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5.1 Histórico da educação formal na aldeia Parkatêjê

5.3.1 Cantigas de caçador

Kapràn ‘Jabuti’ (1)

PARKATÊJÊ PORTUGUÊS

Anõrxà ri he ‘Cama redonda mesmo’

Anõrxà ri hê nõrxàre ‘Cama redonda mesmo, cama’

Anõrxàre ‘Cama’

Mã jà kaprànti ri jà kapràn te ri ‘Era do jabuti mesmo’

Anõrxà ri hê nõrxàre ‘Cama redonda mesmo’

Kapràn‘Jabuti’ (2)

PARKATÊJÊ PORTUGUÊS

Kô pupu ‘Eu vi na água’

Arkwa nã kô (hô) pupun ‘Eu vi a boca dentro da água’

Mã ja kaprànti ri arkwa na kô ‘Era jabuti mesmo com a boca na

água’

Pupu hô arkwa nã kô (hô) pupun ‘Eu vi a boca dentro da água, eu vi’

Arkwa nã kô (hô) pupun ‘Eu vi a boca dentro da água’

Kra ‘Paca’ (1)

PARKATÊJÊ PORTUGUÊS

Jũm nẽ wa mã, ikre kapry hy ‘Quando eu vou, buraco vazio’

Jũm nẽ wa mã, ikre kapry hy ‘Eu entrei no mato, buraco vazio’

Ju kra ri hikre kapry ‘De paca mesmo, buraco vazio’

Jũm nẽ wa mã, ikre kapry hy ‘Eu entrei no mato, buraco vazio’

Kra ‘Paca’ (2)

PARKATÊJÊ PORTUGUÊS

Atê

Wa i pê krati, wa i pê krati ‘Eu estou cantando paca, eu estou

cantando paca

Wa i pê krati jipe tykti ‘Eu estou cantando paca com listras pretas

Wa i pê krati, wa i pê krati ‘Eu estou cantando paca, eu estou

cantando paca’

Em Kapràn ‘Jabuti’ (1), o cantador ensaia uma descrição do animal cantado por ele; em Kapràn (2) tece informações sobre onde e como encontrou sua caça. É como se uma cantiga complementasse a outra. O mesmo parece acontecer em Kra ‘Paca’ (1) e Kra (2). Neste caso, primeiro (1) o cantador relata a caçada malograda e depois (2) descreve o animal que está cantando. Talvez, essa ‘fórmula’ particular de composição das cantigas parkatêjê

constitua uma estratégia, mesmo inconsciente, de torná-las acessíveis a audiência, sendo esta uma das características do texto oral.

Para iniciar Kapràn (1), o cantador recorre à utilização da partícula enfática hê, a qual é pronunciada quando se deseja ressaltar que foi testemunha ocular de um evento. Nas quatro cantigas ocorrem repetições de quase todas as palavras e orações, favorecendo, assim, um exercício fonológico da língua, por meio do qual é possível identificar, por exemplo, sons mais fortes, sons mais suaves, sílabas, fronteiras de palavra, entre outros aspectos da língua

parkatêjê. Da mesma forma, podem contribuir com reflexões sobre determinados elementos linguísticos acionados para a construção de suas orações.

Um dos elementos recorrentes nas cantigas é o pronome livre wa, marca de primeira pessoa do singular. A partir dessa constatação, o professor poderá explicar o porquê da ocorrência desse pronome não somente naquele contexto, mas também em outras situações nas quais o falante deverá acioná-lo. Daí a importância da contribuição dos índios mais velhos, pois, conforme informei, eles detêm amplo conhecimento sobre a estrutura da língua tradicional, em comparação às demais gerações.

Para facilitar a visualização do leitor, utilizei fonte em negrito, para destacar, nas referidas cantigas, os trechos que vão se repetir, e em itálico as repetições. Os destaques evidenciam que as repetições predominam na estruturação das quatro cantigas.

Do total de cinco versos que compõem Kapràn (1), o nome anõrxà ‘cama’ ocorre três vezes; o adjetivo nõrxàre ‘redonda’, três; o enfatizador ri ‘mesmo’, cinco; kapràn ‘jabuti’, duas, e, no quarto verso, o nome kapràn está seguido por -ti, um sufixo marcador de tamanho grande. A construção possessiva, neste caso, ocorre pela justaposição dos elementos na sentença.

Da mesma forma, em Kapràn ‘Jabuti’ (2) as reiterações são frequentes. Apenas o trecho mã ja kaprànàti ri ‘era jabuti mesmo’ não é recorrente, mas aparece acompanhado pela expressão arkwa nã kô ‘boca dentro d’água’, a de maior índice de repetição. Existe uma espécie de retorno da mesma palavra (kô ‘água’), que parece encadear o ritmo do cântico ao ser produzida acompanhada de prefixo relacional seguido de verbo (pupun ‘eu vi’). Ou seja, a ocorrência deste verbo se torna previsível (ou quase maquinal) pela palavra que o enuncia, manifestando, assim, um efeito de sentido entre os dois segmentos que desvenda um saber gramatical mesmo a quem não conhece a língua parkatêjê.

Ainda com relação às repetições, Kra ‘Paca’ (1) é basicamente composta de duas orações: Jũm ne wa mã, ikre kapry hy ‘Quando eu vou, buraco vazio’ e Ju kra ri hikre kapry

hy ‘buraco vazio’. Assim, basta escutar o início da frase para automaticamente completá-la. Kra‘Paca’ (2) apresenta um arranjo ainda mais acessível, formado praticamente da oração wa i pê krati ‘eu estou cantando paca’.

Embora a proposta aqui apresentada seja primordialmente baseada na oralidade, há necessidade de se enfatizar alguns aspectos gramaticais da língua, os quais, muito possivelmente, serão demandados nas atividades de ensino e aprendizagem. Vejo também a possibilidade do início de um trabalho sobre algumas particularidades do alfabeto da língua, que não parece ser muito complexo. No geral, uma letra corresponde a um som, com algumas exceções, conforme exemplifica Araújo (1977):

a /a/ kra ‘paca’ ô /o/ kô ‘água’ à /ɜ/ pàn ‘arara’ o /ͻ/ rop ‘onça’ e /ɛ/ tep ‘peixe’ p /p/ kuputi ‘beiju’ ê /e/ terê ‘lontra’ r /ɾ/ kra ‘paca’ h /h/ hàk ‘gavião’ t /t/ katire ‘igarapé’ h /ʔ/ ãhãre ‘galinha’ u /u/ kupẽ ‘não índio’ i /i/ mĩti ‘jacaré’ w /w/ krowa ‘tora’ j /y/ parkatêjê x /tʃ/ kaxêr ‘lua’ k /k/ kapràn ‘jabuti’ y /ɨ/ pyt ‘sol’ m /m/ mĩti ‘jacaré’ ỳ /ə/ xwỳk ‘sabiá’ n /n/ kukinere ‘cotia’

As redundâncias, as paráfrases, ao lado das repetições que permeiam os textos da cultura indígena como os apresentados neste estudo, constituem uma técnica que, para Calvet (2011), define o estilo oral. Consoante o autor, tais peculiaridades dão ao cantador ou ao contador de histórias a liberdade de acionar sua criatividade para recriar seus textos, sem, no entanto, distanciá-los de sua essência, além de, evidentemente, atrair a atenção da audiência. Em narrativas parkatêjê, esses recursos linguísticos se fazem muito presentes e podem se constituir em ingrediente vantajoso num domínio pedagógico. Isso poderá ser verificado a seguir, em uma narrativa mítica amplamente conhecida entre os integrantes da Comunidade: