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Segundo o dicionário Groove (versão online), Cantilena é um termo latino cujas origens são provenientes da música da Idade Média. O termo significa “canção” ou “melodia”, ao longo da história, serviu para designar uma variedade de forma de música vocal. Inicialmente, para cantos diferentes da salmodia, a partir do século IX foi frequentemente associado à monofonia não-eclesiástica. Por volta do século XIII, passou a ser aplicado a canções polifônicas não baseadas no cantus firmus33.

Já em Dourado (2004), encontramos a seguinte definição para Cantilena: “lat. Cantillare, lit.: cantar em murmúrio. 1. Canção repetitiva lenta e monótona. 2. Durante o século XIII um tipo de polifonia simples” (DOURADO, 2004, p. 68).

No segundo movimento de Rememórias, encontramos essas descrições anteriores, pois Cantilena é uma peça de curta duração com textura polifônica e escrita em compasso quaternário. A melodia principal é simples, porém com tratamento harmônico refinado, aparecendo repetidas vezes ao longo da peça, fruto de mais uma das reminiscências de Nobre, doravante uma canção nordestina chamada a “A Muié de Lampião”, como o compositor relata a Silva (2007).

A 2ª. peça “Cantilena” é uma rememória de uma canção do Nordeste, “A muié de Lampião”, que sempre me pareceu belíssima e que eu utilizo no meu “Ciclo de Lampião” para coro misto e capella. A escrita é muito trabalhada e muito polifônica, com aquele caráter tipicamente nostálgico do Nordeste... (NOBRE Apud SILVA, 2007, p. 162).

33 Disponível em:

<http://www.oxfordmusiconline.com/subscriber/article/grove/music/04773?q=cantilena&search=quick&pos=1& _start=1#firsthit>. Acesso em: 13 fev. 2017.

Além de utilizá-la no segundo movimento da Rememorias Op. 79, no Ciclo de Lampião Op. 52,34 no Quarto Ciclo para Piano Op. 43, Marlos Nobre também a usou em Cantilena I, primeira peça da série Três Cantilenas escrita em 2009 para violoncelo e piano. Com relação à letra, consta na partitura do Cancioneiro de Lampião Op. 52 o seguinte texto:

II. É Lamp, é Lamp, é Lampa A muié de Lampião não anda de pé no chão Anda de meia e sapato lenço de seda na mão Anda de meia e sapato lenço de seda na mão É Lamp, é Lamp, é Lampa, é Lamp, é Lampião

O meu nome é Virgulino o apelido é Lampião Minha mãe me dê dinheiro pra comprar um cinturão

Pra encher de cartucheira pra brigar mais Lampião Que a mió vida do mundo é andar mais Lampião

É Lamp, é Lamp, é Lampa, é Lamp, é Lampião O meu nome é Virgulino o apelido é lampião35

Encontramos, ainda, essa melodia com pequenas variações rítmicas e texto semelhante ao Ensaio sobre a Música Brasileira do musicólogo Mario de Andrade (1972). Neste, conforme os exemplos a seguir, a canção está escrita em compasso binário (Fig.16) e, na seguinte, em quaternário.

Figura 16 - Letra e melodia da canção “É Lamp, é Lamp, é Lampa”

Fonte: Andrade (1972, p. 115).

34 Apesar de Marlos Nobre ter mencionado a peça como “Ciclo de Lampião”, consta no catálogo online disponível

no site oficial do próprio compositor como o título original “Cancioneiro de Lampião” op. 52. Escrita para coro em 1980, a obra é estruturada em três movimentos: 1. Muié Rendera, 2. É Lamp, é Lamp, é Lampa, 3. Cantigas de Lampião.

35 Letra extraída na partitura da obra Cancioneiro de Lampião Op. 52 (1980) de Marlos Nobre. Disponível em:

<https://pt.scribd.com/document/239586258/Marlos-Nobre-Cancioneiro-de-Lampiao-pdf>. Acesso em: 15 mar. 2017.

Figura 17 – Trecho inicial de Cantilena

Fonte: Nobre (1998a, p. 4).

No que concerne à técnica e à interpretação da peça, percebemos um caráter de lamento nordestino, ou o canto das lavadeiras que, segundo o compositor, são vagas lembranças da época quando morava em Recife, do cantar em murmúrio das senhoras daquela era (ZANON, 2008).36 Sobre uma simples e melancólica melodia, Nobre desenvolve uma textura contrapontística criando uma densa e refinada harmonia. Neste movimento, é evidente o tratamento cromático do compositor no contexto harmônico. Como pode ser observado as notas em destaque na linha do baixo nesse último exemplo (Fig. 17).

Em nosso processo de aprendizagem, encontramos desafios que levaram ao estudo aprofundado da técnica. Os aspectos mais trabalhados foram o legato, da condução das vozes e nas mudanças de posições da mão esquerda,37 aberturas de mão esquerda, destaque de uma linha melódica dentro de acordes, e a formação de acordes com notas em harmônicos. Assim, buscamos, na digitação, alternativas mais naturais e musicais para a realização de trechos musicais os quais classificamos como problemáticos na peça, além de poder auxiliar ou diminuir determinadas dificuldades técnicas, dependendo da proposta interpretativa.

Em relação às dificuldades técnicas citadas, fomos pesquisar na literatura exercícios isolados que auxiliaram na resolução dessas. Evidentemente, a escolha dos exercícios teve a orientação do nosso professor de violão. Partindo deste estudo, obtivemos uma melhora bastante significativa no processo com a obra.

Um dos exercícios trabalhados que surtirão efeitos positivos no legato da condução de vozes e nas mudanças de posição foi retirado do método Pumpin Nylon, do violonista americano Scott Tennant. O exercício é uma polifonia a duas vozes que consiste em executar as notas em intervalos de 2ª e 3ª menor, ambos em cordas alternadas. O objetivo é manter os dedos pressionando as notas com a duração indicada, fazendo com que não aconteça interrupção antecipada do som.

36 Documento online não paginado.

37Aspectos trabalhados depois da masterclass com o violonista e professor Dr. Thomas Patterson, da Universidade

Figura 18 – Odair’s Favorite Drill

Fonte: Tenannt (2005, p. 21).

Para o andamento, o compositor sugere “lento expressivo” com semínima a 60 bpm. Baseados em nossa performance, notamos que a peça fica bastante arrastada, sobretudo nos trechos de “poco meno” (trechos com andamento inferior), podendo resultar numa música cansativa para o ouvinte. Assim, procuramos um andamento pouco mais rápido que melhor expressasse nossas ideias musicais. Experimentamos, então, a semínima a 66 bpm e para os trechos de andamento inferior, a semínima a 56 bpm.

Concernente à digitação, vemos como boas as escolhas que constam na partitura, mas procuramos outras alternativas de maneira a contribuir na minimização das dificuldades técnicas, objetivando sempre valorizar um pouco mais a melodia principal. Conforme o exemplo (Fig.19), nossa escolha nas primeiras frases da peça foi deixar a melodia principal com uma sonoridade mais clara, brilhante. Diferentemente da digitação indicada pela edição Henry Lemoine, que inicia na terceira corda, digitamos na segunda as duas primeiras frases.

Figura 19 – Digitação da melodia principal na segunda corda

Fonte: Nobre (1998b, p. 4)

Essa escolha deu-se pelo fato de a segunda corda normalmente ter um timbre mais claro que a terceira, podendo embaraçar a comunicação da obra. Devem, também, ser consideradas as particularidades do violão quanto à construção e tipo de cordas, influenciando no aspecto timbrístico do instrumento.

Curiosamente, há três passagens na peça que notamos complexidade na escrita para digitação do trecho musical. Na primeira, presente no compasso 21, o compositor escreve o acorde de Si menor com a sétima (Lá) em harmônico. Da maneira como se apresenta na escrita, fica inviável a realização do harmônico com a digitação sugerida, como mostra a figura abaixo, em destaque o círculo vermelho.

Figura 20 – Digitação complexa no compasso 21

Fonte: Nobre (1998a, p. 4)

Sendo assim, encontramos duas formas para resolver-se a problemática: a primeira é tocar a nota Lá em som real na quarta corda (eliminando o harmônico) consegue se mantiver a digitação proposta na partitura; a segunda, as notas Ré, Fá#, Si com a meia pestana do dedo 1 (dedo indicador) e a nota Lá em harmônico com o dedo 4 (dedo mínimo) no XII traste da quinta corda (conserva o harmônico, mas altera a digitação).

Figura 21 –Digitação no compasso 21

Fonte: Nobre (1998b, p. 4).

Salientamos, na segunda passagem problemática, uma dificuldade relacionada à anatomia da mão deste autor.

No compasso 23, Nobre escreve novamente um acorde que podemos interpretar como Mi maior com sétima, tendo as notas Sol#, Mi e Ré em som real e a nota Mi em harmônico do XII traste da sexta corda. Constatamos, ao experimentar a digitação indicada com o dedo 2 na primeira corda e o 4 na sexta, ser impossível para nós a execução do trecho da maneira como está escrito. Recorremos, então, a recursos da técnica de jogar o cotovelo para frente (próximo do corpo do instrumento), tirar o apoio do polegar de traz do braço do violão (deixando a mão mais livre para a realização do movimento), mas não obtivemos resultado satisfatório. Com isso, a forma que encontramos para resolver o problema foi oitavar as notas Sol# e Sol natural e tocar o Mi em som real na quinta corda.

Vejamos uma comparação entre o trecho original (Fig. 22a) com a nossa solução encontrada (Fig. 22b).

Figura 22 – Compasso 23 de Cantilena

(22a)

(22b)

Fonte: Nobre (1998b, p. 5)

Já na terceira passagem, no compasso 40, o problema é a abertura pouco usual da mão esquerda condicionada pela distância entre a nota Si4 da primeira corda e Fá2 da sexta. Ou seja, uma abertura entre a I e a VII posição do braço do violão. Aqui, experimentamos duas formas de executá-la: na opção primeira, oitavamos a nota Fá2, transferindo-o para a quinta corda – nessa opção, sustenta-se a melodia, contudo a linha do baixo permanece prejudicada; na segunda, elegemos por tocar as notas da melodia Si-Lá-Si em harmônico com a mão direta, assim mantém-se a melodia e a linha do baixo como escrito na partitura. Acresce-se que essa forma de tocar reforça a indicação de “dolcissimo” proposta para o trecho em questão.

Figura 23 – Compassos 40-41 da Cantilena

Fonte: Nobre (1998b, p. 5).

Em relação ao timbre, há apenas três indicações na peça: duas delas estão nos trechos de mudança de andamento “poco meno” (compassos 13-20 e 32-36) que sugerem uma sonoridade “dolce” e a terceira é de “dolcissimo”, nos compassos 40 ao 44. Diante disso, nos trechos não colocados por Nobre quanto à indicação de timbre, tomamos liberdade para buscar maior colorido sonoro e mais contrastes. Assim, nossa sugestão é para os compassos que vão

de 20 ao 24 com a volta do “Tempo I” com timbre pouco metálico (Fig. 24) e do 36 ao 40 com o “a Tempo”, caracterizada pela suavidade sonora e metálica (Fig. 25). O resultado é uma maior variedade de timbres, proporcionando maior interesse no ouvinte.

Figura 24 – Compassos 20-24 da Cantilena

Fonte: Nobre (1998b, p. 5).

Figura 25 – Compassos 36-40 da Cantilena

Fonte: Nobre (1998b, p. 5).

Voltada à articulação, a proposta é tocar sempre com legato, podendo ocasionalmente tocar em

stacatto, melodias secundárias que funcionam como ponte ou ligação entre o final e início das frases.

O exemplo abaixo apresenta nossa sugestão para o compasso 8, entre o desfecho da quarta e começo da quinta frase.

Figura 26 – Compasso 8 da Cantilena

Fonte: Nobre (1998b, p. 4).

Em referência ao fraseado, o compositor delimita-o claramente com as ligaduras de frases, embora estas não se presentifiquem nos trechos em que não as há e nos compassos indicados de “poco meno”, é nítida – pelo movimento melódico – a estrutura das frases. Recorremos, ainda, à letra da canção “A muié de lampião” para compreender o fraseado nestes trechos da peça.

Figura 27 – Compassos 12-16 da Cantilena

Fonte: Nobre (1998b, p. 4).

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