NENHUM dos habituados da casa compareceu ao almoço. Rubião esperou ainda uns dez minutos, chegou a mandar um criado ao portão, a ver se vinha alguém. Ninguém; teve de almoçar sozinho. Em geral, não podia suportar as refeições solitárias; estava tão afeito à linguagem dos amigos, às observações, às graças, não menos que aos respeitos e considerações, que comer só era o mesmo que não comer nada. Agora, porém, era como um Saul que precisasse de algum David, para expelir o espírito maligno que se metera nele. Já queria mal ao portador da carta, porque a deixara cair; ignorar era um benefício. E depois, a consciência vacilava, — ia da entrega da carta à recusa e à guarda indefinida. Rubião tinha medo de saber alguma coisa; ora queria, ora não queria ler nada no rosto de Sofia. O desejo de saber tudo era, em resumo, a esperança de descobrir que não havia nada. David apareceu enfim, entre o queijo e o café, na pessoa do Doutor Camacho, que voltara de Vassouras, na véspera, à noite. Como o David da Escritura, trazia um jumento carregado de pães, um cântaro de vinho e um cabrito. Deixara gravemente enfermo um deputado mineiro, que estava em Vassouras e preparou a candidatura do Rubião, escrevendo às influências de Minas. Foi o que lhe disse aos primeiros goles de café.
Candidato, eu? Pois então quem?
Camacho demonstrou que não podia haver melhor. Tinha serviços em Minas, não tinha?
Alguns.
Aqui os tem de grande relevância. Mantendo comigo o órgão dos princípios, tem recebido solidariamente os golpes que me dão, além dos sacrifícios que todos fazemos pelo lado pecuniário.
Sobre isto, não me diga nada. Digolhe que hei de fazer o que puder. Demais, o senhor é a melhor solução da divergência.
Divergência?
Sim, o Doutor Hermenegildo, de CatasAltas, e o coronel Romualdo; dizem que ambos, em caso de vaga, querem apresentarse; é dividir os votos.
Seguramente; mas teimam?
Creio que não teimarão, quando eu lhes mandar daqui confirmação dos chefes, porque foi uma das coisas que me lançaram à cara, é que eu não tinha poderes; confessei que, para aquele caso imprevisto, não; mas que possuía a confiança dos chefes, os quais me aprovariam. Creia que está feito. Então que pensa? Pensa que trabalho aqui sacrificando tempo e dinheiro, e algum talento, para não valer a um amigo, que tantas provas tem dado de fidelidade aos princípios? Oh! isso não. Hão de ouvirme, e adotar o que lhes proponho.
Rubião, comovido, fez ainda outras perguntas acerca da luta e da vitória, se eram precisas despesas já, ou carta de recomendação e pedido, e como é que se havia de ter notícias frequentes do enfermo, etc. Camacho respondia a tudo; mas recomendavalhe cautela. Em política, disse ele, uma coisa de nada desvia o curso da campanha e dá a vitória ao adversário. Contudo, ainda que não saísse vencedor, tinha Rubião a vantagem de ficar com o seu nome sufragado; e o precedente contavase por um serviço. Firmeza e paciência, concluiu. E logo em seguida: Eu próprio que sou, se não um exemplo de paciência e firmeza? A minha província está entregue a um grupo de bandidos; não há outro nome para a gente dos Pinheiros; e além disso (digolhe isto com dor e em particular) tenho amigos que me intrigam, uns
ganhadores, que querem ver se o partido me repele e se me tomam o lugar... Não falemos disso! Ah! meu caro Rubião, isto de política pode ser comparado à paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo; não falta nada, nem o discípulo que nega, nem o discípulo que vende. Coroa de espinhos, bofetadas, madeiro, e afinal morrese na cruz das ideias, pregado pelos cravos da inveja, da calúnia e da ingratidão..
Esta frase, caída no calor da conversa, pareceulhe digna de um artigo; retevea de memória; antes de dormir, escreveua em uma tira de papel. Mas, na ocasião da conversa, enquanto a repetia consigo para fixála, Rubião dizia que se animasse, que ele era homem para grandes campanhas. E não fugisse de caretas.
De caretas? Seguramente que não. Nem de papões verdadeiros, se os há. Cá os espero! Que se acautelem no dia em que subirmos! Hão de pagar tudo. Ouçame este conselho; em política, não se... Enfim, contados os males e os bens da política, os bens ainda são superiores. Há ingratos, mas os ingratos demitemse, prendemse, perseguemse.
Rubião ouvia subjugado. Camacho impunha; faiscavamlhe os olhos. Os anátemas brotavamlhe como da boca de Isaías; as palmas do triunfo verdejavamlhe nas mãos. Cada gesto parecia um princípio. Quando abria os braços, ferindo o ar, era como se desdobrasse um programa inteiro. Iase embriagando de esperanças, e tinha o vinho alegre. De uma vez, parou diante de Rubião:
Vamos lá deputado; ensaie um discurso, pedindo o encerramento da discussão: Sr. presidente... Vamos, diga comigo:
Sr. presidente, peço a Vossa Excelência.
Rubião interrompeuo, erguendose; teve uma espécie de vertigem. Viase na câmara, entrando para prestar juramento, todos os deputados de pé; e teve um calafrio. O passo era difícil. Contudo, atravessou a sala, subiu à mesa da presidência, prestou
CAPÍTULO CI
FOI nesse estado que o veio achar a noticia da morte do Freitas. Chorou uma lágrima às escondidas; tomou a si custear as despesas do enterro, e acompanhou o defunto, na tarde seguinte, ao cemitério. A velha mãe do finado, quando o viu entrar na sala, quis ajoelharse aos pés dele; Rubião abraçoua a tempo de impedirlhe o gesto. Esse ato do nosso amigo fez grande impressão nos convidados. Um deles veio apertarlhe a mão; depois a um canto, baixinho, contoulhe a injustiça da demissão que recebera, dias antes; demissão acintosa, por causa de intrigas.
Imagine Vossa Excelência que aquilo é (com perdão da palavra) um covil de patifes.
Chegou a hora de sair o enterro; as despedidas da mãe foram dolorosas; beijos, soluços, exclamações, tudo de mistura, e lancinante. As mulheres não conseguiram arrancála dali; foram precisos dois homens e o emprego da força; ela gritava e teimava por tornar ao cadáver: meu filho! meu pobre filho!
Um escândalo! insistia o demitido. O próprio ministro dizem que não gostou do ato; mas V. Ex. sabe, para não desmoralizar o diretor...
Pan... pan... pan... soavam os martelos surdamente, pregando o caixão.
Rubião acedeu ao pedido que lhe faziam de pegar em uma das argolas, e deixou o demitido. Fora, alguma gente parada; os vizinhos às janelas, debruçavamse uns sobre os outros, com olhos cheios daquela curiosidade que a morte inspira aos vivos. Ao demais, havia o cupé do Rubião, que se destacava das caleças velhas. Já se falava muito daquele amigo do finado, e a presença confirmou a notícia. O defunto era agora apreciado com certa consideração.
No cemitério, não se contentou Rubião com deitar a pá de terra, ato em que foi primeiro, por solicitação de todos; esperou que os coveiros enchessem a cova com as suas grandes pás do ofício. Tinha os olhos úmidos; acabou, saiu, ladeado pelos outros, e, à porta, com uma só chapelada para a direita e para a esquerda, saudou a todas as cabeças descobertas e curvas. Ao entrar no cupé, ainda ouviu estas palavras, a meia voz: Parece que é senador ou desembargador, ou coisa assim...
CAPÍTULO CII
ERA noite entrada, Rubião vinha por ali abaixo, recordando o pobre diabo que enterrara, quando, na Rua de São Cristóvão, cruzou com outro cupé que levava duas ordenanças atrás. Era um ministro que ia para o despacho imperial. Rubião pôs a cabeça de fora, recolheua e ficou a ouvir os cavalos das ordenanças, tão iguaizinhos, tão distintos, apesar do estrépito dos outros animais. Era tal a tensão do espírito do nosso amigo, que ainda os ouvia, quando já a distância não permitia audiência. Catrapus... catrapus... catrapus.
CAPÍTULO CIII
AO sétimo dia da morte de Dona Maria Augusta, rezouse a missa de uso, em São Francisco de Paula; Rubião lá foi, lá viu Carlos Maria. Tanto bastou para precipitar a devolução da carta; três dias depois, meteua no bolso e correu ao Flamengo. Eram duas horas da tarde. Maria Benedita fora visitar as amigas da vizinhança, que a tinham acompanhado nos primeiros dias de aflição; Sofia estava só, vestida para sair.
Mas, não importa, disse ela convidandoo a sentarse; fico ou saio mais tarde.
Rubião retorquiu que a demora era curta; vinha darlhe um papel. Em todo caso, sentese; também se pode dar um papel sentado. Estava tão bonita, que ele hesitou em dizerlhe as palavras duras que trazia de cor. O luto ialhe muito bem, e o vestido parecia uma luva. Sentada, viaselhe metade do pé, sapato raso, meia de seda, coisas todas que pediam misericórdia e perdão. Quanto à espada daquela bainha, — assim chama à alma um velho autor, — parecia não ter gume nem campanhas; era uma ingênua faca de marfim. Rubião esteve a pique de fraquear; a primeira palavra arrastou as outras. Que papel? perguntou Sofia. Um papel, que suponho grave, respondeu ele contendose; — não se recorda ou não sabe que perdeu uma carta? Não. Costuma escrever cartas? Tenho escrito algumas; mas, não me lembra se grave. Deixe ver. Rubião tinha os olhos desvairados. Não disse nem fez nada.
Levantouse para sair, não saiu. Depois de alguns instantes de silêncio e inquietação, continuou sem raiva: Não é segredo para a senhora que lhe quero bem. A senhora sabe disto, e não me despede, nem me aceita, animame com os seus bonitos modos. Não me esqueci ainda de Santa Teresa, nem da nossa viagem no trem de ferro, quando vínhamos os dois, com seu marido no meio. Lembrase? Foi a minha desgraça aquela viagem; desde aquele dia a senhora me prendeu. A senhora é má, tem gênio de cobra; que mal lhe fiz eu? Vá que não goste de mim; mas, podia desenganarme logo... Calese, vem gente, interrompeu Sofia erguendose também e olhando para o lado da porta. Não vinha ninguém; entretanto, podiam ouvilo, porque a voz do Rubião ia aquecendo e crescendo. Cresceu ainda mais. Já não pleiteava esperanças; abria e despejava a alma. Não me importa que ouçam, bradou ele; podem ouvirme; agora digo tudo, a senhora botame para fora e tudo acaba. Não, não se pode fazer sofrer assim um homem. Calese, pelo amor de Deus!
Qual Deus! Ouçame o resto, porque eu estou disposto a não guardar nada.
Desatinada, receando deveras que algum criado ouvisse, Sofia levantou a mão e tapoulhe a boca. Ao contato daquela epiderme querida, Rubião perdeu a voz. Sofia retirou a mão, e dispôsse a deixar a sala; mas, chegando à porta, parou. Rubião caminhara até à janela, para convalescer da explosão.