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CAPÍTULO C

No documento Quincas Borba por Machado de Assis (páginas 189-198)

NENHUM   dos   habituados   da   casa   compareceu   ao   almoço.  Rubião  esperou  ainda  uns dez  minutos,  chegou  a  mandar  um  criado   ao   portão,   a   ver   se   vinha   alguém.   Ninguém;   teve   de  almoçar sozinho. Em geral, não podia suportar as refeições solitárias; estava tão  afeito à linguagem dos amigos, às observações, às graças, não  menos que aos respeitos e considerações, que comer só era o  mesmo que não comer nada. Agora, porém, era como um Saul  que precisasse de algum David, para expelir o espírito maligno  que se metera nele. Já queria mal ao portador da carta, porque  a deixara cair; ignorar era um benefício. E depois, a consciência  vacilava,   —   ia   da   entrega   da   carta   à   recusa   e   à   guarda  indefinida. Rubião tinha medo de saber alguma coisa; ora queria,  ora não queria ler nada no rosto de Sofia. O desejo de saber tudo  era, em resumo, a esperança de descobrir que não havia nada. David apareceu enfim, entre o queijo e o café, na pessoa do  Doutor Camacho, que voltara de Vassouras, na véspera, à noite.  Como   o   David   da   Escritura,   trazia   um   jumento   carregado   de  pães, um cântaro de vinho e um cabrito. Deixara gravemente  enfermo   um   deputado   mineiro,   que   estava   em   Vassouras   e  preparou a candidatura do Rubião, escrevendo às influências de  Minas. Foi o que lhe disse aos primeiros goles de café.

Candidato, eu? Pois então quem?

Camacho   demonstrou   que   não   podia   haver   melhor.   Tinha  serviços em Minas, não tinha?

Alguns.

Aqui os tem de grande relevância. Mantendo comigo o órgão  dos   princípios,   tem   recebido   solidariamente   os   golpes   que   me  dão, além dos sacrifícios que todos fazemos pelo lado pecuniário. 

Sobre isto, não me diga nada. Digo­lhe que hei de fazer o que  puder. Demais, o senhor é a melhor solução da divergência.

Divergência?

Sim,   o   Doutor   Hermenegildo,   de   Catas­Altas,   e   o   coronel  Romualdo;   dizem   que   ambos,   em   caso   de   vaga,   querem  apresentar­se; é dividir os votos.

Seguramente; mas teimam?

Creio   que   não   teimarão,   quando   eu   lhes   mandar   daqui  confirmação   dos   chefes,   porque   foi   uma   das   coisas   que   me  lançaram à cara, é que eu não tinha  poderes; confessei que,  para aquele caso imprevisto, não; mas que possuía a confiança  dos chefes, os quais me aprovariam. Creia que está feito. Então  que   pensa?   Pensa   que   trabalho   aqui   sacrificando   tempo   e  dinheiro, e algum talento, para não valer a um amigo, que tantas  provas tem dado de fidelidade aos princípios? Oh! isso não. Hão  de ouvir­me, e adotar o que lhes proponho.

Rubião, comovido, fez ainda outras perguntas acerca da luta e  da   vitória,   se   eram   precisas   despesas   já,   ou   carta   de  recomendação e pedido, e como é que se havia de ter notícias  frequentes   do   enfermo,   etc.   Camacho  respondia   a   tudo;   mas  recomendava­lhe cautela. Em política, disse ele, uma coisa de  nada desvia o curso da campanha e dá a vitória ao adversário.  Contudo,   ainda   que   não   saísse   vencedor,   tinha   Rubião   a  vantagem de ficar com o seu nome sufragado; e o precedente  contava­se por um serviço. Firmeza e paciência, concluiu. E logo em seguida: Eu próprio que sou, se não um exemplo de paciência e firmeza?  A minha província está entregue a um grupo de bandidos; não  há outro nome para a gente dos Pinheiros; e além disso (digo­lhe  isto com dor e em particular) tenho amigos que me intrigam, uns 

ganhadores, que  querem  ver se o  partido  me repele e se me  tomam o lugar... Não falemos disso! Ah! meu caro Rubião, isto de  política  pode  ser comparado   à paixão  de Nosso  Senhor Jesus  Cristo; não falta nada, nem o discípulo que nega, nem o discípulo  que   vende.   Coroa   de   espinhos,   bofetadas,   madeiro,   e   afinal  morre­se na cruz das ideias, pregado pelos cravos da inveja, da  calúnia e da ingratidão..

Esta frase, caída no calor da conversa, pareceu­lhe digna de um  artigo;   reteve­a   de   memória;   antes   de   dormir,   escreveu­a   em  uma tira de papel. Mas, na ocasião da conversa, enquanto a  repetia consigo para fixá­la, Rubião dizia que se animasse, que  ele   era   homem   para   grandes   campanhas.   E   não   fugisse   de  caretas.

De caretas? Seguramente que não. Nem de papões verdadeiros,  se   os   há.   Cá   os   espero!   Que   se   acautelem   no   dia   em   que  subirmos!   Hão   de   pagar   tudo.   Ouça­me   este   conselho;   em  política, não se... Enfim, contados os males e os bens da política,  os   bens   ainda   são   superiores.   Há   ingratos,   mas   os   ingratos  demitem­se, prendem­se, perseguem­se.

Rubião  ouvia  subjugado. Camacho  impunha;  faiscavam­lhe os  olhos. Os anátemas brotavam­lhe como da boca  de Isaías; as  palmas do triunfo verdejavam­lhe nas mãos. Cada gesto parecia  um princípio. Quando abria os braços, ferindo o ar, era como se  desdobrasse   um   programa   inteiro.   Ia­se   embriagando   de  esperanças, e tinha o vinho alegre. De uma vez, parou diante de  Rubião:

Vamos   lá   deputado;   ensaie   um   discurso,   pedindo   o  encerramento da discussão: Sr. presidente... Vamos, diga comigo: 

Sr. presidente, peço a Vossa Excelência. 

Rubião   interrompeu­o,   erguendo­se;   teve   uma   espécie   de  vertigem.  Via­se   na  câmara,  entrando   para  prestar   juramento,  todos os deputados de pé; e teve um calafrio. O passo era difícil.  Contudo, atravessou a sala, subiu à mesa da presidência, prestou 

CAPÍTULO CI

FOI nesse estado que o veio achar a noticia da morte do Freitas.  Chorou   uma   lágrima   às   escondidas;   tomou   a   si   custear   as  despesas   do   enterro,   e   acompanhou   o   defunto,   na   tarde  seguinte,  ao  cemitério.  A  velha  mãe  do  finado,  quando  o  viu  entrar na sala, quis ajoelhar­se aos pés dele; Rubião abraçou­a a  tempo   de   impedir­lhe   o   gesto.   Esse   ato   do   nosso   amigo   fez  grande impressão nos convidados. Um deles veio apertar­lhe a  mão;   depois   a   um   canto,   baixinho,   contou­lhe   a   injustiça   da  demissão que recebera, dias antes; demissão acintosa, por causa  de intrigas.

Imagine Vossa Excelência que aquilo é (com perdão da palavra)  um covil de patifes.

Chegou a hora de sair o enterro; as despedidas da mãe foram  dolorosas;   beijos,   soluços,   exclamações,   tudo   de   mistura,   e  lancinante. As mulheres não conseguiram arrancá­la dali; foram  precisos   dois   homens   e   o   emprego   da   força;   ela   gritava   e  teimava por tornar ao cadáver: meu filho! meu pobre filho!

Um escândalo! insistia o demitido. O próprio ministro dizem que  não  gostou  do  ato;  mas V. Ex. sabe, para  não  desmoralizar o  diretor...

Pan... pan... pan... soavam os martelos surdamente, pregando o  caixão.

Rubião acedeu ao pedido que lhe faziam de pegar em uma das  argolas,   e   deixou   o   demitido.   Fora,   alguma   gente   parada;   os  vizinhos às janelas, debruçavam­se uns sobre os outros, com olhos  cheios   daquela   curiosidade   que   a   morte   inspira   aos   vivos.   Ao  demais, havia o cupé do Rubião, que se destacava das caleças  velhas.   Já   se   falava   muito   daquele   amigo   do   finado,   e   a  presença confirmou a notícia. O defunto era agora apreciado  com certa consideração.

No cemitério, não se contentou Rubião com deitar a pá de terra,  ato em que foi  primeiro, por solicitação de todos; esperou que os  coveiros enchessem a cova com as suas grandes pás do ofício.  Tinha os olhos úmidos; acabou, saiu, ladeado pelos outros, e, à  porta, com uma só chapelada para a direita e para a esquerda,  saudou a todas as cabeças descobertas e curvas. Ao entrar no  cupé, ainda ouviu estas palavras, a meia voz:  Parece que é senador ou desembargador, ou coisa assim...

CAPÍTULO CII

ERA  noite  entrada,  Rubião  vinha  por  ali abaixo,  recordando  o  pobre diabo que enterrara, quando, na Rua de São Cristóvão,  cruzou com outro  cupé  que levava duas ordenanças atrás. Era  um   ministro   que   ia   para   o   despacho   imperial.   Rubião   pôs   a  cabeça   de   fora,   recolheu­a   e   ficou   a   ouvir   os   cavalos   das  ordenanças, tão iguaizinhos, tão distintos, apesar do estrépito dos  outros animais. Era tal a tensão do espírito do nosso amigo, que  ainda os ouvia, quando já a distância não permitia audiência.  Catrapus... catrapus... catrapus.

CAPÍTULO CIII

AO sétimo dia da morte de Dona Maria Augusta, rezou­se a missa  de uso, em São Francisco de Paula; Rubião lá foi, lá viu Carlos  Maria. Tanto bastou para precipitar a devolução da carta; três  dias depois, meteu­a no bolso e correu ao Flamengo. Eram duas  horas   da   tarde.   Maria   Benedita   fora   visitar   as   amigas   da  vizinhança, que a tinham acompanhado  nos primeiros dias de  aflição; Sofia estava só, vestida para sair.

Mas, não importa, disse ela convidando­o a sentar­se; fico ou saio  mais tarde.

Rubião   retorquiu   que   a   demora   era   curta;   vinha   dar­lhe   um  papel. Em todo caso, sente­se; também se pode dar um papel sentado. Estava tão bonita, que ele hesitou em dizer­lhe as palavras duras  que trazia de cor. O luto ia­lhe muito bem, e o vestido parecia  uma luva. Sentada, via­se­lhe metade do pé, sapato raso, meia  de seda, coisas todas que pediam misericórdia e perdão. Quanto  à  espada   daquela  bainha,  —   assim   chama   à  alma  um   velho  autor,   —   parecia   não   ter   gume   nem   campanhas;   era   uma  ingênua faca de marfim. Rubião esteve a pique de fraquear; a  primeira palavra arrastou as outras. Que papel? perguntou Sofia. Um papel, que suponho  grave, respondeu ele contendo­se; —  não se recorda ou não sabe que perdeu uma carta?  Não. Costuma escrever cartas? Tenho escrito algumas; mas, não me lembra se grave. Deixe ver. Rubião   tinha   os   olhos   desvairados.   Não   disse   nem   fez   nada. 

Levantou­se  para  sair, não  saiu. Depois  de  alguns  instantes  de  silêncio e inquietação, continuou sem raiva: Não é segredo para a senhora que lhe quero bem. A senhora  sabe disto, e não me despede, nem me aceita, anima­me com  os seus bonitos modos. Não me esqueci ainda de Santa Teresa,  nem da nossa viagem no trem de ferro, quando vínhamos os dois,  com   seu   marido   no   meio.   Lembra­se?   Foi   a   minha   desgraça  aquela   viagem;   desde   aquele   dia   a   senhora   me   prendeu.   A  senhora é má, tem gênio de cobra; que mal lhe fiz eu? Vá que  não goste de mim; mas, podia desenganar­me logo... Cale­se, vem gente, interrompeu Sofia erguendo­se também  e  olhando para o lado da porta. Não vinha ninguém; entretanto, podiam ouvi­lo, porque a voz do  Rubião ia aquecendo e crescendo. Cresceu ainda mais. Já não  pleiteava esperanças; abria e despejava a alma. Não me importa que ouçam, bradou ele; podem ouvir­me; agora  digo tudo, a senhora bota­me para fora e tudo acaba. Não, não  se pode fazer sofrer assim um homem. Cale­se, pelo amor de Deus!

Qual Deus!  Ouça­me  o  resto, porque  eu estou  disposto  a não  guardar nada.

Desatinada, receando deveras que algum criado ouvisse, Sofia  levantou   a   mão   e   tapou­lhe   a   boca.   Ao   contato   daquela  epiderme querida, Rubião perdeu a voz. Sofia retirou a mão, e  dispôs­se a deixar a sala; mas, chegando à porta, parou. Rubião  caminhara até à janela, para convalescer da explosão.

CAPÍTULO CIV

No documento Quincas Borba por Machado de Assis (páginas 189-198)