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Direitos e reivindicações: os trabalhadores urbanos de Baturité e o

3. OS TRABALHADORES: a cultura política popular de Baturité

3.4. Direitos e reivindicações: os trabalhadores urbanos de Baturité e o

Sabemos que o município de Baturité, durante a Primeira República chegou a ser constituído por, no máximo, oito distritos (contando com o distrito sede). 149 A maioria desses distritos foi originada, a partir de sítios de café e fazendas de gado-algodão pertencentes às principais famílias de coronéis da região da serra e do sertão – por exemplo, os distritos serranos de Pacoti e Guaramiranga se originaram dos sítios Pendência e Conceição, abrigando em seu interior suas respectivas parentelas. As fazendas de gado e algodão originaram os distritos do sertão (como Riachão e Itaúna).

A maioria dos coronéis desses distritos eram agricultores, plantadores de café, algodão e outros gêneros, o que os diferenciava de uma parte dos coronéis comerciantes do distrito sede.

Podemos considerar qualitativamente, que a população de trabalhadores rurais dos sítios desses coronéis era composta por membros de sua baixa parentela.150 Estes, por sua vez compunham basicamente a clientela política desses coronéis em época de eleição. Se compararmos a população masculina total e a população masculina alfabetizada – ou seja, eleitores – do distrito sede de Baturité e das localidades vizinha, vemos um peso eleitoral considerável de Mulungu, Pacoti e Guaramiranga, em ordem crescente.

149 O distrito do Putiú integrou à cidade na década de 1920. Já Cangati e Itaúna permaneceram distritos de

Baturité durante toda Primeira República. Os distritos serranos de Guaramiranga, Pacoti, Mulungu e Coité (hoje Aratuba) tinham a economia mais dinamizada pela cultura do café, fazendo com que sua emancipação política de Baturité ocorresse em um vai-e-vem frequente de emancipação e reanexação. Os principais distritos serranos eram os de Guaramiranga e Pacoti, sendo os que se emanciparam mais cedo de Baturité. Guaramiranga se destacava de Pacoti pelo acesso rodoviário que tinha com Baturité (desde 1916, em uma obra executada para atender aos retirantes da seca de 1915). Já a Pacoti, só se chegava a lombo de burro. A partir do sitio Conceição, Guaramiranga foi também contando com um pequeno e tímido núcleo urbano. Não havia tantos prédios públicos, empreendimentos e casas comerciais como ocorria com a sede, mas havia uma farmácia e diversos armazéns de estocagem de café, donde eram vendidos para Baturité ou diretamente para outros clientes. Assim, Guaramiranga e Pacoti tiveram um eleitorado maior que os outros distritos, fazendo dessas localidades importantes pontos estratégicos de alianças políticas entre famílias da sede.

150 Podemos citar como exemplo a fazenda Jucá, propriedade de Miguel Arruda, pai de Ananias Arruda, onde

moravam cerca de cem trabalhadores. Uma carta publicada no jornal A Verdade de um dos moradores chamado Raimundo Ronda, agradecendo uma esmola de 50 mil réis dado a eles pelo presidente do Estado João Thomé Saboia, quando este veraneava no sítio, em companhia do coronel Miguel Arruda. Tal fato demonstra que alguns deles poderiam ser eleitores (alfabetizados) e assim, influenciados pelas relações de clientela política existente – Vemos que Raimundo Ronda agradece ao governador por uma esmola pessoal, não pelos serviços públicos que deveriam ser prestados. (A Verdade. Baturité, 15 jan. 1920, p. 3)

No município de Baturité, enquanto 20% da população da sede era alfabetizada, em Guaramiranga, Mulungu e Pacoti (distritos rurais) contavam com 18% da sua população alfabetizada. Há pouca diferença se considerarmos os 88% de analfabetos do distrito Itaúna (Tabela 3).

Tabela 3 – População dos distritos do munícipio de Baturité entre 1890 e 1920

1890 1920

Distrito População População População População masculina masculina total total alfabetizada total

Cidade (sede) 1.264 6.132 13.011 7.159

Riachão (atual - (distrito cria- - - 4.878 Capistrano) ado em 1896)

Candeia - (distrito cri- - - 1.939 ado em1897) Putiú 164 842 1.399 2.046 Cangati (atual 243 1.440 2.893 1.106 Caio Prado) Itaúna (atual 81 654 1.369 2.028 Itapiúna) Guaramiranga 1.019 5.685 11.247 3.338 Pacoti 797 4.264 8.551 8.148 Mulungu 844 4.972 10.410 7.269

Coité (atual 741 5.032 10.111 8.137 Aratuba)

Pernambuquinho - - - 2.255

Fonte: A Verdade, 06 ago., 1922.

Esses dados denotam algum peso eleitoral dessas localidades, que contavam com um considerável contingente de trabalhadores assalariados (rurais ou urbanos). Os trabalhadores rurais nem sempre estavam isolados nos sítios e fazendas de seus coronéis. Em distritos com uma proximidade maior do distrito-sede, como Guaramiranga, Mulungu e Putiú (distrito muito próximo do distrito de Baturité, praticamente um bairro seu), os empreendimentos rurais (sítios e fazendas) eram extensos ao mundo urbano.

Um trabalhador rural dispunha de relativa liberdade para frequentar os sambas das cidades151, além de, muitas vezes, ser assalariado, como tal ocorria aos trabalhadores urbanos. No entanto ganhavam salários miseráveis e muito menores do que os dos trabalhadores urbanos, principalmente se a comparação fosse com trabalhadores urbanos de serviços especializados. A diária de um trabalhador rural era de 800 a 1000 réis, o que na melhor das hipóteses lhe fornecia uma renda mensal de trinta mil réis (trabalhando todos os dias). Um mestre de obras chegava a receber 640 mil réis para efeito de comparação por serviço. Para termos alguma ideia do poder de compra de tal salário, uma cerveja custava 1500 réis, uma saca de cal custava 2600 réis e uma garrafa de óleo 3000 réis – itens simples e que custavam quase o triplo do que recebia um trabalhador rural em sua diária.152 Nesse sentido, com exceção dos distritos mais isolados (Coité, Itaúna e Pacoti), havia uma camada de trabalhadores rurais relativamente independentes (embora miseráveis), que trabalhavam nas fazendas ou nos sítios, mas não necessariamente residiam neles.

Como localidade representante dos trabalhadores urbanos da cidade, havia o Putiú, distrito do município de Baturité que se tornou uma espécie de bairro operário a partir da década de 1920. Em 1919 moradores do Putiú publicaram uma nota no jornal A Verdade criticando a falta de atenção dada pelo prefeito Alfredo Dutra ao bairro:

151 A Verdade, 03 jan. 1918, p. 2. 152 A Verdade, 13 abr. 1919, p. 2.

Escrevem-nos do Putiú: O bairro do Putiú faz parte integrante da cidade, tanto assim é que os impostos Federaes, Estaduaes e Municipaes são cobrados, não como de subúrbio, mas como de cidade. Apesar disto e apesar de sua importância, pois tem aqui a estação da (Estrada de Ferro de) Baturité, um grande estabelecimento industrial, muitas casas de negocio e muitos moradores, – o Putiù vive esquecido dos poderes municipaes sem lhe ligarem a importancia divida! (...)

O bairro em geral vive em abandono, não tendo sido limpo dos matos e lixo que abundam por grande parte. (...)

Chamando atenção do sr. Prefeito, para tudo isto, confiamos que s. sa, delicado e

attencioso como é, dispensará sua benigna e valiosa intervenção no sentido de pôr termo a tanto descuido pelo serviço público. (...).153

A mencionada importância do Putiú se referia ao fato deste não ser meramente um distrito-bairro de moradores pobres com suas “casas mal alinhadas, (...) sem hygiene e sem o menor conforto”.154 Os moradores mais letrados reclamavam de sua relativa importância para

a cidade, com a existência de “dois hotéis, uma padaria, uma saboaria, (...) duas casas de jogos de bichos e outra de dados, cartas, etc. Seis bodegas, uma loja, alguns armazéns e um açougue...”, além da fábrica Putiú.155

Este estabelecimento de propriedade de João Cordeiro – também morador do bairro em uma casa anexa à fábrica – produzia fibras de algodão e óleos derivados do caroço. Ela empregava uma parte da mão de obra do bairro, outra parte trabalhava nos sítios existentes e estabelecimentos comerciais mencionados.

Quase um ano após a publicação da nota acima, a situação do Putiú não mudaria. Mais uma vez, a população do bairro utilizou-se do jornal A Verdade para reclamar das condições insalubres do bairro ao novo prefeito José Pacífico Caracas,156 através de abaixo assinado representado por vinte e três pessoas:157

153 A Verdade, 11 maio 1919, p. 2.

154 João Cordeiro. A Verdade, 02 nov. 1919, p. 2. 155 João Cordeiro. A Verdade, 02 nov. 1919, p. 2.

156 Caracas sucedeu Alfredo Dutra na prefeitura por nomeação do presidente do estado João Tomé. Alfredo

Dutra, que deixara o cargo, passou a ocupar a partir de então, os cargos de deputado estadual e de terceiro vice-presidente do estado do Ceará.

157 Talvez os habitantes não tivessem colhido mais assinaturas pelo número de moradores analfabetos, ou mesmo

Os habitantes do Putiú alegam deveres e reclamam direitos. Pedem-nos do Putiú a publicação seguinte:

Ilmo, Snr Dr. José Pacifico Caracas – M. D. Prefeito de Baturité.

Nós, abaixo assignados, moradores do Putiú, pedimos permissão a V. Exc. para fazermos umas reclamações que julgamos justas e dignas de serem tomadas em consideração.

O Putiú, separado da Cidade de Baturité por mais de um Kilometro, parece-nos, deveria ser considerado um subúrbio da cidade, pagando os impostos de Industria e Profissão e outros por menos do que os da cidade.

Mas a Prefeitura e a Collectoria Estadoal assim não o consideram e arrecadam todos os impostos como sendo este bairro parte integrante da cidade.

Não tendo os abaixo assignados para quem appellar dessa classificação, resta-lhes o direito de reclamar de V. Exc. as mesmas regalias a que tem direito os moradores da cidade.

Não temos illuminação electrica nem na praça da Estação da estrada de ferro, nem na Avenida que separa a cidade deste lugar. (...)

A outra reclamação que fazem (...) é sobre a água encanada. Aqui no Putiú só gosa desse benefício a estrada de ferro para fornecimento de suas locomotivas, a Fabrica Putiú e uma casa da mesma fábrica. (...).158

O jornal também chegou a publicar outra nota reclamando das condições dos vendedores de frutas do bairro, que as vendiam ao ar livre e sem nenhum suporte, no calçamento das ruas expostos ao sol, sem condições mínimas de trabalho.159

Embora percebamos uma tendência urbanizadora do bairro, sobretudo pela reivindicação de seus moradores, o Putiú mesclava o espaço suburbano com o rural. Uma nota afirmava que a “praça tem um aspecto de fazenda sertaneja, contra o que estatùe o Codigo de posturas municipaes, andam soltos no meio da praça: vaccas, bezerros, touros, jumentos, ovelhas e cabras aos rebanhos, perús, galinhas e porcos ás dezenas”.160

Vemos, assim, que o Putiú era uma zona suburbana, na transição do espaço rural para o urbano, onde os dois conviviam não sem conflitos. Podemos inferir que a ocupação do Putiú ocorreu também pela saturação do Centro de Baturité, que já estava com seus quadros

158 A Verdade, 15 fev. 1920, p. 3.

159 Outra proposta do abaixo assinado era construir um galpão para servir de mercado para os ambulantes do

Putiú.

comerciais completos, além de ter provavelmente aluguéis mais caros. Sabemos que a população de trabalhadores urbanos de Baturité também habitava setores do Centro, integralmente urbanizado, como por exemplo, as residências de Evaristo Lucena e Raimundo Barros Filho.

As bases para essa disponibilidade de mão de obra e crescimento urbano podem ser explicado pela influência que a cidade recebia de Fortaleza. Não era raro o movimento de transumância entre as duas cidades, principalmente após a construção da estrada de ferro. Uma viagem de Baturité até Fortaleza durava cerca de três horas, o que tornava possível a diversificação das atividades e negócios de habitantes das duas cidades.161