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CAPÍTULO LXXX MAS a voz repetiu: — E por que não? — Sim, por que não havia 

No documento Quincas Borba por Machado de Assis (páginas 155-166)

de casar, continuou ele raciocinando. Mataria a paixão que o ia  comendo aos poucos, sem esperança nem consolação. Demais,  era a porta de um mistério. Casar, sim, casar logo e bem. Estava ao portão, quando esta ideia começou a abotoar; foi dali  para dentro, subindo os degraus de pedra, abrindo a porta, sem  consciência   de   nada.   Ao   fechar   a   porta,   é   que   um   pulo   do  Quincas   Borba,   que   o   viera   acompanhando,   fê­lo   dar   por   si.  Onde   ficara   o   major?   Quis   descer   para   vê­lo,   mas   advertiu   a  tempo  que  acabava  de  o  acompanhar  até   à  rua. As  pernas  tinham feito tudo; elas é que o levaram por si mesmas, direitas,  lúcidas, sem tropeço, para que ficasse à cabeça tão­somente a  tarefa de pensar. Boas pernas! pernas amigas! muletas naturais  do espírito! Santas pernas! Elas o levaram ainda ao canapé, estenderam­se  com ele, devagarinho, enquanto o espírito trabalhava a ideia do  casamento. Era um modo de fugir a Sofia; podia ser ainda mais. Sim, podia ser também um modo de restituir à vida a unidade  que   perdera,   com   a   troca   do   meio   e   da   fortuna;   mas   esta  consideração   não   era   propriamente   filha   do   espírito   nem   das  pernas, mas de outra  causa, que  ele não  distinguia  bem  nem  mal, como a aranha. Que sabe a aranha a respeito de Mozart?  Nada; entretanto,  ouve com  prazer  uma  sonata  do  mestre. O  gato,   que   nunca   leu   Kant,é   talvez   um   animal   metafísico.   Em  verdade,  o   casamento  podia   ser  o  laço   da  unidade   perdida.  Rubião sentia­se disperso; os próprios amigos de trânsito, que ele  amava   tanto,   que   o   cortejavam   tanto,   davam­lhe   à   vida   um  aspecto de viagem, em que a língua mudasse com as cidades,  ora espanhol, ora turco. Sofia contribuía para esse estado; era  tão  diversa  de si mesma, ora  isto, ora  aquilo, que  os dias iam  passando sem acordo fixo, nem desengano perpétuo.

às sessões do  júri, à Câmara  dos Deputados, à passagem  dos  batalhões, dava grandes passeios, fazia visitas desnecessárias, à  noite, ou ia aos teatros, sem prazer. A casa era ainda um bom  repouso   ao   espírito,   com   o   seu   luxo   rutilante   e   os   sonhos   que  vagavam no ar. Ultimamente, ocupava­se muito em ler; lia romances, mas só os  históricos de Dumas pai, ou os contemporâneos de Feuillet, estes  com dificuldade, por não conhecer bem a língua original. Dos  primeiros sobravam traduções. Arriscava­se a algum mais, se lhe  achava o principal dos outros, uma sociedade fidalga e régia.  Aquelas cenas da corte de França, inventadas pelo maravilhoso  Dumas,   e   os   seus   nobres   espadachins   e   aventureiros,   as  condessas e os duques de Feuillet, metidos em estufas ricas, todos  eles com palavras mui compostas, polidas, altivas ou graciosas,  faziam­lhe passar o tempo às carreiras. Quase sempre, acabava  com o livro caído e os olhos no ar, pensando. Talvez algum velho  marquês defunto lhe repetisse anedotas de outras eras.

CAPÍTULO LXXXI

ANTES de cuidar da noiva, cuidou do casamento. Naquele dia e  nos   outros,   compôs   de   cabeça   as   pompas   matrimoniais,   os  coches,—   se   ainda   os   houvesse   antigos   e   ricos,   quais   ele   via  gravados  nos livros de usos  passados.  Oh!  grandes  e soberbos  coches! Como ele gostava de ir esperar o Imperador nos dias de  grande gala,  à porta  do paço  da cidade, para ver chegar o  préstito   imperial,   especialmente   o   coche   de   Sua   Majestade,  vastas proporções, fortes molas, finas e velhas pinturas, quatro ou  cinco parelhas guiadas por um cocheiro grave e digno! Outros  vinham, menores em grandeza, mas ainda assim tão grandes que  enchiam os olhos.

Um   desses   outros,   ou   ainda   algum   menor,   podia   servir­lhe   às  bodas, se toda a sociedade não estivesse já nivelada pelo vulgar 

cupé.   Mas,   enfim,   iria   de  cupé:   imaginava­o   forrado 

magnificamente,   de   quê?   De   uma   fazenda   que   não   fosse  comum, que ele mesmo não distinguia, por ora; mas que daria  ao veículo o ar que não tinha. Parelha rara. Cocheiro fardado de  ouro. Oh! mas de um ouro nunca visto. Convidados de primeira  ordem,   generais,   diplomatas,   senadores,   um   ou   dois   ministros,  muitas sumidades do comércio; e as damas, as grandes damas?  Rubião  nomeava­as de cabeça; via­as entrar, ele no    alto  da  escada de um palácio, com o olhar perdido por aquele tapete  abaixo, — elas atravessando o saguão, subindo os degraus com  os   seus   sapatinhos   de   cetim,   breves   e   leves,   —   a   princípio,  poucas,   —   depois   mais,   e   ainda   mais.   Carruagens   após  carruagens... Lá  vinham  os condes  de Tal, um  varão  guapo  e  uma   singular   dama...   Caro   amigo,   aqui   estamos,   dir­lhe­ia   o  conde,   no   alto;   e,   mais   tarde,   a   condessa:   “Senhor   Rubião,   a  festa é esplêndida...”

De repente, o internúncio... Sim, esquecera­se que o internúncio  devia   casá­los;   lá   estaria   ele,   com   as   suas   meias   roxas   de  monsenhor,   e   os   grandes   olhos   napolitanos,   em   conversação  com o ministro da Rússia. Os lustres de cristal e ouro alumiando os  mais   belos   colos   da   cidade,   casacas   direitas,   outras   curvas 

ouvindo   os   leques   que   se   abriam   e   fechavam,   dragonas   e  diademas,   a   orquestra   dando   sinal   para   uma   valsa.   Então   os  braços negros, em ângulo, iam buscar os braços nus, enluvados  até o cotovelo, e os pares saíam girando pela sala, cinco, sete,  dez, doze, vinte pares. Ceia esplêndida. Cristais da Boêmia, louça  da Hungria, vasos de Sèvres, criadagem lesta e fardada, com as  iniciais do Rubião na gola.

CAPÍTULO LXXXII

ESSES sonhos iam e vinham. Que misterioso Próspero transformava 

assim uma ilha banal em mascarada sublime? “Vai, Ariel, traze  aqui  os  teus  companheiros,  para  que  eu mostre  a  este  jovem  casal alguns feitiços da minha feitiçaria.” As palavras seriam as  mesmas   da   comédia;   a   ilha   é   que   era   outra,   a   ilha   e   a  mascarada. Aquela era a própria cabeça do nosso amigo; esta  não   se   compunha   de   deusas   nem   de   versos,   mas   de   gente  humana e prosa de sala. Mais rica era. Não esqueçamos que o  Próspero de Shakespeare era um duque de Milão; e eis aí, talvez,  por que se meteu na ilha do nosso amigo. 

Em   verdade,   as   noivas   que   apareciam   ao   lado   do   Rubião,  naqueles sonhos de bodas, eram sempre titulares. Os nomes eram  os   mais   sonoros   e   fáceis   da   nossa   nobiliarquia.   Eis   aqui   a  explicação:   poucas   semanas   antes,   Rubião   apanhou   um  almanaque de Laemmert, e, entrando a folheá­lo, deu com o  capítulo dos titulares. Se ele sabia de alguns, estava longe de os  conhecer a todos. Comprou um almanaque, e lia­o muitas vezes,  deixando escorregar os olhos por ali abaixo, desde os marqueses  até os barões, voltava atrás, repetia os nomes bonitos, trazia a  muitos de cor. Às vezes, pegava  da pena e de uma folha de  papel,   escolhia   um   título   moderno   ou   antigo,   e   escrevia­o  repetidamente, como se fosse o próprio dono e assinasse alguma  coisa: Marquês de Barbacena Marquês de Barbacena Marquês de Barbacena Marquês de Barbacena Marquês de Barbacena Marquês de Barbacena

Ia assim, até o  fim da lauda, variando  a letra, ora  grossa, ora  miúda,   caída   para   trás,   em   pé,   de   todos   os   feitios.   Quando  acabava   a   folha,   pegava   nela,   e   comparava   as   assinaturas;  deixava o papel e perdia­se no ar. Daí a hierarquia das noivas. O  pior é que todas traziam a cara de Sofia; — podiam parecer­se  nos primeiros instantes com alguma vizinha ou com a moça que  ele   cumprimentara   à   tarde,   na   rua;   podiam   começar   muito  magras ou gordas; — mas não tardavam em mudar de figura,  encher ou desbastar o corpo, e sobre isto vinha rutilar o rosto da  bela  Sofia,  com  os  seus mesmos  olhos  amotinados  ou  quietos.  Não  havia  fugir,  ainda  casando?  Rubião  chegou  a  pensar  na  morte do Palha; foi em certo dia, ao sair da casa dele, tendo­lhe  ouvido a ela uma porção de coisas bonitas e vagas. Grande foi a  sensação de ventura, posto que ele repelisse daí a pouco a ideia,  como   um   ruim   agouro.   Dias   depois,   trocadas   as   maneiras,  tornava ele definitivamente aos seus planos. Mais de uma vez, era  o próprio Palha que o acordava daqueles sonhos conjugais.

Tem onde ir hoje à noite? Não.

Pegue   lá   uma   entrada   para   o   Teatro   Lírico;   camarote   n.0  8, 

primeira ordem, à esquerda. Rubião chegara mais cedo, ia esperar por eles, e dava o braço a  Sofia. Se ela estava de bom humor, a noite era das melhores do  mundo. Se não, era um martírio, para repetir as próprias palavras  dele, ao cão, um dia: Vim ontem de um martírio, meu pobre amigo. Case­se; e diga que eu o engano, latiu­lhe Quincas Borbas.

—   Sim   meu   pobre   amigo,   acudiu   ele   pegando­lhe   nas   patas  dianteiras   e   colocando­as   sobre   os   joelhos.   Você   tem   razão;  precisa de uma boa amiga que lhe dê cuidados que não posso  ou não sei dar. Quincas Borba, você ainda se lembra do nosso  Quincas Borba? Bom amigo meu, grande amigo, eu também fui 

amigo dele, dois grandes amigos. Se fosse vivo, seria o padrinho  do  meu  casamento,   levantaria  os  brindes,   —  ao  menos,  o   de  honra aos noivos; — e seria por um copo de ouro e diamantes,  que eu lhe mandaria fazer de propósito... Grande Quincas Borba! E o espírito de Rubião pairava sobre o abismo.

CAPÍTULO LXXXIII

UM   dia,   como   houvesse   saído   mais   cedo   de   casa,   e   não  soubesse   onde   passar   a   primeira   hora,   caminhou   para   o  armazém. Desde uma semana que não ia à Praia do Flamengo,  por haver Sofia entrado em um dos seus períodos de sequidão.  Achou   o   Palha   de   luto;   morrera   a   tia   da   mulher,   Dona   Maria  Augusta, na fazenda; a notícia chegara na antevéspera, à tarde. A mãe daquela mocinha?

Justo.

Palha   falou   da   defunta   com   muitos   encarecimentos;   depois  contou   a   dor   de   Maria   Benedita;   estava   que   metia   pena.  Perguntou­lhe por que é que não ia ao Flamengo, logo à noite,  para ajudá­los a distraí­la? Rubião prometeu ir.

Vá,   é   favor   que   nos   faz;   a   pobre   pequena   vale   tudo.   Não  imagina   que   primor   ali   está.   Boa   educação,   muito   severa;   e  quanto  a  prendas  de  sociedade, se  não  as teve  em  criança,  ressarciu o tempo perdido com rapidez extraordinária. Sofia é a  mestra. E dona de casa? Isso, meu amigo, não sei se em tal idade  se   achará   pessoa   tão   completa.   Já   agora   fica   conosco.   Tem  uma irmã, Maria José, casada com um juiz de direito, no Ceará;  tem também o padrinho, em São João d’ EI­Rei. A defunta fazia­ lhe muitos elogios; não creio que ele a mande buscar, mas ainda  que mande, não a dou. Já agora é nossa. Não há de ser pelo  que   o   padrinho   lhe   quiser   deixar   em   testamento   que   nos  desfaremos dela. Aqui ficará, concluiu tirando com o dedo um  pouco de poeira da gola de Rubião.

Rubião   agradeceu.   Depois,   como   estavam   no   escritório,   ao  fundo,   olhou   por   entre   as   grades,   e   viu   entrar   uns   fardos   no  armazém. Perguntou que traziam.

São uns morins ingleses

A propósito, sabe que a casa Morais & Cunha paga a todos os  credores, integralmente?

Rubião não sabia nada, nem se a casa existia, nem se eles eram  credores dela; ouviu a notícia, respondeu que estimava muito, e  dispôs­se   a   ir   embora.   Mas   o   sócio   reteve­o   ainda   alguns  instantes.   Estava   alegre   agora;   parecia   que   não   lhe   morrera  ninguém. Voltou a tratar de Maria Benedita. Tinha intenção de  casá­la bem; nem ela era moça de dar lérias a pelintras, nem se  deixava   ir   por   fantasias   tolas;   era   ajuizada,   merecia   um   bom  esposo, pessoa séria. Sim senhor, ia dizendo Rubião. Olhe, murmurou de repente o sócio; não se admire do que vou  dizer. Creio que você é que casa com ela. Eu? acudiu Rubião, espantado. Não, senhor. E em seguida, para  atenuar o efeito da recusa: Não nego que seja moça digna e  perfeita; mas..., por ora..., não penso em casar... Ninguém lhe diz que seja amanhã ou depois; casamento não é  coisa   que   se   improvise.   O   que   eu   digo   é   que   tenho   cá   um  palpite.  São  coisas; palpites.  Sofia  nunca  lhe contou  este  meu  palpite? — Nunca. É esquisito, disse­me que lhe falara uma vez, ou duas, não me  lembro bem. Pode ser, sou muito distraído. Que queriam casar­me com a  moça? Não, que eu tinha um palpite. Mas, deixemos isto. Demos tempo  ao tempo. Adeus.

CAPÍTULO LXXXIV

COM que então, Sofia queria casá­lo? saiu pensando o Rubião;  era   naturalmente   o   processo   mais   expedito   para   descartar­se  dele.   Casá­lo,   fazê­lo   seu   primo.   Rubião   palmilhou   muita   rua,  antes que chegasse a esta outra hipótese: — Talvez Sofia não se  houvesse esquecido, mas mentisse de propósito ao marido para  não   dar   andamento   ao   projeto.   Neste   caso   o   sentimento   era  outro.   Esta   explicação   pareceu­lhe   lógica;   a   alma   voltou   à  serenidade anterior.

CAPÍTULO LXXXV

No documento Quincas Borba por Machado de Assis (páginas 155-166)