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Capítulo 2 Fundamentos metodológicos e campo investigado

2.3 O campo investigado

Para a investigação proposta, analiso como a formação de leitores está ocorrendo em uma turma de 5ª série do Ensino Fundamental de uma escola da rede pública municipal da cidade de Belo Horizonte. Estou partindo do pressuposto de que são necessários no mínimo quatro anos de escolaridade para a apropriação da leitura e da escrita e de seus usos sociais. Esse pressuposto vem sendo utilizado, como nos informa Soares (2001, p. 57), pelas poucas pesquisas, no Brasil, que procuram avaliar o nível de letramento de jovens e adultos.

Como o letramento é um processo34, é difícil definir em que ponto desse processo uma pessoa deve ser considerada letrada. Por isso, realizei um estudo de caso, utilizando uma abordagem etnográfica. Meu objetivo foi analisar esse processo, acompanhando as aulas de Português de uma turma durante um semestre escolar. Ao escolher uma escola da rede pública de ensino, pretendo investigar uma classe não privilegiada economicamente, que represente a maioria das crianças da cidade de Belo Horizonte. Soares ressalta que “tornar-se letrado ou mesmo apenas alfabetizado numa escola de classe alta tem um significado bastante diferente de tornar-se letrado ou alfabetizado numa escola de classe trabalhadora” (2001, p. 88). Como os padrões de letramento definidos pelas escolas variam de acordo com o status social e/ou econômico do aluno, os níveis de letramento acabam sendo diferentes. Em geral, são exigidos de alunos de classes altas padrões mais altos.

De outubro de 2002 a fevereiro de 200335, visitei algumas escolas da

cidade de Belo Horizonte e conversei com os professores de Português da 5ª série. Como meu objeto de estudo é a formação de leitores de literatura, procurava uma escola pública que oferecesse aos alunos condições para que essa formação ocorresse. A escola deveria ter uma biblioteca aberta a seus alunos, ou seja, funcionando diariamente nos turnos de aula, para leituras e empréstimo de livros.

34Soares destaca que o letramento no contexto escolar é um processo, é um contínuo, que pode

ser avaliado em sua progressão, evitando um único ponto de distinção entre aluno iletrado e aluno letrado (2001, p. 84).

35No final de 2002, já tinha definido a escola onde faria a pesquisa e a turma que acompanharia.

Contudo, em fevereiro de 2003, devido ao afastamento da professora de Português por motivos de saúde, tive que realizar uma nova seleção.

Na escola, procurava um(a) professor(a) de Português que valorizasse, em seu trabalho, conteúdos de natureza procedimental, como a leitura e a produção de textos, e que, de preferência, tivesse formação em Letras, por esse curso apresentar em sua grade curricular disciplinas voltadas para o estudo da literatura. O professor deveria ter escolhido o livro didático de sua turma e, principalmente, deveria estar disposto a contribuir para a pesquisa. Como o enfoque desta pesquisa está no letramento literário, e este não é considerado um letramento básico, de primeira necessidade, procurava uma escola privilegiada em relação a muitas escolas da periferia da grande Belo Horizonte, mas que também pudesse representar muitas escolas públicas da capital.

Selecionei uma escola municipal, bem conceituada em sua região, da cidade de Belo Horizonte. O ensino nas escolas municipais está dividido em ciclos36 e por essa divisão a 5ª série investigada corresponde ao último ano do 2º ciclo do Ensino Fundamental. A escola possui uma biblioteca aberta aos alunos, com dois auxiliares de biblioteca concursados: um trabalhando no turno da manhã e outro no da tarde.

A professora de Português selecionada mostrou-se muito receptiva à pesquisa e destacou seu interesse pelo tema estudado. Ela é formada em Letras e em Pedagogia pelo Centro Universitário de Belo Horizonte (Uni-BH) e possui duas especializações: uma em Supervisão Escolar e Orientação Educacional, pelo Uni-BH, e outra em Língua Portuguesa, pela Faculdade da Região dos Lagos (FERLAGOS), em Cabo Frio, Rio de Janeiro. Sua monografia final do curso de Pós-Graduação em Língua Portuguesa é intitulada: “Como formar leitores críticos no Ensino Fundamental”.

O livro didático escolhido pela professora, no final de 2001, é o livro

Tecendo Textos: ensino de língua portuguesa através de projetos, da coleção

Novo Tempo, da editora IBEP. Esse livro faz parte de uma coleção – composta

36Essa divisão em ciclos, que distribui os alunos por faixa etária, e não por seriação, faz parte da proposta da Escola Plural, um projeto político-pedagógico implantado na rede municipal de ensino de Belo Horizonte, em 1995. O ideário desse projeto, como destaca Evangelista, presente, mais tarde, nos Parâmetros Curriculares Nacionais, “defende uma estrutura escolar que organize de outras formas os tempos e os espaços escolares em prol de um processo de produção e, não, de reprodução, de conhecimentos” (2000, p. 28). O trabalho docente deve ser realizado de forma interdisciplinar. Os professores devem trabalhar em equipe, em projetos que abordem temas transversais. Na escola investigada, pelo que pude observar, o trabalho não era desenvolvido em projetos interdisciplinares, apesar de a escola teoricamente assumir a proposta da Escola Plural.

por quatro volumes, para alunos de 5ª a 8ª séries – que se destacou no PNLD 2002.

É importante ressaltar que os textos literários são trabalhados não apenas nas aulas de Português, mas também nas aulas de Literatura, ministradas uma vez por semana por outra professora37. Dessa forma, apesar de não existir

como disciplina oficial no currículo do Ensino Fundamental, a Literatura, teoricamente, está presente na escola, dissociada da Língua Portuguesa. Contudo, a forma restrita como ela é trabalhada nessas aulas me levou a manter na pesquisa apenas as observações feitas das aulas de Português, mesmo tendo acompanhado as aulas de Literatura. Durante o primeiro semestre do ano letivo de 2003, assisti a 45 aulas de Português. Essa disciplina possui a carga horária semanal de quatro tempos, distribuídos em quatro dias da semana. Cada tempo possui a duração oficial de 60 minutos.

É importante ressaltar que não pretendo denunciar fracassos do ensino da leitura, nem muito menos apontar culpados. Para analisar as práticas de leitura dos alunos, como elas estão sendo formadas, é importante considerar não apenas os sujeitos envolvidos diretamente no processo, professor e alunos, mas também “as condições de possibilidade da leitura na escola”, especificamente na aula de Português. Batista destaca a importância dessas condições serem colocadas em evidência:

...qualquer ato perfomativo não se realiza de per si mas consoante certas condições que podem ou não garantir a felicidade do ato e que tais condições, no caso do fenômeno do ensino, são o resultado de um conjunto de determinações ligadas ao universo escolar, assim como a suas relações com o contexto social mais amplo.

Ao serem desconsideradas ou minimizadas tais condições de felicidade e suas origens, o discurso perfomativo sobre o ensino se torna muito próximo do discurso religioso. Ao atribuir a possibilidade de transformação da prática de ensino apenas à vontade dos sujeitos nela envolvidos, desconsiderando as condições objetivas a que tais sujeitos estão submetidos, termina por também atribuir a ausência da transformação apenas à vontade desses sujeitos, e acaba por incorporar dois temas recorrentes no discurso religioso: o da culpa e o da salvação. O

37A professora de Literatura é formada em Pedagogia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e possui uma especialização em Supervisão Escolar pelo Instituto de Educação de Belo Horizonte.

fracasso da transformação tende a ser compreendido como culpa e erro; a transformação tende a ser compreendida como remissão. (1992, p. 35)

Dentre as condições de possibilidade, Batista destaca a disposição do tempo e do espaço e a organização de séries. O aluno “é distribuído no espaço escolar, em turmas compostas de acordo com suas relações com as progressões do tempo e dos conhecimentos” (1992, p. 38). O pesquisador relaciona a organização do espaço e do tempo escolar e a organização de séries com a modalidade de leitura ensinada na aula de Português e com os objetos que através dela se ensinam:

O que é o exercício de interpretação de textos senão uma prática que oferece objetos ao conhecimento do professor, que pode a partir dele e dos parâmetros que a leitura do autor do exercício identifica com o texto, classificar e ordenar os alunos em grupos e séries que permitirão sua redistribuição no espaço e no tempo escolar? (1992, p. 38)

Essas condições de possibilidade são levadas em conta nesta pesquisa. As escolas da rede municipal de Belo Horizonte estão estruturadas em ciclos de formação. Essa proposta de estruturação da escola envolve uma nova organização do tempo e do espaço escolar. Os alunos são agrupados por idade e não por conhecimentos, o que, na prática, acaba gerando a progressão contínua do aluno, a extinção da reprovação. Sendo assim, as atividades realizadas na sala de aula não determinam a redistribuição do aluno no espaço e no tempo escolar. Como foi observado nesta pesquisa, existem alunos que estão finalizando a primeira etapa do Ensino Fundamental – o que corresponde à 5ª série – que ainda não foram alfabetizados.

As condições de trabalho na escola – como recursos disponíveis para o desenvolvimento do trabalho – e a formação profissional do professor também são levadas em conta como importantes condições de possibilidade da leitura.

Como o estudo de caso não representa uma amostragem, não pretendo enumerar freqüências, mas sim analisar um processo: o letramento, expandindo e generalizando teorias. Yin destaca essa generalização ao responder a uma questão comum feita ao estudo de caso: “Como você pode generalizar a partir de um caso único?”

os estudos de caso (…) são generalizáveis a proposições teóricas, e não a populações ou universos. Nesse sentido o estudo de caso (…) não representa uma “amostragem”, e o objetivo do pesquisador é expandir e generalizar teorias (generalização analítica) e não enumerar freqüências (generalização estatística). (YIN, 2001, p. 29)

Apesar de não pretender enumerar freqüências, o caso desta pesquisa foi escolhido por representar muitos outros casos. Acredito que, investigando o caso selecionado, pode-se entender melhor como o letramento, especificamente o literário, está sendo desenvolvido na escola. Kenny e Grotelueschen38 (1980), ao estabelecerem alguns critérios para que se decida quando é pertinente usar o estudo de caso, enfatizam que “a unidade vai ser escolhida porque representa por si só um caso digno de ser estudado, seja porque é representativo de muitos outros casos, seja porque é completamente distinto de outros casos” (apud ANDRÉ, 1995, p. 49).

Para ampliar este estudo, dialogando com outros pesquisadores em outro contexto sociocultural, desenvolvi parte da pesquisa em Portugal, na cidade de Braga. Em Portugal39, selecionei, sob a orientação da Professora Maria de Lourdes Dionísio, uma escola da rede pública bem conceituada da cidade. Nessa

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KENNY, W.R. e GROTELUESCHEN, A.D. Making the case for case study. In: Occasional

Paper, Illinois University Press, 1980.

39Em Portugal, o Ensino Básico é obrigatório e tem a duração de nove anos, dividido em três ciclos

de ensino. O primeiro ciclo dura quatro anos e possui regime de professor único. O segundo ciclo dura dois anos e o terceiro, três, ambos com regime de disciplina (um professor para cada disciplina).

escola, acompanhei quatorze40 aulas de Português, nas quais o texto literário estava sendo trabalhado, em uma turma do 6º ano (correpondente à 5ª série investigada nesta pesquisa) do Ensino Básico e entrevistei o professor de Português da turma. O professor é formado em Letras pela Universidade do Porto e possui mestrado em Estudos de Cultura Popular pela Universidade Nova de Lisboa.

É importante destacar que meu objetivo não foi fazer uma pesquisa comparativa, entre a turma observada no Brasil e a turma observada em Portugal. Isso exigiria o mesmo tempo em campo, além de outros procedimentos que não estavam previstos nesta pesquisa. O objetivo foi, como já apontei, o de ampliar o diálogo com os pesquisadores portugueses. Esse diálogo teórico foi enriquecido pela observação de algumas práticas de leitura de literatura na escola, assim como pela análise, com um viés comparativo, do manual de Português utilizado pela turma observada.