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Camponeses – retirantes – trabalhadores: a formação da camada de

3. OS TRABALHADORES: a cultura política popular de Baturité

3.3. Camponeses – retirantes – trabalhadores: a formação da camada de

Durante o início da década de 1870, os maiores empresários cearenses, sob o clima de euforia da cotonicultura, pela iniciativa de Tomás Pompeu Sobrinho (sogro de Accioly), iniciaram a construção da Estrada de Ferro de Baturité a partir de Fortaleza. Sem recursos para continuarem a custear a obra, elas ficaram paradas na estação de Pacatuba, cidade vizinha à Fortaleza.

Com a chegada da seca de 1877, no entanto, as obras foram retomadas (sob o custeio do governo Imperial), por meio do aproveitamento e disponibilidade da mão de obra “quase escrava” das multidões de retirantes, em busca de trabalho. Nas palavras de Frederico Castro Neves:

Os conflitos em torno do fornecimento de alimentos para retirantes tornavam-se mais frequentes (...) nas cidades próximas aos locais de trabalho, como Baturité – onde as obras de extensão da estrada de ferro ainda permaneciam atraindo os retirantes... (NEVES, 2000, p. 84).

A construção desta ferrovia é reveladora por significar uma importante frente de trabalho para os sertanejos que, abandonando suas terras ou seus locais de moradia e sobrevivência – estéreis pela seca – acabavam por vender sua força de trabalho em obras públicas de variados tipos (estradas de rodagem, açudes, prédios públicos, calçamentos etc.). Tyrone Cândido, na sua obra O trem da seca, conta como foram utilizados os serviços dos flagelados na construção da Estrada de Ferro de Baturité. De acordo com o autor, “a 2ª seção, entre Pacatuba e Baturité, foi construída durante a seca de 1877-79 e a seção entre Baturité e Quixadá, durante a seca de 1888-1889” (CÂNDIDO, 2005, p. 87).

O autor compara o comportamento dos “sertanejos-retirantes-trabalhadores” perante as comissões de socorros das secas (como pedintes) e os engenheiros-patrões (como trabalhadores). Cândido percebe que, em um primeiro momento, na seca de 1877, atuaram esses trabalhadores, predominantemente como mendigos e pedintes. Posteriormente, com a experiência de trabalhadores assalariados:

Assumiam a feição de “trabalhadores” e, como tal, alegavam ter direito aos “pagamentos”. Entre os conflitos de outubro de 1877 e de março de 1878, se percebe que muitos retirantes, deparando-se com a aglomeração e com as relações de trabalho assalariadas, iam abandonando a prática de implorar esmolas, passando então a exigir coletivamente os auxílios do governo. (Idem, p. 66)

Em 1882, foi inaugurada a estação da cidade de Baturité, dinamizando a vida econômica do município. Até a chegada da seca de 1888-1889, a exportação do café, no Ceará, batia recordes internos de vendas. A disponibilidade de mão de obra dos retirantes pode ser um forte indício do emprego do trabalho destes como camponeses assalariados. A elite agrária baturiteense conhecia seu período áureo, fazendo com que a produção cafeeira de Baturité absorvesse pequena parte da grande quantidade de mão de obra disponível, na seca de 1877.

A estiagem de 1887-1888 foi conhecida por ter tido efeitos mais catastróficos que a antecessora. Enquanto a República era proclamada, milhares de flagelados, mais uma vez, migravam para Baturité, Fortaleza e outros centros urbanos mais distantes, à procura de trabalho. Novamente, utilizando-se da mão de obra barata dos retirantes, recomeçava o prolongamento da ferrovia, da estação de Baturité até o município de Quixadá, no sertão central.

Finda a seca, à medida que diminuía a contingência de retirantes, os trabalhadores empregados nas obras – com uma gradual e relativa valorização de seus serviços – realizaram uma greve, em 1892. Além disso, os trabalhadores receberam apoio do recém-fundado Partido Operário, que cobriu a greve através do jornal O Combate (SOUZA, 2000, p. 289).

Ao mesmo tempo em que, através do jornal, o partido cobria o movimento da greve, tentava também participar da vida política baturiteense, através das primeiras eleições para a Câmara de Vereadores da República, no entanto, como registrado por uns dos líderes no jornal “nem um só voto nos tocou” (Idem, p. 290). Provavelmente todos foram degolados pelo legislativo municipal. De acordo com Simone de Souza, “o Partido Operário Cearense criticava as formas de organização política dos trabalhadores em associações mutualistas e beneficentes” (Idem).

A conjuntura das secas relatada acima mostra como as migrações propiciaram intensas mudanças nas relações de trabalho de milhares de sertanejos. É provável que o pai de Evaristo Lucena tenha chegado a Baturité, em consequência das secas relatadas.

Segundo Tyrone Cândido, a construção da Estrada de Ferro de Baturité significou também uma “uma grande escola para o trabalho” (Cândido, 2005, p. 90). Ali, milhares de camponeses aprenderam a cavar fossos, utilizar ferramentas de construção e fazer trabalhos típicos de oficinas.

Uma parcela nada desprezível de sertanejos cearenses viveu, no contexto do prolongamento da (ferrovia de) Baturité, um contato inédito com o trabalho das oficinas, apesar de ter sido esse contato apenas passageiro. Ainda por muito tempo a estrutura agrária perduraria hegemonizando a mão-de-obra sertaneja. Mas os trabalhos da ferrovia naquela seca representaram para muitos uma experiência concreta com o industrialismo nascente... (Idem, 2005, p. 106)

O padrão de trabalho novo, de tipo capitalista, caracterizado pelo tempo cronometrado, pela disciplina, e pela necessidade de obediência a um saber estranho, parece ter suscitado por parte dos trabalhadores da construção da estrada de ferro de Baturité – homens e mulheres provenientes do sertão agrário – momentos de conflitos e ações de resistência que marcaram indelevelmente a trajetória daquela ferrovia e a formação da classe operária. (Idem, 2002, p. 86-7)

A intensa proletarização de retirantes em obras públicas era uma realidade que se repetiria por todas as secas decorrentes pelo século XX: bastava haver período de estiagem que as estradas enchiam-se de retirantes procurando postos de trabalho – faziam o papel do chamado “exército de reserva” – e as principais cidades eram ocupadas por mendigos, iniciando a favelização dos espaços urbanos. Os que não encontravam trabalho tornavam-se mendigos, delinquentes urbanos ou continuavam em busca de oportunidades em centros urbanos mais distantes, no sul do país.

Ao retorno do período chuvoso, parte desses trabalhadores-retirantes regressava às suas terras, diminuindo o exército de reserva e retraindo a mão de obra disponível. Os exemplos das secas na história do Ceará são emblemáticos para percebermos como elas estavam atreladas à grande ocorrência de trabalhadores urbanos nas cidades.

Quando havia seca também havia disponibilidade de operários e mão de obra barata – era a época das obras públicas. Ao contrário, quando era ano de chuva, uma parcela desses retirantes retornava às suas terras e recompunham suas parentelas. Desse modo, a multidão de retirantes nas estradas e cidades se desfazia gradativamente: com a falta da disponibilidade, a mão de obra dos que ficavam era valorizada.

Um exemplo ilustrativo nos é fornecido pelo jornal A Verdade. Comparando dois artigos: um escrito em novembro de 1918144 – ano de chuvas – e outro de abril de 1919145

ano de seca. O artigo de 1918 comentava a falta de trabalhadores e operários na cidade, o que valorizava a mão de obra dos serviços. Como 1918 foi um ano de abundantes chuvas no Ceará, os camponeses estavam em suas respectivas terras, trabalhando na colheita de seus gêneros. Não havia, assim, a necessidade de abandoná-las para buscarem postos de trabalho. Assim, em novembro de 1918 o número de operários urbanos era escasso, havendo abundância de trabalhadores rurais.

Uma realidade contrária ocorreu no ano seguinte, cerca de seis meses depois. 1919 foi ano de seca no Ceará, de modo que, já em abril, as estradas estavam tomadas de retirantes e o jornal reportava a disponibilidade de operários e trabalhadores nas cidades.146

Esta observação causal entre a ocorrência de secas e a disponibilidade de mão de obra para trabalhos urbanos e rurais (nas regiões serranas onde os efeitos das secas são minimizados) não é apenas uma conclusão de historiadores contemporâneos que se detiveram a este tema (CANDIDO, 2005; NEVES, 2000). A frequência de como ocorriam tais fenômenos eram sintomático também pela contemporaneidade desses eventos. Os governantes e empresários da época já sabiam que se chovesse haveria diminuição da oferta de mão de obra, e consequente valorização desta; caso houvesse seca, haveria disponibilidade de mão de obra e a natural desvalorização do trabalho urbano.

Por um lado, as secas poderiam ser vantajosas para o empresariado urbano, para os donos de empreiteiras e para os grandes proprietários (que tinham reservas para passar a seca) já que pagariam mais barato pela mão de obra; por outro lado, eram desvantajosas para os médios produtores rurais, que teriam sua produção reduzida, mesmo com a disponibilidade de mão de obra. Embora as maiores cidades tivessem crescido demograficamente, o despovoamento da zona rural era um sério problema comentado pelos meios de comunicação. Segundo o bispo Dom Manoel, que dirigiu trabalhos de socorros aos flagelados, a cifra de

144 A Verdade, 24 nov. 1918, p. 3. 145 A Verdade, 27 abr. 1919, p. 1.

146 Na seca de 1919 foi construído o açude de Orós. O prolongamento da Estrada de Ferro de Baturité alcançava

o sul do Ceará, na região da chapada do Araripe, etc. (A Verdade. Baturité, 21 dez. 1919, p. 2; 04 jan. 1920, p. 2; 01 fev. 1920, p. 1)

mortos por decorrência da seca de 1919 chegava a quase 70 mil pessoas147 e durante a seca de 1915 saíram do Ceará 39.313 pessoas.148

Portanto, vemos que Baturité contava com uma camada de trabalhadores urbanos que poderia se avolumar descontroladamente de maneira sazonal, variando segundo os períodos de chuva e seca. Independente das ocorrências climáticas, essa camada de trabalhadores já tinha uma existência incipiente devido ao crescimento das atividades comerciais na cidade, mas alcançava uma amplitude considerável nos anos de seca.

A problemática das secas mostrada acima é um caso ilustrativo da quebra horizontal de parentela, apontada por Queiroz. Muitos proprietários pertencentes às altas parentelas tiveram de reduzir o contingente de seus dependentes, “abandonando” à sorte uma parcela dos membros mais distantes das baixas parentelas.

Muitos dos retirantes que foram à Baturité pertenciam antes a uma parentela da qual estavam apartados. Ao chegar a Baturité, alguns deles alinharam-se às grandes famílias locais, outros tiveram que sobreviver fora da proteção parental, formando a parcela marginalizada da sociedade, desamparada e com direitos restritos. Havia ainda os membros de baixa parentela que já estavam tradicionalmente atrelados aos seus chefes de alta parentela.

Muitos dos retirantes que chegavam a Baturité, apartados de suas parentelas originais, passaram a ser trabalhadores assalariados (urbanos ou rurais), formando novas alianças parentais ou sobrevivendo apenas do trabalho. Essa população passou a ocupar o antigo distrito do Putiú, que no final da década de 1910 e início da década de 1920 tornou-se uma espécie de bairro operário de Baturité.

147 A Verdade, 13 jan. 1920, p. 1.

148 A Verdade, 08 fev. 1920, p. 2. A população do Ceará, pelo censo de 1920, era de mais de um milhão e

3.4. Direitos e reivindicações: os trabalhadores urbanos de