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Ainda nas primeiras décadas do século XX, casos graves da estrongiloidose referentes a pacientes que apresentavam história de condições capazes de modular o sistema imunológico do hospedeiro como o alcoolismo (Gage 1911), câncer (Shimura & Ogawa 1920) e hanseníase (Torres & Azevedo 1938) foram descritos. A ocorrência de autoinfecção e hiperinfecção já era discutida à época, mas a ideia de infecção disseminada em pacientes albergando o S. stercoralis não era ainda clara, apesar de larvas de S. stercoralis terem sido encontradas em substâncias outras que não as fezes, o sangue ou o escarro de pacientes. De fato, larvas do parasito foram também observadas no vômito (Shimura & Ogawa 1920) e em fluidos não relacionados aos sistemas digestivo e respiratório de pacientes, como a urina (Fornara, 1923).

Fróes (1929) relatou, em uma nota prévia, o encontro de larvas de S. stercoralis em líquido pleural sero-hemorrágico de um paciente ainda em vida, mas que evoluiu

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para óbito, cujo caso clínico e autópsia foram detalhados em sua tese de concurso à cátedra de medicina tropical na Faculdade de Medicina da Bahia no ano seguinte. Este foi o primeiro registro de um caso de estrongiloidose fatal autopsiado no Brasil, sendo larvas encontradas em grande número nos pulmões e líquidos pleural e pericárdico. Mesmo com a pesquisa negativa para Mycobacterium tuberculosis, Fróes (1930a) mencionou como causa mortis do paciente uma provável pleurite tuberculosa, baseando-se no exsudato de natureza hemorrágica rico em linfócitos e na epidemiologia do agravo, uma vez que a maioria absoluta dos processos inflamatórios da pleura à época devia-se à tuberculose. Ele sugeriu que a infecção pelo S. stercoralis poderia ter desempenhado um papel na diminuição da resistência orgânica do paciente favorecendo a multiplicação do M. tuberculosis. Entretanto, à luz do conhecimento atual, parece provável que sejam as infecções por Mycobacterium spp. que beneficiem o desenvolvimento do nematódeo no hospedeiro (Torres & Azevedo 1938, Caymmi- Gomes 1980, Dwarakanath et al. 1994). Sem dúvida, a maior contribuição de Fróes ao estudo da estrongiloidose refere-se ao achado de que quase a totalidade das larvas encontradas em localizações ectópicas eram rabditoides e não filarioides, o que caracteriza uma infecção disseminada pelo S. stercoralis. Tal fato causou surpresa ao próprio pesquisador e o levou a trocar correspondências com autores como Brumpt, Cort, Fülleborn, Yokogawa e Travassos, dentre outros, que reconheceram a consistência e o ineditismo de seu achado. Baseando-se nas informações obtidas, Fróes (1930a) defendeu a ocorrência da autoinfecção que alguns autores, como o próprio Brumpt, ainda contestavam. Ciente da importância da nova síndrome que observara, intitulou o seu manuscrito como “Contribuição ao estudo da biologia do Strongyloides

stercoralis: à margem de um caso raro, provavelmente inédito, de estrongyloidose”,

sendo a doença disseminada, que viria a ser mais bem estudada nas décadas seguintes, pela primeira vez, detalhadamente documentada. Apesar de sua descoberta ter sido publicada também em inglês (Fróes 1930b) e francês (Fróes 1930c), ela tem sido largamente ignorada, talvez em decorrência do termo infecção disseminada não ter sido usado.

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A partir da análise de casos de estrongiloidose fatal até então descritos na literatura, Galliard (1951) concluiu que em todos eles os pacientes apresentavam alguma debilidade prévia em sua saúde.

Desde esses relatos, casos graves de estrongiloidose, seguidos ou não de óbito, foram também descritos em associação à tuberculose (Caymmi-Gomes 1980, Dwarakanath et al. 1994, Corti et al. 2011) e novos registros têm sido frequentemente realizados em pacientes com diversos tipos de câncer (sobretudo linfoma, leucemia linfocítica crônica e mieloma múltiplo), na presença ou ausência de quimioterapia (Rogers & Nelson 1966, Adam et al. 1973, Lam et al. 2006, Vigg et al. 2006, Osuafor et al. 2007, Kia et al. 2008, Marcos et al. 2008, Yassin et al. 2010, Stewart et al. 2011), em diabéticos (Venturi & Viliotti 1984, Lam et al. 2006, Murali et al. 2010) e dependentes de álcool (Adedayo et al. 2002, Teixeira et al. 2010).

Sabe-se que as manifestações da estrongiloidose são bastante variáveis. As características clínicas decorrentes da infecção pelo S. stercoralis em indivíduos imunocompetentes variam desde as formas assintomáticas e cutâneas às intestinais graves com ocorrência de síndrome dispéptica e disentérica (Caplan 1949, Jones 1950, Biagi et al. 1975, Gill & Bell 1979, Sánchez et al. 2001, Gill et al. 2004, Concha et al. 2005, Vadlamudi et al. 2006). Este amplo espectro clínico foi inclusive foco de controvérsias no passado. Normand (1876) já relatara que a sintomatologia relacionada ao nematódeo era variada e tinha ciência de que o parasito causava diarreia e, em alguns casos, a morte dos pacientes. Ao contrário, Darling (1911), baseando-se em casos estudados na região do Canal do Panamá, reforçou a ideia bastante difundida entre pesquisadores no início do século passado de que o S. stercoralis não se associava à ocorrência de diarreia.

Atualmente não há dúvidas que pacientes imunossuprimidos podem desenvolver hiperinfecção associada à forma disseminada que é caracterizada, como brevemente aludido acima, por uma invasão significativa de diversos órgãos pelo parasito (larvas rabditoides e filarioides e mesmo fêmeas parasitas), resultando em uma síndrome potencialmente fatal que pode associar diarreia, desidratação, hemorragia pulmonar, broncopneumonia, septicemia, coagulação intravascular disseminada (CIVD) e encefalopatia (Fróes 1930a, Cruz et al. 1966, Rogers & Nelson

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1966, Rivera et al. 1970, Adam et al. 1973, Purtilo et al. 1974, Velloni 1975, Caymmi- Gomes 1980, Sánchez et al. 2001, Adedayo et al. 2002, Keiser & Nutman 2004, Ghosh & Ghosh 2007, Veloso et al. 2008, Stewart et al. 2011, Azira et al. 2013).

Há autores, principalmente médicos clínicos, que optam por não distinguir pacientes com hiperinfecção dos que apresentam critérios diagnósticos de doença disseminada, denominando-as em conjunto como estrongiloidose complicada (ou grave), por saberem que essas duas formas clínicas nem sempre são distinguíveis em pacientes vivos (Fardet et al. 2007).