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O Cancro e o Doente Oncológico Paliativo: A Perspectiva das Equipas de Trabalho

Com base no discurso dos profissionais de saúde dos serviços em causa identificaram-se sete dimensões de análise associadas à palavra cancro, nomeadamente: as dimensões demográfica, psicológica, biogenética, sistémica, social, económica e mística.

Sendo que o cancro é no princípio do século XXI uma doença em franca ascensão, se atendermos à sua dimensão demográfica, podemos dizer que ele se tem apresentado como uma ameaça à esperança de vida das populações, assumindo-se cada vez mais com um carácter intemporal.

É, no entanto, na dimensão psicológica que obtemos um panorama mais claro do que os profissionais de saúde entendem ser o cancro. Sem dúvida, trata-se de uma doença envolta nas noções de medo, de angústia, de dor e de sofrimento, sendo o apanágio de um mal que a todos atinge, ou seja, a morte. Pela proximidade do término da vida e pelo culminar de uma longa trajectória que é o processo de morrer, o cancro surge como uma doença da ocultação, ou seja, daquele estado clínico que se deseja esquecer e não pronunciar, pelo simples facto de abalar os alicerces da existência humana que atinge de forma sistémica os indivíduos nas mais variadas esferas de acção social. Espera-se que através da simulação do seu esquecimento, ele não se desenvolva de forma a conduzir os doentes à morte, antes abrindo lugar a uma ideia de cura almejada e pouco frequente. Omitindo um discurso existencial afirmativo, espera-se que ele não atinja quem dele fala. Cercado pela dificuldade expressiva dos seus interlocutores, ele dá visibilidade à forte perturbação psicológica que o caracteriza, irrompendo como uma doença assustadora pela degradação biopsicofisiológica e socioecconómica a que ele conduz.

A ideia de fraqueza que resulta da ausência de confronto com uma doença a que se atribui uma identidade maléfica, o mal como expressão de um modelo personalista interpretativo da doença, resulta e culmina no medo de morrer, tanto mais que a dor que ele infere aos doentes conduz ao equacionar dos limites do sofrimento humano e da capacidade de sobreviver no limiar da existência psico-afectiva. Sob o ponto de vista de quem pratica a medicina paliativa, estamos a falar de uma doença que exige frontalidade para que o doente tenha a melhor qualidade de vida possível, a partir do momento em que os tratamentos activos deixaram de ser possíveis, dando lugar a uma assistência paliativa, consubstanciada numa matriz de satisfação das necessidades básicas dos doentes. E porque a afastamos do nosso

quotidiano ao nível da nossa estrutura de pensamento, para melhor lidar com a impotência da medicina no processo da sua cura e com a noção de perda daqueles que nos são queridos, a sensibilização da população impõe-se como um imperativo para dominar o desmoronar psicológico a que somos sujeitos, de forma a prevenir o descontrolo sistémico que nos atravessa enquanto portadores ou enquanto familiares, amigos ou conhecidos dos cancerosos.

Mas o cancro surge também no discurso dos profissionais de saúde como tendo uma dimensão biogenética, ou seja, como sendo o produto de um património genético a que não se pode escapar, se falarmos meramente no domínio da sua manifestação ontológica, e que está associado a elevadas taxas de mortalidade. Independentemente do resultado da sua evolução, o cancro é por si só uma doença que envolve a combinação das estruturas genéticas dos ascendentes conferindo-lhe um carácter de pertença identitária familiar que não controlamos e a que dificilmente escapamos. Por isso mesmo, a componente biopsicofisiológica desta doença assume proporções sem paralelo para os profissionais de saúde, assumindo-se como uma doença que se ramifica e se converte em múltiplas patologias orgânicas que escapam ao determinismo de variáveis como o sexo, a idade, a raça, entre outras. Afirma-se por via de uma identidade assexuada, como doença progressiva e crónica que pressupõe um tratamento prolongado e que se mantém e se alimenta da perturbação constante do instituto que é a família, enquanto pilar de unificação e de coesão familiares e sociais.

Na sua abrangência e dimensão sistémicas, o cancro é distinguido pela sua capacidade de ameaça à vida. Neste caso, temos uma abordagem a esta doença que é feita pelo conceito quer de vida individual, quer de vida familiar. Ou seja, quer a noção de indivíduo, quer a noção de grupo estão presentes no imaginário dos profissionais de saúde, assim como a noção de desestabilização e de risco que lhes é iminente. Trata-se do risco de todas as áreas da vida puderem ser ameaçadas, perturbando-se a harmonia familiar por via da incapacidade de manutenção nos níveis de actividades anterior das esferas económica, social, política, entre outras, pondo mesmo em causa a condição de sociabilidade dos indivíduos nos termos da sua normalidade. Daqui deriva uma ideia de horror, o que nos remete para a total indesejabilidade desta condição humana, que tende a assumir contornos determinantes do futuro da trajectória de vida dos indivíduos. O carácter determinista desta doença e das condições de vida a que obriga enuncia, sem margem para dúvida, os limites a que remete os que dele são portadores, não só porque restringe os termos da sua actividade, como porque, dificilmente, escapam ao desfecho que é a morte. A noção de cura está, portanto, praticamente ausente dos discursos destes profissionais, se falarmos no domínio das probabilidades da sua obtenção. No entanto, é precisamente a cura que determina uma vontade manifesta de evitar aquilo a que se

denomina o 'rompimento do ser' com o consequente desmoronamento da sua condição existencial, mais uma vez sem limites etários. O seu carácter de continuidade acentua ainda mais o facto de se tratar da doença de uma vida, no sentido em que se pode arrastar penosamente por longos períodos de tempo.

Vemos então surgir no discurso destes profissionais de saúde duas abordagens distintas ao cancro: uma por via do seu estatuto de perenidade; outra por via do seu estatuto de cronicidade, sendo que, no entanto, ambas constituem duas modalidades distintas de percorrer os mundos do cancro e da sua temporalidade. Efectivamente, é esta noção de tempo que nos ajuda a compreender como é que em diferentes momentos o cancro pode ser objecto de representações sociais que acentuam ora mais, ora menos, o seu lado desregulador e destrutivo das vivências sociais.

'Portanto, é uma doença oncológica, logicamente sistémica, como digo crónica. '(...) E é neste sentido inclusivamente que quando estou com um doente destes lhe dou a esperança de vida, e comparo inclusivamente a outras doenças metabólicas, nomeadamente a uma diabetes, a problemas circulatórios, a doenças circulatórias, em que no fundo são também doenças crónicas que vão necessitando de tratamento ao longo da vida'. Entrev. nº9.

O carácter de cronicidade do cancro domina nos serviços agudos de oncologia, contrariamente à ideia de perenidade que está presente no serviço de internamento em cuidados paliativos, já que significa neste caso que se esgotaram todas as possibilidades de cura. Esta relação justifica-se em função do estádio evolutivo da doença em cada serviço.

É precisamente na dimensão social do cancro que vemos emergir o seu pendor de doença incurável, com uma conotação social fortemente negativa em virtude das associações já identificadas e que afecta determinantemente as relações sociais. O cancro surge identificado, por um lado, como a doença do egoísmo que identificamos meramente como sendo a doença dos outros que só a eles afecta, sendo que em prol dos doentes pouco fazemos no sentido de lhes proporcionar uma assistência informal que o conforte no domicílio e nas instituições de saúde, evitando uma comunicação eficaz com este acerca dos mais variados aspectos que lhes domina a memória, nomeadamente, os seus medos, os seus receios, as suas necessidades, ajudando à manutenção de uma qualidade de vida nos parâmetros desejáveis. É uma perspectiva que domina no serviço de internamento em cuidados paliativos. Por outro lado, o cancro surge como a doença do altruísmo por virtude do seu estatuto de cronicidade e da devolução sucessiva e contínua da esperança de vida que os profissionais de saúde fazem

aos seus doentes. Esta perspectiva domina nos serviços de agudos onde os doentes oncológicos são assistidos num estádio precoce da sua doença. É aqui que se manifesta, sem margem para dúvida, um dos lados positivos da intervenção dos profissionais de saúde assente na constante tentativa de contornar a ideia mais imediata da morte a que, em norma, o doente é votado e que experiencia. As experiências pessoais ou próximas dos entrevistados confere a esta dimensão um carácter vivencialista que envolve, em simultâneo, múltiplas sensações e sentimentos negativos, todos eles ancorados numa noção de desregulação e de destruição de uma normalidade social e económica do agregado familiar anterior ao seu aparecimento.

Nesta dimensão, o que se equaciona a tempo inteiro é a capacidade do cancro destruir os projectos de vida dos indivíduos, visto que é uma doença que retira o significado a muitas das acções do passado, já que as vai circunscrever no tempo em função do encurtamento da esperança de vida dos seus mentores e as vai ameaçar sem paralelo, interferindo com a prossecução dos objectivos e dos projectos pessoais para o futuro como meio de legitimação e de reafirmação da sua existência.

'(...)Coloca em causa o futuro; coloca em causa os objectivos, coloca em causa tudo o que está a pensar nos próximos tempos porque é uma doença que tem um peso atrás de si de morte, de sofrimento, de dor, de angústia'. Entrev. nº2.

São esses projectos pessoais que envolvem a dimensão do futuro que ajudam a construir uma barreira psicológica que afecta de imediato os doentes e que vai corroendo, a pouco e pouco, a vida familiar por incapacidade da sua expressão. O refúgio das famílias situa-se, por vezes, na negação da doença, ou seja, na não assunção manifesta do altruísmo e no acentuar de um egoísmo que, a nível psicológico, se revela atroz para os portadores desta doença holística, se pensarmos que ela afecta os doentes em todas as suas dimensões: biofisiológica, económica, social, psicológica, biofisiológica, cultural, política, incluindo a dimensão identitária. É precisamente através desta última dimensão que se torna mais complicado reconstituir a vida, não só social mas, sobretudo, psicológica dos doentes, permitindo-se que a inércia obstrua toda a capacidade de acção dos indivíduos.

'(...) não é só a doença em si, é tudo o que ela arrasta por detrás. Cancro é muito mais, não é só a doença mas é tudo o que a envolve. Portanto, não é só a mama, não é só o estômago, está

a perceber, é a família, é o trabalho, é o dinheiro, é as relações sociais. É tudo isso. É uma alteração completa na vida das pessoas'.' Entrev. nº3.

'(...) O cancro é uma doença que, sei lá, muito má, muito má mesmo! Eu estou-lhe a falar em termos médicos, em termos pessoais, em termos eh...sei lá, tanta coisa, em termos familiares, em termos de tudo! É uma doença que nos rompe todos!' Entrev. nº6.

Já a componente económica propriamente dita consubstancia-se basicamente numa diminuição manifesta dos recursos económicos em virtude dos indivíduos, doentes e familiares, serem votados, no percurso desta doença, por incapacidade de manutenção da capacidade de trabalho, a uma consequente redução dos rendimentos mensais que permitem a continuidade da subsistência dos seus lares e do seu nível de vida. No caso dos doentes, pode- se dizer que se trata de uma limitação imediata e directamente resultante da sua condição física; no caso dos familiares e dos amigos essa limitação económica resulta basicamente de uma assistência diária que é prestada aos doentes quando estão no domicílio a título de cuidadores informais, isto é, enquanto cuidadores leigos dos seus familiares, consumindo muitas das vezes o tempo, que de outra forma seria despendido noutras actividades remuneradas e que, não raras vezes, resulta num processo de exaustão por parte destes cuidadores, donde deriva também como consequência o carácter egoísta que vai dominando os agregados familiares em virtude da recusa da assistência informal nos domicílios dado o consequente impacto na composição dos meios de sobrevivência económicos dos mesmos. Os profissionais de saúde identificam, portanto, um processo em espiral que se vai traduzindo por alguma demissão das famílias no vínculo assistencial aos seus familiares e amigos, quando estamos a referir-nos à dimensão egoísta da doença que é o cancro. Todavia, não podemos esquecer que há uma tendência oposta, em que o carácter da assistência é vinculativo por iniciativa dos próprios familiares, acentuando-se o seu lado altruísta.

A noção de risco trespassa o discurso destes profissionais de saúde que a referem e a identificam com a incerteza económica dos agregados familiares e com a desestruturação social das relações familiares, quer no seio da família, quer nas relações desta com o exterior, nomeadamente, com o círculo dos amigos e dos conhecidos nos mais variados domínios da arena social. Neste caso, o risco de que falam é um risco, não de sobrevivência do doente em termos de longevidade, mas de um risco económico que acentua ainda mais a degradação psicológica que o agregado familiar experiencia, tornando-a, por vezes, num verdadeiro drama familiar e social. Trata-se de um processo circular em que todas as componentes do 'eu'

são afectadas e se ressentem num sentido bidireccional. Aquilo que no início da doença é um processo etápico e progressivo, rapidamente se transforma num processo circular, aglutinador e caótico por via da sua dispersão.

Podemos dizer que assim como se verifica o processo de metastisação do cancro a nível corporal, também se manifesta em simultâneo um processo de 'metastisação familiar' já que todas as componentes da vida em família, na óptica individual, são afectadas, bem como na óptica do grupo de pertença. Surgem aqui duas dimensões de análise propriamente ditas: a dimensão da vida na óptica do agregado familiar, isto é, enquanto grupo social, e a dimensão da vida familiar a partir do ponto de vista do doente. Ambas sofrem um processo de erosão e de desgaste aos mais variados níveis, contribuindo para que o cancro seja perspectivado na sua vertente mais negativa como a doença indesejada e dos 'indesejados'. A conotação social do cancro acentua-se drasticamente pela negativa sobressaindo os seus efeitos mais negativos associados a um processo de exclusão social e muitas vezes familiar. Pode-se dizer que adoece, quer o indivíduo, quer a família, já que a teia social que os une é objecto de um processo de desintegração que afecta, mais uma vez, o indivíduo a título pessoal, quer a família enquanto instituto de agregação e de unificação dos seus membros. É neste sentido que se pode dizer que o cancro é uma doença social, e não só do indivíduo, que se ramifica pelo tecido social, não por via da erosão física dos órgãos dos doentes, mas pela fragilização psicológica em que mergulham os indivíduos por força do peso da doença e da sua capacidade de devastação de todos os domínios de vida, estendendo-se para além do episódio singular da morte do doente oncológico.

A transformação da vida individual e familiar é de tal forma extrema e radical que começa a emergir um outro domínio de análise: a dimensão mística da doença oncológica. A partir da interpretação familiar e indivividualista desta doença surge-nos no discurso dos profissionais de saúde um modelo familiar corrompido. Como evidente temos a destruição dos padrões de normalidade familiar e de um modelo existencial anteriormente dominantes na vida dos indivíduos associados a toda uma série de adjectivos qualificativos que nos ajudam a compor o quadro das representações sociais dos profissionais de saúde relativamente à vida familiar dos seus doentes. Este é um retrato que surge por via da constituição das próprias equipas de trabalho e das funções que estão associadas a cada membro. O papel da assistente social é aqui determinante, ajudando a que toda a equipa conheça, não só o perfil do doente, como do contexto familiar em que este se vem movendo ao longo dos tempos, apurando-se as necessidades e os desejos manifestos destes e dos seus familiares, que são objecto de análise por parte dos elementos da equipa de trabalho, para aferir da sua possível satisfação. Resulta

disto um quadro e um programa social e médico de apoio ao doente e à família em virtude da decomposição dos pilares de vida familiar.

Esta decomposição está bem expressa nas noções de mal, de horror, de susto e de terror que são categorizadas como pertencentes a um plano místico que surge no discurso dos profissionais de saúde, para classificar os sentimentos que resultam da proximidade com os doentes oncológicos no domínio assistencial. O egoísmo e o medo andam de mãos dadas nesta análise pois são eles que funcionam como entropias à comunicação familiar, quer no seio da família, incluindo o doente oncológico, quer na relação desta com os profissionais de saúde. Existe, à partida, no discurso dos profissionais de saúde, uma concepção egoísta que se vê acentuada por força de um sentimento derrotista dominante no serviço de internamento em cuidados paliativos. Desde logo, quando os profissionais de saúde pensam no que é o cancro, sobressai a incapacidade de acção dos próprios, porque se trata de uma doença que não se enfrenta porque é a doença da morte, a doença incurável, a doença dos limites, que questiona as próprias fronteiras e as potencialidades da prática e do exercício profissionais. O plano da esperança é bastante restrito, precisamente porque são poucos os doentes que conseguem reverter a seu favor esta doença, obtendo uma cura.

'É uma doença que...de morte. Acho que não tem cura. Acho que não tem cura e quando tem é...acho que é um bocado limitada. Lá vem uma outra, entre não sei quantas pessoas, que passam!' Entrev. nº5.

Temos então duas formas de perspectivar o cancro, partindo da abordagem dos profissionais de saúde nos serviços em que trabalham. No serviço de internamento em cuidados paliativos onde se acentua o carácter terminal da assistência, donde resulta um impacto fortíssimo, quer na estrutura de prestação de cuidados, quer na relação egoísta da família com o doente e com o serviço. A morte domina este espaço de prestação de cuidados pela fase evolutiva da própria doença. Nos serviços oncológicos de agudos temos uma perspectiva de cronicidade da doença que vinga por força da variedade de cenários de prognóstico que se podem apresentar ao doente até ao momento da morte.

A esperança está associada à ideia de cura e de destruição desta doença ameaçadora da vida. Como peritos nesta matéria, o seu próprio discurso reafirma esta concepção derrotista, porque é consubstanciada numa prática profissional que envolve o acompanhamento e a assistência diárias aos doentes oncológicos. São os próprios profissionais que nos remetem para a ideia do esquecimento, ou seja, para a afirmação de uma existência que, para ser

reforçada, precisa de pôr de parte a memória da doença oncológica. Por isso o cancro surge como a doença do esquecimento, como a doença da falta de memória social, por ameaçar, por norma, tudo o que simboliza a vida.

A noção de maldade e de malignidade oncológicas associada ao discurso dos profissionais de saúde vem reforçar ainda mais estas metáforas, precisamente, porque assentam numa concepção de um projecto pessoal de vida que se vê afectado no seu âmago, porque combina no seu seio inúmeras esferas de acção que se vêm limitadas em termos da sua concretização individual e social. Aqui, o cancro surge como a doença que nos corrói