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CRITÉRIOS RELATIVOS AO TRABALHO COM A ORALIDADE: A linguagem oral, que o aluno chega à escola dominando

5.3 Canção e recontextualização

Outro dispositivo de análise do processo de didatização do conhecimento parte da noção de recontextualização (Bernstein, 1996; Caillot 1996; Marandino, 2004, 2005). A primeira premissa é a de que todo entorno de um texto é um contexto, portanto, quando trazido para dentro do discurso pedagógico, o conhecimento é invariavelmente recontextualizado (Bernstein, 1996).

Com a noção de recontextualização, as relações entre saberes se tornam mais complexas. A recontextualização, ou seja, a extração de um objeto de ensino de um outro contexto social legitimado que não o acadêmico e sua recolocação em contexto escolar também é uma manobra científica. No entanto, é o próprio savoir savant da educação e da linguística aplicada que aponta a solução para fora da academia. Segundo a noção de recontextualização (Caillot, 1996), o savoir savant não é a única fonte de referência para o savoir enseigné, uma vez que há também outros saberes relacionados a diversas outras práticas sociais e esse parece ser justamente o caso da teoria dos gêneros do discurso aplicados ao ensino de língua. Os saberes jornalísticos, literários, populares, musicais, dentre tantos outros, influenciados, mas nem sempre arbitrados, pelos saberes acadêmicos compõem o repertorio de práticas discursivas que a comunidade acadêmica concorda em deslocar para o currículo escolar, de maneira plural e com vistas ao desenvolvimento das capacidades linguísticas, textuais e discursivas dos alunos de modo geral.

Marandino (2004) faz uso desse aparato para compreender a didatização do conhecimento em um contexto bastante semelhante ao nosso, por conta de sua complexidade. Em seu artigo, faz um apanhado teórico para analisar o que qualifica como discurso expositivo do museu de ciências. Ela resume algumas das principais diferenças entre os conceitos de transposição e recontextualização, com vistas à forma que o conhecimento assume: o texto.

Já na perspectiva da recontextualização, o foco é estudar a transferência dos textos entre diferentes contextos de produção e reprodução, mediada pelas relações de poder e pela regulação do

discurso de ordem social: há aqui a produção de um discurso com características de discurso recontextualizador, o discurso pedagógico, sendo que o discurso regulativo se sobrepõe ao instrucional.

Desse modo, uma das principais diferenças entre a transposição didática e a recontextualização, a meu ver, está na compreensão do papel da “ordem social” na transformação do conhecimento científico e na produção do saber a ser ensinado e do discurso pedagógico. Para Chevallard, a legitimação acadêmica se sobrepõe à social. Para Bernstein, o discurso regulativo – de ordem social – é o legitimador. (2004: 204)

Se no caso da atividade de análise da conversação o conhecimento científico se sobrepôs ao social, em outros, sobretudo quando a perspectiva adotada é a dos gêneros textuais/discursivos, temos uma configuração inversa.

A recontextualização na perspectiva do ensino por meio de gêneros apresenta um potencial de ser um processo que busca neutralizar o “achatamento” dos textos em textos pedagógicos, textos para aprender. No entanto, o que venho constatando é que o discurso pedagógico tem absorvido análises formais, generalizantes e prescritivas em detrimento de análises sócio- históricas, locais e reflexivas.

Procurando por estratégias que driblassem o impasse de recontextualizar a linguagem oral em solo escrito, encontrei uma atividade de linguagem oral que parte de uma prática social de linguagem regional: o coco de embolada.

A atividade oral pede aos alunos que produzam um coco de embolada a partir da letra de uma canção. A unidade na qual ambos, texto e atividade oral, estão inseridos é uma unidade dedicada tematicamente ao protagonismo infantil, iniciada pela leitura de uma reportagem sobre um projeto radicado no Ceará, no qual crianças e adolescentes “tocam” uma casa de cultura.

O segundo texto da unidade é um coco de embolada. Ele é introduzido por um texto didático, no qual os autores contextualizam o texto descrevendo, direta e indiretamente, algumas de suas características. Por meio desse texto, é possível deduzir que o gênero musical é originário do Nordeste e que é parente de

outros gêneros mais conhecidos (como o repente e o cordel), pois os autores do texto são qualificados como “cantadores”. As ilustrações das páginas também indiciam o contexto de produção e circulação, algumas delas se assemelham às xilogravuras populares. Ao discorrer sobre os efeitos do improviso, assim como efeitos provocados na plateia (surpresas e risos), essa introdução remete o leitor ao “encantamento” trazido pela música.

Há poucas referências sobre o coco de embolada na internet que sejam de ordem estritamente acadêmicas. Dentre elas, muitas não são da área da literatura ou da linguística, mas da música e dos estudos etnoculturais. O saber legitimado que pode ser mobilizado é um saber de outra disciplina, a música, uma disciplina muito firmada na prática e cuja legitimação nas instituições é a mais variada: enquanto a tarefa de análise da linguagem pode ser feita por qualquer um, ela é gitimada pela academia, nas faculdades de letras. O músico, por sua vez, pode não ter tido educação formal alguma, seja em cursos livres, técnicos, conservatórios ou em faculdades. O linguista é essencialmente um acadêmico. O músico é essencialmente um cantor e/ou instrumentista.

Parece-me razoável dizer que, a exemplo do coco de embolada, a variação dos gêneros textuais/discursivos colabora para que haja menos transposição didática e mais recontextualização, já que a abordagem textual-discursiva é uma orientação teórico-metodológica, pois estimula a exploração de gêneros variados e dos conhecimentos de referência a eles atrelados.

O problema é que o maior impasse, no terreno da materialidade, permanece. Por se tratar de um gênero escrito, tratado como se de fato apresentasse características orais, a recontextualização da canção passa por processos que modificam as formas de produzir sentidos não só por conta de seu novo contexto, mas por conta de sua nova manifestação semiótica. Trazer uma canção para o livro didático é um processo intersemiótico. Embora o texto em questão seja extraído do encarte de um CD, a ressemiotização da canção, não importando se a letra vem do encarte ou foi transcrita pelo autor, não confere ao aluno condições mínimas de reproduzir a música se ele não conhecer o gênero. A leitura do encarte do CD é geralmente uma leitura muito específica, que orbita em torno da escuta da música, seja para compreender cada palavra da canção, seja para descobrir informações técnicas como autoria, instrumentos utilizados etc. É muito diferente, por exemplo, de uma leitura de um livro de poesia.

A atividade de produção oral sugere o uso de um instrumento musical, mas a simplificação didática, na perspectiva metodológica da imersão (aprender fazendo), faz com que o aluno não seja orientado quanto ao tipo de instrumento (pandeiro) e sobre as caraterísticas rítmicas e melódicas do coco. O improviso também não é falta de recursos técnicos, pelo contrário. A tradição oral apresenta seus próprios recursos acumulados de ativação da memória, planejamento do discurso, organização textual etc. Isso é parte do que garante o que se chama de improviso. Embora essas lacunas não colaborem, como na atividade analisada

anteriormente, para a estabilização da concepção cultural de linguagem oral como modalidade de manifestação inferior da linguagem, elas tampouco fazem jus a uma das provas cabais de que a oralidade é de fato complexa e recursiva: é por meio dela que se manifesta a música.

Em outros casos, no mesmo volume, a coleção remete o aluno ao seu repertorio cultural, ao de sua comunidade, à televisão, internet. Nesse caso, no caso de contextos em que não se conheça o coco previamente, a construção autônoma da atividade torna a própria atividade inviável.

Temos, portanto, outro exemplo de que a noção de ressemiotização instrumentaliza o analista com um olhar mais apurado para capturar processos complementares aos conceitos macro de transposição e de recontextualização. Quando um conhecimento, sob a forma de texto, é transportado para outro contexto, muda-se o cenário, mudam-se os atores envolvidos em sua manipulação, mudam-se as possibilidades expressivas (affordances) e, portanto, mudam-se as características semióticas na construção de sentidos do texto. Tais características não são meramente limitadas ao que se pode ou não fazer no papel. Há também, por trás delas, uma cultura da escrita que arregimenta o que a escola traz para dentro de si, que delega papéis aos textos escolares, que determina o quanto se reduz e o quanto se modifica para que o texto caiba dentro da escola. E como podemos perceber, com o caso do ensino da oralidade no livro didático, há uma cadeia de processos muito mais complexa do que a mera transposição de um conhecimento acadêmico ou da recontextualização de um conhecimento social para a escola. Ambos estão imbricados e fazem parte de um fluxo numeroso de procedimentos de delimitação e extrapolação, assim como de interrelação e cisão conceitual, e também de transição intersemiótica.