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3 AMPLIFICADORES DA VOZ

3.3 Das ondas do rádio à voz deitada na letra

3.3.4 Cante lá que Eu Canto cá

Poetas niversitáro, Poetas de Cademia, De rico vocabularo Cheio de mitologia;

Se a gente canta o que pensa, Eu quero pedir licença, Pois mesmo sem português Neste livrinho apresento O prazê e o sofrimento

De um poeta camponês. (ASSARÉ, 2002, p. 17).

É com essas estrofes que, em 1978, vem a público nova antologia de Patativa do Assaré: Cante lá que eu canto cá, pela Editora Vozes. Dessa vez o incentivador da publicação foi o sociólogo Plácido Cidade Nuvens.15 Essa compilação pode ser considerada obra da maturidade de Patativa. São 105 composições, das quais 66 inéditas, com os mais variados temas sertanejos. Provavelmente seja a obra que maior visibilidade deu ao poeta, uma vez que foi distribuída por todo o país. A publicação a que se teve acesso é de 2002, na sua 13ª edição. Na apresentação do livro, assim é dito a respeito do objetivo da obra:

15

O professor Plácido Cidade Nuvens (in memoriam) também publicou Patativa do Assaré – um

63 O objetivo é simples: documentar a presença marcante de Patativa do

Assaré na história da cultura popular caririense em toda sua autenticidade

original. [...] Apreendê-lo em sua originalidade mais autêntica. Tanto é que a ele mesmo foi confiada a tarefa de selecionar e ordenar os poemas. Assim, o leitor poderá senti-lo em sua força original e o estudioso procurará compreendê-lo in natura, sem comentários nem interpretações.

Dois estudiosos fazem a apresentação da antologia: o antropólogo Francisco Salatiel de Alencar e o já referido professor Plácido Cidade Nuvens. Para o primeiro, o canto de Patativa não é de protesto nem de revolta, mas de compaixão. Em seus termos, a mentalidade do poeta “mostra-se sadiamente cristã, enraizada na tradição religiosa da Bíblia que vê, nos pobres e injustiçados, os prediletos de Deus, do Deus de Jesus Cristo Libertador” (ASSARÉ, 2002, p. 10). Nesse sentido, um dos traços característicos de Patativa seria a compaixão: uma poética devotada ao sofrimento experimentado pela comunidade sertaneja excluída. Ilustrativo desse ponto de vista é o poema Ingratidão, em que o poeta se põe numa espécie de diálogo aberto com o Cristo, contando-lhe o que se passou com um camponês oprimido. Mas, ao mesmo tempo que se dirige ao Filho de Deus, parece se comunicar também com uma plateia. Conta ele:

A histora do pobre João, Aconteceu mesmo aqui, Nesta invejada nação, Nas terras do meu Brasí. Sem um raio de esperança Começou derne criança A trabaiá no roçado,

Pro causa das consequença Dos home sem consiença,

Já nasceu sendo agregado. (ASSARÉ, 2002, p. 192).

O poema é composto de 19 estrofes, cada uma com dez versos, totalizando 190 versos. Nas sete primeiras estrofes, o narrador se concentra no exemplo de Jesus Cristo, dirigindo-se a ele como modelo, por seu padecimento na cruz para o mundo melhorar. Refere-se às suas pregações na Palestina: de paz, amor e igualdade. Ressalta que, para provar seu poder, Jesus fez aleijado correr e morto ressuscitar e, além disso, no ápice do sofrimento, perdoou àqueles que o mataram na cruz. O poeta, portanto, faz toda uma contextualização a respeito de Cristo para finalmente dizer que, apesar de todo esse empreendimento, a humanidade não aprendeu a ser feliz. Aprendeu a desenvolver-se no poder da ciência e até viajar à Lua, mas descuidou na prática do amor:

64 Nas descobertas importante,

Mas o sabido vivendo

A custa do inguinorante. (ASSARÉ, 2002, p. 192).

O “sabido”, no contexto da narrativa, é um patrão que cruelmente explora o pobre João e sua família, na dura lida da fazenda. Sucede que certo dia, enquanto João cortava uns galhos secos de um cajueiro, caiu lá de cima e “esbagaçou a bacia” na terra dura, ficando impossibilitado para o trabalho. Se o patrão já era carrasco, ainda mais o será depois de tal acidente: abandona o operário na hora em que mais precisava de socorro. João fica numa situação de total abandono em quarto de hospital, vivendo verdadeiro calvário, e só conta com a ajuda das “mué piedosa”. É interessante esse detalhe da presença da mulher na via crucis de João. Na narrativa bíblica, as mulheres estão muito presentes no caminho de Cristo até a crucifixão.16 Para completar ainda mais sua situação de abandono, o operário nem sequer tinha “a cartera do sindicato Rurá”. Ou seja, estava totalmente desprovido de qualquer proteção do Estado; era, portanto, um homem sem cidadania, excluído.

Assim, com base nesse quadro feito pelo poeta, tendo como ponto de partida a pessoa do Cristo em contraposição àqueles que o mataram, poder-se-ia concluir que, nesse caso, João seria “outro Cristo” hoje; e o patrão, nomeado no poema como “fazendeiro judeu”, representaria o sistema injusto que escraviza pessoas em nome do progresso e só as vê enquanto podem produzir. Daí a conclusão do poeta:

Todos sofrimento e dô Que isiste no mundo intero Não é sô do moradô Da queda do cajuero, Do pobre João agregado; Este mundo de pecado Tá todo cheio de João Padecendo vida amarga

A serviço do patrão. (ASSARÉ, 2002, p. 195).

Dessa maneira, o sofrimento e a dor de alguém nos rincões do sertão, aqui condensados na pessoa do operário João, são também o padecimento de quem é pobre e explorado no mundo inteiro. Como quem tem a posse de uma voz

16 Na tradicional “via-sacra” celebrada pelos cristãos na Quaresma e especialmente na sexta-feira da

Paixão, há três Estações em que as mulheres se fazem presentes: na Quarta Estação, Jesus se encontra com sua Mãe; na Sexta Estação, Verônica limpa o rosto de Jesus; na Oitava Estação, Jesus encontra as mulheres de Jerusalém.

65 necessária, porque portadora de espécie de profecia, o poeta brada noutra composição, intitulada Eu quero:

Eu quero o agregado isento Do terrível sofrimento, Do maldito cativeiro, Quero ver o meu país Rico, ditoso e feliz

Livre do jugo estrangeiro. (ASSARÉ, 2002, p. 17).

Esse poema é também elucidativo do aspecto compassivo da poética de Patativa. É nesse sentido que a obra Cante lá que eu canto cá se apresenta na sua totalidade, revelando uma sensibilidade poética, enraizada no sertão, que se reveste de força contestatória, tomando para si as dores da comunidade dos que sofrem. Além disso, o poeta, em suas composições e visão do mundo, vislumbra aspectos do cotidiano camponês que, para a multidão, poderiam passar invisíveis, por aparentemente serem secundários e efêmeros. Isso, porém, no olhar do poeta, torna-se lampejos de inspiração e fonte para a enunciação de uma palavra duradoura. Como ressalta Coutinho (2008, p. 84-85):

[...] o poeta é capaz de absorver as experiências dos semelhantes, colocá- las dentro de si, torná-las suas próprias graças à simpatia imaginativa. Destarte, o que ele traduz são os sentimentos da comunidade também, e por isso ele lidera pelo seu canto, que é de todos. O poeta fala não apenas em seu nome, mas exprime os instintos universais da humanidade.

Seria justamente nesse sentido que o poeta de Assaré entoa seu canto, traduzindo nele a dor, o abandono, o “peso da cruz”, bem como a esperança e a alegria que o sertanejo leva dentro de si.

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