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3 AMPLIFICADORES DA VOZ

3.3 Das ondas do rádio à voz deitada na letra

3.3.3 Paisagens do Sertão

Em 1970 Patativa apresenta aos seus leitores/ouvintes mais uma coletânea, intitulada simplesmente Patativa do Assaré. O responsável pela seleção foi o professor e historiador cearense J. de Figueiredo Filho. Na introdução, o professor esclarece: “É obra de parceria. O primeiro autor é o poeta PATATIVA DO ASSARÉ (sic). Sou apenas comentarista. O livro está entremeado de meus despretensiosos comentários, sorvidos igualmente da experiência, através dos sertões” (ASSARÉ, 1970, p. 8). Uma característica importante da obra, além da poesia, são os relatos do poeta ditos em prosa. Já nos seus 61 anos de idade, discorre sobre episódios de sua trajetória de vida e paixão pela poesia. Todo o seu cotidiano era motivo de inspiração, fosse para fazer graça, fosse para cantar com lirismo a dor ou a esperança. É isso que se pode notar numa visão geral do livro. Para introduzir o leitor em sua então mais nova obra, diz:

É ferro da mesma mina De Inspiração Nordestina E Cantos do Patativa [...]

60 Da poeira do Sertão

Quando passa um ano inteiro Sem cair chuva no chão. E tem a saudade e a pena Da sertaneja morena Que sofre ardente paixão, Mas, temendo algum enrêdo, Guarda consigo o segrêdo

Na caixa do coração. (ASSARÉ, 1970, p. 11).

O livro é qual uma conversa não linear. Um diálogo no qual a poesia tem lugar principal. Ora fala o homem Patativa, ora o poeta Patativa, ora também Figueiredo Filho, que apresenta possíveis significados de uma poética múltipla, a qual leva o emblema da mágoa dos sertanejos e do sofrimento humano em razão das injustiças e das épocas de calamidades climáticas. “Sentiu a tragédia da seca em sua própria carne. Seu pecado, que para mim é virtude, é desvendar sempre esse drama do Nordeste de que é protagonista” (ASSARÉ, 1970, p. 15).

A Divina Providência Sei que há de me perdoar, Pois, quem vive na indigência, Sem almoço e sem jantar, Perde a esperança e a crença, Em alegria não pensa

Nem quer saber de cantiga. Aquele que está com fome Se esquece do próprio nome,

Só se lembra da barriga. (ASSARÉ, 1970, p. 23).

A estrofe é da composição Minha reza, inspirada num contexto de calamidade climática que, no interior do Ceará, ficou conhecida como “a seca de 58”. O poema evidencia a história de um generoso senhor, de nome Joaquim Ferreira dos Santos, que, tendo boa reserva de milho, resolveu socorrer os sertanejos da vizinhança, vendendo milho fiado e sem prazo para pagamento. Mais do que a bondade desse homem, é interessante observar a figura de um sertanejo que aparece anônimo, mas é o dono da fala que percorre todo o poema. Ele tinha cinco filhos para alimentar e, sem outro meio, resolve apelar ao “paiol de seu Joaquim”. Foi dormir pensando na ida no dia seguinte, porém acordou fraco e, para encontrar forças, ajoelhou-se em oração. Enquanto rezava, não tirava o milho da memória. De repente, deu-se conta de que estava rezando “Glória Joaquim Ferreira dos Santos” em vez de “Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo”. Então procurou atentar mais na reza e recorreu à Santa Madre. Retomando a oração, ainda conseguiu dizer “em nome do Padre”, mas, ao dizer “e do Filho”, atrapalhou-se e

61 deu-se conta de que estava pronunciando: “Seu Joaquim, inda tem milho?” Desta forma conclui:

E então, como quem se enfeza, Já bastante aperriado,

Caçando na mente a reza Que mamãe tinha ensinado, Segui na mesma peleja: Bendito e louvado seja O cidadão verdadeiro, Pra sempre seja louvado Quem vende milho fiado

No distrito do Barreiro. (ASSARÉ, 1970, p. 25).

A louvação ao homem, que o poeta chama de verdadeiro cidadão, ilustra a total dependência do sertanejo, no momento sem reserva alguma para enfrentar o problema da seca e da fome. A alegria é tamanha, que, em sua reza, confunde os nomes da divindade com aquele que o socorre, sinalizando assim para uma possível crítica, segundo a qual o problema da seca não é somente culpa dos céus, mas sua solução está sobretudo nas mãos dos homens. Nessas e noutras composições, Patativa mostra a face cruel da seca e os desmandos dos governos omissos no papel de criar políticas que atendam às necessidades seculares do semiárido e dos que nele moram. No entanto, o sertão não é feito somente de secas, e isso fica evidente na totalidade da cantoria do poeta, especificamente na obra em questão. Em O retrato do sertão,14 ele não poupa versos e rimas para cantar as belezas

naturais e as riquezas sertanejas: Se o poeta marinheiro Canta as belezas do mar, Como poeta roceiro

Quero meu sertão cantar. (ASSARÉ, 1970, p. 38).

Essa composição pode ser considerada verdadeiro hino de amor ao sertão. É também uma toada nostálgica de um tempo passado, um sertão que – embora ainda muito rural e envolto em carências materiais –, pareceria, nas palavras do poeta, mais belo e um lugar no qual a vida comunitária fruía com muito maior naturalidade. É uma narrativa para as novas gerações não deixarem apagar um passado de luta, resistência e espírito festivo do sertanejo: nas noites enluaradas, nas debulhas de feijão, nas corridas de cavalo, nas noites de São João, e assim por diante. Mas isso não quer dizer que se trate somente de um canto de saudade.

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62 Trata-se também de um canto representativo de um sertão ainda vivo, marcado pelo espírito alegre e cheio de fé de um sertanejo que, segundo as rimas do poeta, é

Esta gente boa e forte

Para enfrentar consequências, Que zomba da própria sorte

Com sobrada paciência. (ASSARÉ, 1970, p. 41).

É possível afirmar que toda a obra de Patativa é um quadro, uma pintura do sertão, e o livro Patativa do Assaré é um resumo significativo disso, o essencial, como se costuma dizer a respeito da globalidade de uma obra. É, pois, o retrato do sertão, descrevendo os contrastes da vida sertaneja e, por vezes, até tendendo para uma espécie de fatalismo, como se o sofrimento e o padecer estivessem determinados. Noutras vezes, essa visão do mundo é superada, e o destino do sertanejo aparece como uma constante transformação, anunciando um devir de esperança e prosperidade, tendo o sertanejo como sujeito dos rumos de sua própria história. A obra do poeta não se permite fechar em um único ponto. Ela toma partido e, ao mesmo tempo, abre brechas para que o leitor/ouvinte tire as próprias conclusões.

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