• Nenhum resultado encontrado

O livro didático e a democratização do ensino.

Uma primeira questão a ser discutida diz respeito à forma como o livro didático se reconfigura de modo a atender à emergência de demandas decorrentes da democratização do ensino a partir da década de 50. O período que segue após a segunda guerra mundial – mais tardiamente no Brasil e mais imediatamente em outros países, como os Estados Unidos – foi uma época de profundas transformações nas estruturas sociogeográficas das nações. No Brasil, a industrialização e as mudanças nas relações de trabalho no campo gerou um fenômeno de migração rural-urbana que, segundo o IBGE, fez com que o país se tornasse majoritariamente urbano na década de 1960.

Em decorrência de uma maior demanda de acesso à educação pelas classes populares, o acesso à escola veio a ser expandido. Essa ampliação do acesso à escola apresentou múltiplas consequências. Por um lado, a exemplo do que ocorreu por conta do fluxo migratório rural nos Estados Unidos, o público atendido pela escola brasileira também passou a apresentar um perfil socioeconômico e cultural mais diversificado (Bagno, 2007: 31). Essa diversidade certamente se manifesta nos falares, nos modos de usar a linguagem e nos padrões de comportamento social, de tal modo que a educação básica se torna um empreendimento cada vez mais desafiador.

Paralelamente, o perfil dos docentes também sofre alteração em múltiplos aspectos (Bunzen & Rojo, 2005), devido à mesma ampliação da rede pública e ao amplo recrutamento docente a que deu lugar, acarretando também um processo de desvalorização do professor e a perda de prestígio dessa

categoria profissional junto às classes sociais mais elevadas da sociedade. O livro didático, por sua vez, assumirá, a partir de então, um duplo papel, nenhum dos quais bem resolvidos até hoje. Para o alunado, ele deverá atender às demandas de um público de níveis de inserção social os mais variados, um público que é também, mais diversificado nos âmbitos sociolinguístico e sociocultural. Para o professor, gradualmente representado por um profissional cada vez menos prestigiado, com poder aquisitivo cada vez mais restrito, com formação mais precária e com condições de trabalho mais desafiadoras, o autor do livro didático acaba assumindo a responsabilidade de mediar os conteúdos dos próprios livros, apresentando não apenas conteúdos como também formas de abordá-los, como exercícios, questões, atividades e orientações para o professor.

Magda Soares (2001), interessada na história da formação dos professores, localiza a transformação das gramáticas e antologias por um livro único com novas características na década de 50. Essa década marca, segundo a autora, o início da transferência da função de didatizar os textos e as gramáticas do professor para o autor de livros didáticos. Até então, o livro impresso não apenas era dividido em livros de gramática e antologias, como também não lhe competia o papel de direcionar o estudo. Evidentemente, já havia algum grau de didatização do conhecimento, sobretudo nos níveis mais básicos da educação, como nas cartilhas. No outro extremo, porém, como é o caso das antologias literárias utilizadas no segundo grau, perduraram as publicações compostas somente por textos que “mereciam ser lidos”, um contingente proveniente do cânone literário conforme a época. Essas mudanças não foram bruscas e lineares, por diversos fatores, a exemplo da própria democratização do ensino, que até hoje significa pouco mais do que o acesso universal à escola.

Na década seguinte, o livro didático ganha um formato semelhante ao que apresenta hoje, quando organiza o conteúdo curricular em leitura de texto literário, atividades de intepretação e ensino da gramática (Soares, 2001). Para a autora, isso surge como uma surpresa, pois nessa época já havia uma formação específica para professores, que já não eram profissionais formados em outras

áreas – com forte ênfase em humanidades mas autodidatas na língua e na literatura. Esse aparente paradoxo, no entanto, faz muito sentido. A especialização do profissional foi uma demanda crescente que o processo de democratização do ensino desencadeou, e isso constitui um dos processos de sucateamento da educação.

Freitas e Rodrigues (2007), interessadas nos aspectos gráfico-editoriais do livro didático, afirmam que esse livro começou a se transformar no que é hoje. As autoras apontam algumas importantes mudanças no formato do livro didático nesse período.

Alguns sinais mais visíveis desta transformação foram a mudança do formato que, de 14x18cm passou a 21x28cm, e o aspecto visual das capas que, de austeras e rígidas passaram a oferecer um visual mais direcionado ao público escolar, com ilustrações e imagens. (p. 6)

Especialista em história da educação e em publicações escolares, Razzini25 (2001) nos mostra que o surgimento das técnicas e engrenagens que começam a substituir ainda mais o papel do professor – com a presença de estudos dirigidos, instruções programadas, exemplares do professor, exercícios resolvidos e respostas impressas em vermelho – é concomitante à implementação do modelo de 1971, com uma lei federal que estabelecia um novo nome para a disciplina “Comunicação e Expressão”. Ao mesmo tempo em que essa lei fomentava a “competição” entre os textos literários canônicos e outros textos (literários modernos, de autores vivos, jornalísticos, publicitários, etc.), ela objetivava a formação pragmática do alunado. A coincidência histórica da implementação da escola tecnicista e da produção de livros didáticos que incorporam vários papeis do professor é um dado de extrema relevância, pois aponta para o início de uma história de valorização do livro didático em detrimento da valorização do professor em diversas instâncias, desde a formação profissional até o salário ofertado.

25 Congresso Brasileiro de Qualidade na Educação. Simpósio 6 - O Livro Didático e a Formação de

A década de 90 foi crucial na configuração do cenário que temos hoje. A lei de 1996 revoga a lei de 1971, temos a publicação dos parâmetros curriculares do ensino fundamental, seus dois blocos, em 1996 e 1998. Como vimos, os parâmetros curriculares trazem, dentre suas várias novidades, a inclusão da linguagem oral como objeto de ensino e a variação linguística como aspecto a ser incorporado como atividade de análise linguística. Além disso, há a implementação do Programa Nacional do Livro Didático, o PNLD26, que vigora a partir de 1996 e apresenta com a resolução de 1999 um cronograma que será cumprido de modo a resultar em evento único na história das compras de livros didáticos pelo governo. Em termos de abrangência nacional, quantidade de compras, assim como regularidade e permanência, o PNLD é um programa único na história do país, regulamentando, dentre outras medidas, o aperfeiçoamento das especificações técnicas para a produção dos livros e a eliminação dos livros descartáveis. Ao longo de sua história, o PNLD também limitou a autoria dos livros didáticos aos respectivos especialistas de cada disciplina e, recentemente, na edição de 2014, iniciou a seleção de mídias digitais como componentes complementares.