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3. RELAÇÕES ENTRE REMINISCÊNCIA E DIALÉTICA NO FEDRO

3.3 Campos de convergência

Dentro do terreno interminável da alma147 é preciso destacar os campos em que reminiscência e dialética chegam a se encontrar. As aproximações acima elencadas indicam convergências porque ambas constituem processos. A reminiscência parte da multiplicidade sensível para uma unidade superior, ou se eleva na aspiração pela beleza em direção às formas inteligíveis. A dialética é organizada em etapas seguidas e metódicas, e quanto ao homem dialético, Sócrates quer seguir-lhe os passos. A filosofia e a verdade, acima citadas, já são direções afluentes. Dentre outros campos de convergência destaco aqui a sabedoria. Na sabedoria o conhecimento e a ética também convergem.

Existem palavras verdadeiras e palavras enganosas, assim como existem amores saudáveis, benfazejos, e paixões doentias, nocivas. Os homens, precisamos reconhecer e distinguir essas qualidades. O Fedro retorna constantemente à necessidade de um tal discernimento, alertando para as confusões que se instalam entre o justo e o injusto, o verdadeiro e o falso, o belo e o feio (242e1-4; 244a6-9; 245b3-c1; 256e3-7; 258d7-8; 259e1- 3; 261c4-d8; 262a7-9; etc.). É necessário averiguar essa krisis, aprender a “desvelar” (apokryptoménou, 261e4) seus meandros, “esclarecer a natureza das coisas” (phýsin eînai

deiknýnai, 271a8) e assim constituir um método (hodós, 263b7; méthodos, 270c4; 270d9),

visando amparar as melhores escolhas, as melhores atitudes que devem acompanhar os

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Lembrando Heráclito de Éfeso (DK 22 B 45): “mesmo percorrendo todos os caminhos não encontrarias os limites da alma, tão profundo lógos ela possui”. Cito a partir da edição do texto grego em HERÁCLITO. Fragmentos contextualizados. Prefácio, apresentação, tradução e comentarios de Alexandre Costa. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005.

melhores discursos (273e5), as melhores realizações ou “iniciações” (249c8)148. A escolha ética refere-se ao objetivo que se quer alcançar, impondo uma visão lúcida e bem articulada sobre o rumo do caminho. Devemos cuidar tanto de um bom passo, quanto de um bom caminho.

O Fedro ensina, no final de suas duas partes centrais, que o melhor propósito, o alvo “sublime” (274a3) que podemos usar como critério vivencial, é aquilo que nos conduz para o acordo com os deuses. Os deuses são índices dos valores mais importantes que o ser humano pode alcançar na medida em que se alimentam sempre com a realidade essencial149.

Todo o percurso do segundo discurso de Sócrates – a segunda seção do diálogo - resulta em mostrar que há um caminho que conduz os amantes para uma vida de equilíbrio, felicidade e sabedoria. Esse é o caminho dos que se lembram da verdadeira essência do amor e a cultivam. Essa lembrança é a reminiscência. Aqueles, entretanto, que se mantém na ignorância e se esquecem do que outrora souberam, levam uma vida regida por opiniões e aparências.

Todo o percurso da terceira seção do diálogo resulta em mostrar que há um caminho que conduz os oradores a proferir discursos coerentes, bem organizados e persuasivos. Esse é o método dos que cuidam de esclarecer a verdade do seu assunto. Esse método é a dialética. Aqueles, entretanto, que se preocupam em somente persuadir, em vencer as disputas oratórias, sem se importar com a verdade de suas afirmações, permanecem presos a enganos que podem ter fatais consequências (260c9-d2).

No vestíbulo da quarta seção do Fedro retorna o tema da memória, para se enlaçar mais uma vez com o da verdade (274c5-275b2). Thot o engenhoso (tekhnê), traz justamente uma droga dirigida à memória e à ciência (274e6). Mas diante da nova tecnologia e dos avanços que ela promete – e de certo modo historicamente cumpriu – o responsável pelos julgamentos práticos, Thamus o ponderado (phrónesis), detecta as confusões e distingue os campos (275a2-b2). De um lado estão os sinais artificiosos, externos, físicos, estáticos, que

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Conforme minha nota nº 59, página 47.

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Diz o texto de 249c6-7: “o que faz um deus ser deus porque a isso ele se aplica” é o mesmo valor cultivado pelo filósofo, a saber, a reminiscência. A frequentação aos seres reais alimenta a identidade divina do deus. Ora, o que garante ao ser humano que este seja humano é uma mínima lembrança desses mesmos seres reais (249b5). Nesse sentido homens e deuses comungam, em graus diferentes, algo do mesmo alimento. Os deuses não experimentam reminiscência porque não se esquecem: sentem fome e vão se alimentar. Os homens, deslocados numa condição de esquecimento, não sabem bem que fome é essa: precisam se dedicar à busca da sabedoria. E o texto usa a imagem das asas para acentuar essa lição, pois elas - correspondendo à parte racional da alma e símbolo da reminiscência - participam do que é divino (246d7) já que se alimentam daquelas mesmas realidades (246e1). Tais analogias sugerem, portanto, um mínimo grau de identidade entre os homens e aquilo que é denominado “deuses”, pois ambos comungaram do mesmo alimento e esse alimento é o que lhes dá identidade. Viver em acordo com os deuses, ou falar e fazer o que lhes apraz (273e6-7) significa, no Fedro, falar ou dizer o que corresponde à mais pura ou mais profunda identidade humana, à essência da identidade humana.

produzirão muitos livros e uma aparência de memória, muita informação e um insuportável ar de erudição. Do outro lado estão os sinais orgânicos, os indícios internos, dinâmicos, que requerem esforço, cultivam a reminiscência e convidam à busca incessante de aprendizado. De um lado aqueles vastos recursos (hypómnesis) promovem opiniões (dóksai) que ficam boiando no esquecimento (léthe). Do outro lado o empenho em direção ao que merece ser lembrado (mnéme/anámnesis) frutifica em sabedoria (sophía) e verdade (alétheia).

O Fedro é um biblíon que se enrola nessa questão. Já o mito é artificioso, acaba de ser

inventado por Sócrates, mas este invoca os mais antigos sacerdotes (275b6) que sabiam se perguntar, simplesmente, pela verdade, pelas “coisas como elas são” (275c2). O leitor é em seguida envolvido no extremo paradoxo de um escrito que despreza os escritos150 e precisa então, o leitor, retomar a perseguição151 ao significado mais amplo desses fios delicadamente entretecidos mas aparentemente confusos diante de seus olhos, os fios de um texto que o convida a sustentar o diálogo vivo, mesmo que através das palavras fixas, e o inspira a deixar sua alma ser impregnada (276a5-6) pela tessitura que lhe desperta alguma viva aspiração.

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