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3. RELAÇÕES ENTRE REMINISCÊNCIA E DIALÉTICA NO FEDRO

3.5 Hipóteses adjacentes

Tomando agora, no vasto paralelo esboçado pelas aproximações referidas no parágrafo 3.1 acima, um ponto de vista situado do lado da reminiscência, e olhando para a dialética,

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devemos perguntar se a dialética pode vir a exercer algum papel em relação à reminiscência. Nesta segunda perspectiva as respostas me parecem já estar indicadas ou sugeridas no texto, e elas apontam para ao menos três situações.

Primeiro: das três espécies de reminiscência que foram distinguidas no primeiro capítulo – lá denominadas esforço da diánoia, lembrança da verdadeira beleza e memória de experiências arquetípicas – duas delas, a segunda e a terceira, ocorrem explicitamente no seio de um relacionamento amoroso. A reminiscência despertada pela beleza do amado e a reminiscência do caráter divino que forja a personalidade do amante, ocorrem dentro de um relacionamento interpessoal. Isso significa o compartilhamento de conversas e afetos, segundo disposições anímicas bem precisas, as quais incluem necessariamente uma série de trocas de cunho dialógico. Não há relacionamento amoroso ou de amizade sem importantes momentos em que os envolvidos entabulam uma conversação concentrada em princípios, verdades e valores que eles respeitam e cultivam, conjuntamente ou em particular. Tais momentos são indubitáveis diálogos. Portanto a dialética em seu sentido originário de

dialegésthai está inequivocamente presente naquele processo amoroso despertado por uma

reminiscência (conforme 251a-252b; 253a-c; etc). E, se for conduzido em conformidade com a hegemonia da razão (o cocheiro do carro alado), tal processo retoma continuamente a fonte da reminiscência, como está afirmado em 254b3-7. Algo semelhante ocorre na reminiscência do caráter divino que corresponde ao tipo de personalidade do amante, como está afirmado em 253a-c. Os dois tipos de reminiscência em tela ocorrem a partir do contato com a pessoa amada e são confirmados pela convivência amorosa-dialógica. Em síntese: não há relação amorosa sem diálogo. O diálogo é ingrediente imprescindível do relacionamento erótico. E este relacionamento brota de uma reminiscência e pode constituir o âmbito em que a experiência de reminiscência amadurece ou se fortalece.

Segundo caso: na quarta seção do Fedro, a sentença de Thamus, o judicioso, favorece expressamente a memória verdadeira, que é a reminiscência (275a4-5), e adverte contra os recursos mecânicos que conduzem ao esquecimento. Na esteira das críticas arroladas por Sócrates contra a escrita, encontramos uma valorização das perguntas e respostas, e do “discurso vivo” que vem inscrever-se na alma do interlocutor. Isso corresponde claramente às características da dialética e da psykhagogía, as quais, desse modo, articulam-se organicamente com a reminiscência. Em 276e5 o homem sábio, o que cultiva a reminiscência, é chamado expressamente a usar a dialética para inscrever na alma das pessoas um ensinamento vivo, ou seja, aquele máthema que dá corpo aos conteúdos da reminiscência. O método dialético contribui, portanto, para a expressão digna dos conteúdos da reminiscência.

Terceiro caso: o segundo discurso de Sócrates alude ao fato de que para o exercício da reminiscência enquanto esforço da diánoia, ou seja, para o reconhecimento das realidades essenciais que não gozam do resplendor especial da beleza, faltam-nos órgãos mais acurados. Ora, a dialética é um método que fortalece nossos órgãos de raciocínio. De Péricles, êmulo da boa retórica, se diz que ele tinha a suficiente elevação de pensamento e perfeição de trabalho (270a1-3) que caracterizam a dialética, método capaz de formar uma ideia justa da natureza

de qualquer coisa. A dialética é considerada um método capaz de superar a cegueira e a surdez de espírito (270d9-e4). São expressões claramente simétricas à fraqueza de nossos órgãos de entendimento (250b4) e sintonizadas com a demanda de uma percepção aguda

(250b1) exigida pela reminiscência.

Um aspecto a ser levado aqui em conta é que o segundo discurso de Sócrates se realiza não apenas no contexto mais amplo de uma interlocução intensa168, mas – radicalmente – o discurso aconteceu por causa de uma interlocução dialógica. Conforme o enredo do Fedro, o segundo discurso de Sócrates é causado pelo caráter erótico-didático da relação entre Sócrates e Fedro, como escreveu Thomas Calvo (1992, p. 56). Portanto o sentido originário de dialética enquanto dialegésthai – focalizado no parágrafo 2.1. do segundo capítulo da dissertação – não pode ser afastado da origem causadora da palinódia.

Uma condição especial se revela se quisermos comparar a reminiscência com a persuasão. Poderemos, à primeira vista, cogitar que esta não tem nada de semelhante com aquela. Reminiscência é o ato interno de recordar uma certa experiência anímica passada, mais especificamente uma experiência pessoal de contato com as realidades essenciais, todas verdadeiras. Persuasão é um cometimento exercido sobre outra pessoa, portanto externo a esta, visando mover sua alma numa direção que também poderá ser-lhe exterior.

Em termos do primeiro aspecto da reminiscência – o esforço da diánoia do filósofo – poderíamos calcular que a persuasão, enquanto mero jogo de sedução, não precisa da verdade. E correspondentemente a reminiscência, enquanto esforço puramente racional, não precisaria da persuasão. Mas isso muda completamente quando se trata do segundo aspecto da reminiscência – a lembrança da beleza essencial – porque nesse caso a reminiscência ocorre dentro de uma relação erótica, na qual não há como excluir a força da sedução. Com efeito, vimos que o esforço da diánoia sustenta a lucidez da razão, ou do cocheiro da alma nos termos do mito. De modo que ao ver o amado, o amante se vê tomado pela paixão que o atrai para a proximidade e a convivência com o amado e ao mesmo tempo se lembra da realidade

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O relacionamento entre os personagens Sócrates e Fedro, em seu conjunto, é todo ele uma psicagogía como podemos ver no artigo já mencionado de Miriam Peixoto (in CASERTANO, 2011, p. 173-206) 

essencial da beleza. A reminiscência dirige a alma para as realidades inteligíveis e ao mesmo tempo se alimenta com o contato sensível com o amado. Nesse movimento que éros provoca na alma do amante – e depois também, correspondentemente, no amado – há uma interlocução que não se faz só com palavras mas contém uma busca de verdade e de vida filosófica, correspondendo portanto à relação dialógica. Nesse mesmo sentido o movimento em pauta implica um certo tipo de psykhagogía, que não se faz só com palavras mas num jogo pleno de sedução, com todo o vigor de Peithó, a divindade auxiliar de Afrodite169.

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