud LECHAT, 2002).

Economia Solidária ou Economia Plural

Genauto Carvalho de França- Filho e Jean-Louis Laville

São práticas que contribuem para rearticular o econômico as outras esferas da sociedade, na perspectiva de uma sociedade mais democrática e igualitária, onde critica o reducionismo da compreensão de economia, apenas pela forma monetária, e recupera o conceito de Polanyi (1992) de que a economia é plural, constituída pelas relações baseadas em reciprocidade, redistribuição e domesticidade (FRANÇA- FILHO e LAVILLE, 2004).

Economia Solidária

Paul Singer É um resgate das organizações democráticas de produção e consumo, refletidas no socialismo, onde a democracia e a igualdade no empreendimento preponderam como autogestão (SINGER, 2003b).

Socioeconomia Solidária

Marcos Arruda

Equivale à economia solidária tendo como única diferença a ênfase no sentido social que deve pautar a verdadeira economia, gestão, cuidado da casa e, por consequência, dos que nela habitam (ARRUDA, 2003, p. 232).

Fonte: elaboração a partir de Lechat (2002), Singer (2003b), Cattani (2003), Teixeira (2007) e Cattani, Laville, Gaiger e Hespanha (2009).

O termo economia popular remete a iniciativas provindas das bases populares de comunidades e regiões pobres que buscam alternativas de subsistência. Este conceito pressupõe a negação da relação empregado-empregador. Alguns exemplos seriam as atividades assistencialistas, as filantrópicas, a atividade individual e informal (sem registro), as microempresas e os pequenos negócios individuais, ou, com dois ou três sócios, negócios familiares e organizações econômicas coletivas, populares e solidárias.

Nem todas as atividades desenvolvidas na economia popular estão alinhadas, necessariamente, ao caráter cooperativo e solidário desenvolvido nos empreendimentos econômicos solidários. Todavia, quando o empreendimento agrupa uma coletividade de forma autogestionária, em prol de melhoria social e, incidentalmente, obtém renda, tem-se a

economia popular solidária. O termo economia popular solidária também suscita iniciativas oriundas das bases populares de comunidades que procuram meios de subsistência, através de organizações coletivas que seguem as premissas de cooperação e solidariedade.

Coraggio (2009) trabalha com a ideia de economia do trabalho, na qual o conjunto da economia é visto pela lógica do trabalho em detrimento da lógica de mercado. Evidentemente este conceito está em contraposição à lógica de mercado da economia do capital, porém, não reflete necessariamente o alinhamento a atividades econômicas coletivas, na qual devem prevalecer a cooperação e a solidariedade. A economia do trabalho baseia-se em unidades domésticas e contempla um conjunto de atividades que aparece juntamente com o trabalho por conta própria e produção de bens e serviços que são consumidos pelas unidades domésticas sem passar pelo mercado.

A economia social apareceu na França e está relacionada a um contexto de crise econômica e social, um pouco diferente do Brasil. Naquele país, empreendimentos e iniciativas com viés solidário surgiram de massas falidas, com o apoio de sindicatos ou por meio de iniciativas impulsionadas por trabalhadores recém-desempregados.

O termo economia solidária abrange um conjunto de atividades econômicas cuja lógica é distinta da lógica do mercado capitalista. Ao contrário da economia capitalista, centrado no capital acumulado e que funciona a partir de relações competitivas, cujo objetivo é alcançar interesses individuais, a economia solidária organiza-se a partir da valorização das pessoas, favorecendo relações intersubjetivas no trabalho. O laço social é valorizado através da reciprocidade e adota formas coletivas de propriedade, cooperação e solidariedade.

Leite (2008) ressalta que as acepções de Laville e França-Fillho (2004) e Singer (2003b) têm diferenças e, por isso, separa-as. Singer (2003b) vê um continuum entre as primeiras experiências operárias de formação de cooperativas e as atuais e é, nesse sentido, que as entende como um projeto em direção ao socialismo. O pensamento de Singer (2003b) se diferencia nitidamente do de Laville e de Coraggio no que se tange à centralidade do cooperativismo na economia solidária. Na verdade, tanto Laville quanto Coraggio apresentam uma visão mais abarcante deste conceito, incluindo finanças solidárias, comércio justo e clubes de trocas (LEITE, 2008).

Socioeconomia solidária é outra acepção defendida por Arruda (2003), que traz uma ênfase na perspectiva social, em que deve estar presente a economia, mas, não só aspectos economicistas atrelados à racionalidade instrumental. Há, também, a predominância de contornos de racionalidade substantiva nas ações do empreendimento associativo.

Para efeitos desta pesquisa, adotarei a formulação de economia solidária delineada por Laville e França-Filho (2004) que parte da reconceituação do fato econômico, ampliando o conceito de economia e atrelando práticas complementares e residuais que suplantam a monetarização da economia de mercado tendo por base relações de reciprocidade, redistribuição e domesticidade.

Realizada a abordagem sobre as terminologias, suas convergências e divergências, para consolidar a compreensão do debate existente no campo da economia solidária, iniciarei a exposição, na próxima seção deste capítulo, de um levantamento do estado da arte dos estudos realizados no intuito de compreender manifestações da gestão social nos empreendimentos praticantes da economia solidária. Serão apontadas metodologias empregadas e resultados obtidos. Delinearei possíveis dimensões da gestão social presentes em práticas organizacionais de empreendimentos econômicos solidários e as respectivas categorias associadas a cada dimensão.