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1.2.3. Modelos experimentais que possibilitam o completo desenvolvimento do

1.2.3.1. Canis lupus familiaris

Cães (Canis lupus familiaris) podem ser experimentalmente infectados pelo S.

stercoralis e foram várias vezes empregados como modelo animal para a

estrongiloidose (Fülleborn 1914, Sandground 1926a, b, 1928, Faust 1933, 1935, Grove & Northern 1982, Grove et al. 1983, 1988, Schad et al. 1984, 1989, 1993, 1997, Genta et al. 1986, Mansfield & Schad 1992, Mansfield et al. 1995), visto que a

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suscetibilidade destes animais a algumas linhagens humanas e caninas de S. stercoralis é conhecida desde os estudos pioneiros realizados no início do século passado.

No estudo de Fülleborn (1914), após a infecção de cães com diferentes isolados humanos do parasito, os animais apresentaram um parasitismo cuja duração foi de poucas semanas. Além disso, espécimes experimentalmente infectados com

Strongyloides obtido de cão, morfologicamente indistinguível do S. stercoralis

humano, possibilitaram observações fundamentais para o conhecimento do ciclo do parasito. A fim de identificar a rota e a necessidade de migração do nematódeo por determinados órgãos do hospedeiro, cães, cuja ligação natural entre a traqueia e o esôfago fora previamente interrompida por procedimento cirúrgico, receberam inóculos contendo larvas infectantes do parasito. Pela primeira vez foi demonstrado que para o desenvolvimento do S. stercoralis a migração pelos pulmões e traqueia do hospedeiro era necessária. Adicionalmente, quando Fülleborn colocou os nematódeos recuperados do pulmão de um animal diretamente no estômago de outro cão, os vermes ainda imaturos alcançaram o intestino do hospedeiro e tornaram-se fêmeas adultas parasitas, não sendo mais necessária qualquer migração tecidual. Estes achados foram corroborados com menor riqueza de detalhes e complementados com informações adicionais sobre o parasito por outros pesquisadores (Sandground 1926a, b, 1928, Kreis 1932, Faust 1933) que trabalharam igualmente com o modelo canino.

Faust (1935) descreveu as lesões induzidas pelo parasito durante a sua migração nestes animais, da penetração das larvas na pele às fêmeas adultas na mucosa intestinal. Demonstrou que a resposta do hospedeiro é variada e que o infiltrado inflamatório provocado pelas formas larvares, quando presente, ocorria na periferia do parasito e ao longo de seu trajeto migratório. Além disso, em alguns casos, a reação inflamatória parecia englobar e destruir o nematódeo formando granulomas que então evoluiriam para fibrose.

A influência da cortisona sobre aspectos da estrongiloidose experimental foi pela primeira vez investigada por Galliard & Berdonneau (1953) que observaram que cães que receberam previamente o corticosteroide foram mais suscetíveis ao S.

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talvez tenham antevisto a questão da hiperinfecção e infecção disseminada pelo parasito, frequentemente associada ao uso de imunossupressores.

Grove et al. (1983), utilizando um isolado humano de S. stercoralis, verificaram a ocorrência de autoinfecção e hiperinfecção em cães experimentalmente infectados pelo parasito que receberam tratamento imunossupressor. Posteriormente, estes achados foram corroborados por Schad et al. (1984) que trabalharam com cães da raça Beagle infectados com S. stercoralis obtidos de um espécime desta mesma raça naturalmente infectado.

Desde então a linhagem oriunda de beagles tem sido mantida nestes animais na

University of Pennsylvania, Estados Unidos da América (EUA), tendo possibilitado se

estudar as causas da esterilidade das fêmeas do parasito observada durante infecções crônicas, o processo de hiperinfecção em animais imunossuprimidos e aspectos adicionais referentes à migração do S. stercoralis no hospedeiro canino (Schad et al. 1984, 1997, Genta et al. 1986). Nestes estudos, sobre a migração do parasito, um aspecto significativo foi diferente do classicamente relatado. Com base em larvas radiomarcadas demonstrou-se que a rota traqueobrônquica, pelo menos em filhotes desta raça de cão, não é utilizado pela maioria das larvas, consistindo a via migratória de uma dispersão aleatória ao longo do organismo (Schad et al. 1989, Mansfield et al. 1995).

No entanto, há a possibilidade de uma dada população de S. stercoralis se alterar após sucessivas passagens em um mesmo hospedeiro ou quando a adaptação de uma linhagem do parasito a outra espécie hospedeira é tentada. Esta ideia é corroborada pelo fato de uma linhagem de S. stercoralis, isolada de um paciente do Sudeste Asiático e mantida em primata não humano, ter o período pré-patente, já após a segunda passagem em beagles, diminuído. A partir da quarta geração, o processo de hiperinfecção e qualquer tipo de migração extraintestinal deixaram de ser observados mesmo quando os cães receberam altas doses de glicocorticoide (Genta 1989b). Como explicação para estes achados, resultados de um possível processo de seleção, postulou-se que o cão seria um hospedeiro anormal para a linhagem de S. stercoralis utilizada e que as mudanças observadas seriam decorrentes de uma reação do parasito, buscando completar a sua maturação e reproduzir antes de ser expelido. O mesmo não

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fora observado quando das sucessivas passagens da linhagem de S. stercoralis canino em beagles, sendo ainda mencionado que a infecção experimental de cães com isolados humanos do parasito resultam em diferenças substanciais de intensidade parasitária e duração da infecção.

Grove & Northern (1982), avaliando cães infectados com S. stercoralis de origem humana, obtiveram resultados interessantes referentes à infecção pelo parasito, incluindo aspectos relacionados à eosinofilia e à resposta humoral dos animais. Entretanto, reconheceram dificuldades práticas na realização de seu estudo relacionadas às limitações físicas e aos altos custos do alojamento de cães que apresentam um porte relativamente grande, o qual restringe a utilização deste modelo. Além disso, os autores reforçaram a grande variabilidade na suscetibilidade de cães à infecção pelo S. stercoralis, já observada pelos primeiros investigadores, e sugeriram que estas variações poderiam refletir peculiaridades do parasito, do hospedeiro ou de ambos.

Dentre as limitações expostas, talvez a principal desvantagem atribuída ao modelo canino seja a sua suscetibilidade extremamente variável ao Strongyloides. Fülleborn (1914, 1927) já observara que linhagens humanas de S. stercoralis de diferentes regiões apresentavam uma capacidade variável de penetrar e se desenvolver em cães. De fato, ele obteve sucesso na infecção experimental de cães com o parasito oriundo da China (RPC), mas quando larvas do nematódeo originárias do leste da África foram inoculadas neste modelo animal os resultados foram negativos. Os cães que se infectaram, todos exclusivamente por nematódeo de origem chinesa, não apresentaram infecção duradoura, como já comentado, podendo ser o modelo canino insuficiente para o estudo do parasito humano. Em outro experimento, no qual um isolado humano de S. stercoralis dos EUA foi utilizado, a maior parte dos cães experimentalmente infectados pelo parasito se curaram espontaneamente em poucas semanas e adquiriram resistência à reinfecção. Um terço dos animais, no entanto, sobretudo os mais novos, apresentou uma infecção comparativamente mais longa, que chegou a durar alguns meses (Sandground 1928). No Vietnã, cães mostraram-se também suscetíveis ao parasito de origem humana e a cura espontânea dos animais ocorreu tardiamente (Galliard 1967).

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Entretanto, há indícios experimentais de que as larvas de Strongyloides obtidas de cão seriam incapazes de produzir infecção em humano, sendo a infecção natural de cães praticamente nula em regiões norte-americanas endêmicas para o parasito (Augustine & Davey 1939, Augustine 1940). Por outro lado, S. stercoralis foi relatado em canídeos de áreas que até então são consideradas livres da infecção humana (Kapel & Nansen 1996, Dillard et al. 2007).

Diferenças moleculares entre S. stercoralis de cão e humano também foram demonstradas. Hasegawa et al. (2010) sugeriram que a transmissão entre hospedeiros de grupos diferentes é pouco frequente. Além dos relatos de casos humanos de estrongiloidose com o parasito de origem canina serem raros, esses autores se basearam na demonstração de que as diferenças de infectividade do parasito que foram observadas relacionam-se à sua genética. De fato, a análise filogenética de S.

stercoralis de diferentes hospedeiros e localidades colocou as variedades do parasito

de cão e de humano em clados diferentes, não se repetindo o mesmo por região geográfica. Amostras de S. stercoralis de origem canina do Japão foram filogeneticamente mais próximas ao S. stercoralis de cão dos EUA do que das amostras de humanos e chimpanzés obtidas de diferentes localidades japonesas e também da Tanzânia (Hasegawa et al. 2010).