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Capítulo 2 Fundamentos metodológicos e campo investigado

2.6 Classificação dos textos no livro didático: categorias de análise

Nesta seção, antes de especificar as categorias de análise utilizadas para a classificação dos textos, apresento uma breve discussão sobre texto e gêneros em Bakhtin44 e em Marcuschi. O primeiro, referência clássica

44Os textos de Bakhtin e de seus conterrâneos russos que com ele trabalhavam (grupo conhecido

pelos pesquisadores como Círculo de Bakhtin), como Voloshinov e Medvedev, foram produzidos entre 1919 e 1974. Contudo, como nos informa Rodrigues, “sua divulgação efetiva vai se iniciar somente a partir da metade e do final da década de 1960 na ex-União Soviética e no ocidente, respectivamente, (...) as suas idéias têm impulsionado as discussões teóricas a partir de meados da década de 1980” (2005, p. 152-153).

internacional, utiliza a expressão “gêneros do discurso” ao tratar dos “tipos relativamente estáveis de enunciados”, enquanto o segundo, importante referência nacional, utiliza a expressão “gêneros textuais”, presente nos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) e, portanto, na escola.

Bakhtin (2003), em Estética da criação verbal, especifica dois pólos do texto que até sua época vinham sendo destacados: o primeiro está relacionado à consideração da língua como sistema de signos e o segundo está relacionado ao enunciado, em sua singularidade. A proposta de Bakhtin diverge de ambas, ao propor que o próprio sistema de linguagem está presente nos textos, simultaneamente diferentes uns dos outros e ligados por padrões sociolingüísticos:

(...) por trás de cada texto está o sistema de linguagem. A esse sistema corresponde no texto tudo o que é repetido e reproduzido e tudo o que pode ser repetido e reproduzido, tudo o que pode ser dado fora de tal texto (o dado). Concomitantemente, porém, cada texto (como enunciado) é algo individual, único e singular, e nisso reside todo o seu sentido (sua intenção em prol da qual ele foi criado). (...) Esse segundo elemento (pólo) é inerente ao próprio texto mas só se revela numa situação e na cadeia dos textos (na comunicação discursiva de dado campo). Esse pólo não está vinculado aos elementos (repetíveis) do sistema da língua (os signos) mas a outros textos (singulares), a relações dialógicas (e dialéticas com abstração do autor) peculiares. (2003, p. 309-310)

Como ressalta Rodrigues, segundo Bakhtin, “pode-se dizer que o texto analisado na sua integridade concreta e viva, e não o texto como objeto da lingüística do texto de vezo mais imanente, faz dele um enunciado” (2005, p. 159). Sendo assim, o texto em sua qualidade de enunciado só se manifesta na situação social e em relação com outros textos. Vale destacar que essa concepção de “texto-enunciado”, assim como a concepção de “língua-discurso”45, só pode ser compreendida dentro de uma concepção sócio-histórica e ideológica da linguagem.

Os vários “tipos de interação verbal”, que constituem tipos relativamente estáveis de enunciados, são denominados por Bakhtin de gêneros

45Essa questão é discutida por Bakhtin em Problemas da poética de Dostoiévski. Como discurso, a

do discurso. Dessa forma, como destaca Rodrigues, o autor estabelece uma relação dialética entre os gêneros e os enunciados, ou seja, “olha os gêneros a partir da sua historicidade (eles não são unidades convencionais) e lhes atribui a mesma natureza dos enunciados (natureza social, discursiva e dialógica), ao tomá-los como seus tipos históricos” (RODRIGUES, 2005, p. 163).

Marcuschi, em seus estudos sobre gêneros, utiliza como base teórica os textos de Bakhtin e Bronckart, que afirmam que a comunicação verbal só é possível por algum gênero (“discursivo” para Bakhtin e “textual” para Bronckart). Essa posição teórica é adotada, como destaca Marcuschi, “pela maioria dos autores que tratam a língua em seus aspectos discursivos e enunciativos, e não em suas peculiaridades formais” (2005, p. 22). Sendo assim, a natureza funcional e interativa da língua é privilegiada em relação a seu aspecto formal e estrutural. O uso da expressão gênero textual é explicitado por Marcuschi:

Usamos a expressão gênero textual como uma noção propositalmente vaga para nos referir aos textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que apresentam características sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica. (2005, p. 23)

Assim sendo, encontra-se uma grande variedade de gêneros46, que podem ser orais ou escritos, dentre eles: “telefonema, sermão, carta comercial, carta pessoal, romance, bilhete, reportagem jornalística, aula expositiva, reunião de condomínio (...)”(MARCUSCHI, 2005, p. 23).

Pode-se afirmar ainda que a concepção de “gênero discursivo”, de

46Marcuschi tem destacado em seus trabalhos a diferença entre gênero textual e tipo de texto.

Segundo o autor (2005, p.22-29), os gêneros textuais são formados por seqüências tipológicas (ADAM, J. M. Eléments de linguistique textuelle. Liège: Mardaga, 1990) definidas pela natureza lingüística de sua composição. O predomínio de um determinado tipo de seqüência caracteriza o “tipo de texto”. Sendo assim, os tipos textuais são definidos por propriedades lingüísticas intrínsecas, por um conjunto de traços que forma uma seqüência. Enquanto os gêneros são bastante variados, os tipos textuais são, segundo Marcuschi, em torno de cinco: narração, descrição, argumentação, exposição e injunção.

Bakhtin, prioriza o plano da “significação” dos textos, enquanto a concepção de “gênero textual”, de Marcuschi, prioriza o trabalho textual, com ênfase em sua “função” e “intenção”. Essas duas perspectivas, a meu ver importantes e complementares, estão sendo levadas em conta na análise, realizada nesta pesquisa, dos textos propostos para a leitura no livro didático, das atividades relacionadas a eles e do uso que professores e alunos fazem do texto.

Para a descrição dos textos presentes no livro didático, estou utilizando a orientação teórico-metodológica seguida por Dionísio47 (2000), que, no interior do manual, considera como texto:

os trechos tradicionalmente reconhecidos como tal, ou obras completas - um conto, um poema, mas também uma entrada de dicionário, uma regra gramatical, um slogan publicitário, uma adivinha, desde que se encontrem claramente delimitados no discurso, independentemente da sua extensão, características estruturais ou intencionalidade pragmática de origem. Tradicionalmente esta delimitação é dada pela referência ao autor e fonte de origem do texto transcrito. Em função deste critério, não serão tomados como textos autónomos constituintes da antologia as citações que ocorrem no interior dos enunciados produzidos pelos autores do manual. (2000, p. 140)

Dentre as diversas orientações teóricas, Dionísio destaca a proposta por M.A.K. Halliday (1989): “any instance of living language that is playing some part in a context of situation we shall call a text” (apud DIONÍSIO, 2000, p.139). Segundo essa definição, pode-se considerar texto tanto um simples enunciado como “Silêncio”, quanto um texto narrativo na sua versão integral (DIONÍSIO, 2000, p.139-140).

Na análise do livro didático, os textos foram classificados primeiramente em “literários” e “não-literários”. Em Portugal, segundo Dionísio (2000, p. 141), desde que os manuais passaram a incluir textos representativos da variedade das produções verbais escritas, ou seja, passaram a apresentar não apenas textos literários (como acontecia com as antologias), mas também textos não-literários, a oposição literário/não-literário tornou-se conteúdo curricular:

47Para Dionísio, “apesar das diferentes orientações teóricas, todas as definições confluem para um

seu entendimento como entidade realizada por uma sequência finita de enunciados, dotada de determinadas propriedades formais, aliadas a uma intencionalidade pragmática” (2000, p.139).

Ao nível dos manuais, esta oposição (literário e não-literário) tem funcionado como estruturadora da sua própria organização. Com efeito, seja a distribuição dos textos do manual função de uma organização temática seja ela função de uma organização tipológica, é comum encontrarmos separadores cuja intenção é delimitar aquelas duas grandes categorias de texto, anunciando, do mesmo modo, “conteúdos” curriculares distintos. (DIONÍSIO, 2000, p. 141)

Nos manuais brasileiros, a classificação literário e não-literário como conteúdo curricular, em geral, está presente nos livros de Ensino Médio48. No Ensino Fundamental, o que encontramos é uma “salada mista”: não existe distinção entre textos literários e não-literários e não é raro os primeiros serem “trabalhados”/transformados como/em textos informativos apenas.

Nesta pesquisa, estão sendo considerados literários todos os textos escritos que circulam como tal na escola: textos da literatura clássica, textos da literatura infantil e juvenil, da tradição oral, lendas e paradidáticos utilizados na aula de Português. As histórias em quadrinhos, apesar da polêmica discussão envolvendo esse gênero, serão analisadas na categoria textos não-literários, uma vez que não são trabalhadas como literatura na escola. Na escola, a leitura de literatura não envolve os quadrinhos. Vale destacar que esse gênero costuma ser permitido apenas no livro didático (fora de seu suporte original), em pequenos excertos.

Apesar de o objeto desta pesquisa ser a leitura literária, é fundamental caracterizar também os textos não-literários, já que, como destaca Dionísio: “a redução à oposição literário vs não literário pode escamotear informação sobre os textos com que efectivamente os alunos “contactam” na escola e, particularmente, na aula de Português (2000, p. 142).” Portanto, apresento a seguinte classificação:

Categorias de descrição dos textos literários nos manuais:

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Esta classificação apresenta-se, em geral, muito simplificada e acaba sendo “apagada” pela forma como a leitura do texto literário é orientada e cobrada nos livros didáticos.

1. História (abarca gêneros de estrutura narrativa: conto, crônica, romance, novela, fábula, lenda)

2. Poesia (incluindo letra de música e prosa poética) 3. Teatro (textos retirados de peças teatrais)

Categorias de descrição dos textos não-literários nos manuais: 1. Imprensa (reportagem, anúncio, notícia, entrevista, editorial) 2. Resenha de textos literários

3. Instrucional

4. Correspondência (carta -pessoal e institucional: comercial, de reclamação, de solicitação etc.-, bilhete)

5. Científico

6. História em quadrinhos 7. Outros

Tendo em vista a complexidade de classificação dos textos por tipo e/ou gênero49, para identificar a variedade de textos presente no livro didático, optei por seguir a estratégia utilizada por Dionísio: construir “categorias próximas da linguagem vulgar, das designações pelas quais, mais freqüentemente os textos são referidos no campo pedagógico (2000, p. 145)”. Esse tipo de categorização, como justifica Dionísio, possibilita, por um lado, “um mais fácil reconhecimento da categoria” e evita, por outro, “distorções de interpretação possíveis, por frequência reduzidas ou mesmo nulas de determinadas categorias” (2000, p. 145).

Dessa forma, nos textos literários, optei por utilizar uma categoria que vem sendo criticada pelo meio acadêmico: a categoria “história”. Alguns críticos a concebem como: “variedade de texto que só circula na escola” (BEZERRA, 2001, p.41). Contudo, a meu ver, o vocábulo “história” sempre esteve na “boca do povo”, em nossa vida cotidiana e foi apropriado pela escola. O “contar história”, enquanto ato e enquanto expressão, esteve presente na vida das mais antigas comunidades. De apenas contadas, as histórias passaram a ser escritas e a

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Dionísio, ao destacar essa complexidade, faz referência a vários autores que discutem essa questão: VIGNER, Gérard. Lire: du texte au sens. Paris: CLE International, 1979; ADAM, Jean-Michel. Quels types de textes? Le Français dans le monde, nº 192, 1985, Types de séquences textuelles élèmentaires. Pratiques, nº 56, 1987; BRONCKART, Jean-Pierre. Interactions, discours, significations. Langue Française, nº 74, 1987; PETIJEAN, André. Les typologies textuelles. Pratiques, nº 62, 1989; MELLO, Cristina. O ensino da literatura e

ganhar, cada vez mais, novos significados: temos as histórias contadas, ao pé de uma fogueira, pelo “narrador marinheiro”, viajante, ou pelo “narrador camponês”, sedentário, que conhece a história de seu povo – descritos por Walter Benjamin (1994) no famoso ensaio “O narrador”–, as histórias da tradição oral contadas por uma avó, as histórias de livros de literatura contadas por uma mãe à beira da cama do filho, as histórias contadas pela professora na sala de aula, as histórias “de pescador”, as histórias de vida de uma pessoa, as histórias de um povo, de uma nação, a(s) História(s) do Brasil, de Portugal…

Presente em nossa vida cotidiana e apropriada pela escola, a palavra “história” costuma ser associada a um texto de estrutura predominantemente narrativa e abarca vários gêneros, orais e escritos, literários e não-literários. Contudo, na escola, a história com “h” minúsculo costuma ter uma conotação literária. Na escola, a história é texto literário com estrutura narrativa50: conto, crônica, romance, novela, fábula, lenda. É dessa forma – como um “gênero” narrativo literário que abarca outros gêneros – que estou concebendo a categoria “história” neste estudo.

Na categoria “poesia”, estou considerando “todos os textos estruturados em verso (DIONÍSIO, 2000, p.146)”, ou seja, poemas líricos, letras de música, cantigas populares, e até mesmo a prosa poética, as “histórias” contadas em verso. Apesar de ter algumas ressalvas em relação à definição de texto poético proposta por Aguiar e Silva51 (1982, p.550-559), citada por Dionísio(2000, p.146): “o verso constitui o elemento distintivo do texto poético”, admito que é essa a definição que está presente na escola. Portanto, é dessa forma que a categoria “poesia” está sendo utilizada neste estudo.

Nos textos não-literários, a categoria “imprensa” (utilizada por DIONíSIO, 2000, p.145) envolve textos presentes no suporte jornal ou revista (reportagem, anúncio, notícia, entrevista, editorial). A categoria “resenha” de textos literários foi construída em função da presença significativa desse gênero textual no livro didático brasileiro analisado. Esse tipo de resenha, um texto muito curto, tem como objetivo incentivar a leitura de livros de literatura, através da

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A prosa poética, como pude observar analisando livros didáticos, algumas vezes é trabalhada como “história”, sendo destacada sua estrutura narrativa, outras vezes como poema, sendo destacados seu ritmo e rimas.

divulgação dos mesmos. Dessa forma, exerce a função de uma resenha publicitária.

Nos textos não-literários, a categoria “instrucional” e a categoria “correspondência” foram construídas por sua intenção comunicativa. Estou considerando textos instrucionais “os textos descritivos que indicam como fazer algo: bula, receita de cozinha, manual de instrução, regras de jogo e outros (BEZERRA, 2001, p.40).” Estou considerando textos de correspondência as cartas -pessoais e institucionais: comerciais, de reclamação, de solicitação etc.- e bilhetes presentes nos livros didáticos.

A categoria “científico” abarca os textos de natureza informativa – excertos de dicionários, de enciclopédias, de livros teóricos. A categoria “história em quadrinhos”, HQ, está definida pelo formato da narrativa (história): em quadrinhos, definindo um gênero já reconhecido por esse nome. Em “outros”, caracterizo os textos que não se encaixam nas categorias acima, como trechos de livros de auto-ajuda.

A seguir, apresento uma breve análise da forma como o trabalho com o texto literário é destacado, no Brasil, no Guia de Livros Didáticos de Língua Portuguesa do PNLD e, em Portugal, no Currículo Nacional e Programa de Língua Portuguesa. A importância dessa apresentação na última seção deste capítulo deve-se ao fato desses “documentos” serem utilizados como referência na produção de livros didáticos de Língua Portuguesa.

2.7 A literatura no Guia de livros didáticos do PNLD (Brasil) e no Currículo