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CAPÍTULO CXXIII / O VERDADEIRO COTRIM

5. SENTIDOS DE ESCRAVIDÃO EM BRÁS CUBAS

5.16 CAPÍTULO CXXIII / O VERDADEIRO COTRIM

Brás Cubas irá descrever, neste episódio, características da personalidade de seu cunhado Cotrim. Para nós, a relevância deste capítulo está no fato de Cotrim ter, supostamente, o hábito de ser perverso com seus escravos.

Como era muito seco de maneiras tinha inimigos, que chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único fato alegado neste particular era o de mandar com frequência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais. A prova de que o Cotrim tinha sentimentos pios encontrava-se no seu amor aos filhos, e na dor que padeceu quando lhe morreu Sara, dali a alguns meses; prova irrefutável, acho eu, e não única. (ASSIS, 1994, p. 118)

Observa-se no texto escravos sendo reescrito pelo pronome pessoal eles, em procedimento de substituição por sinonímia, sendo escravos redito em elipse por sinonímia e predicado por perversos e fujões, em uma relação de hiponímia.

192 Incide nestas significações a orientação argumentativa do Locutor, vista na articulação de (a) O único fato alegado neste particular era o de mandar com

frequência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue e (b) mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, sendo o mas o

marcador desta operação argumentativa, que acontece em uma configuração enunciativa em que o Locutor Brás Cubas, ocupa o lugar de escritor e cunhado, enquanto seu Locutário, o leitor, ocupa o lugar de leitor e desconhecido. Quanto ao agenciamento, o Locutor ocupa um lugar de dizer genérico em E1- (a) e um lugar de dizer universal em E2- (b), funcionando, este, como contra-argumento.

Há ainda a reescritura de (a) por trato um pouco mais duro, em procedimento de condensação por generalização, em uma relação de hiperonímia; correspondendo, assim, ao direcionamento dado pelo Locutor, quando a generalização do sentido de violência funciona como um modo polido de referência.

193 Na sequência, há semelhante processo, quando contrabandeado em

escravos é reescrito por gênero de negócio, em procedimento de definição,

significando por generalização, em uma relação de hiperonímia.

Porém, o ponto a ser destacado neste capítulo acontece na reescritura de

Cotrim por homem e puro efeito de relações sociais por (a) mandar com frequência escravos ao calabouço..., pois é por meio destas reescrituras que

veremos como o fato de um branco escravizar um negro é significado, no texto, como diferente de um negro escravizar outro negro. Estas reescrituras acontecem no seguinte recorte: não se pode honestamente atribuir à índole

original de um homem o que é puro efeito de relações sociais. (ASSIS, 1994, p.

118)

Nota-se, neste trecho, uma relação de dependência entre os enunciados (c) não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem e (d) o que

é puro efeito de relações sociais.

Quanto a reescritura de Cotrim por homem, a mesma acontece em procedimento definição por totalização, em uma relação de hiperonímia. Desta forma, homem não seria só uma reescritura de Cotrim, mas de todas as personagens do romance.

194 Com isto, de acordo com o texto seriam equivalentes os seguintes enunciados:

Já a expressão puro efeito de relações sociais seria uma reescritura do enunciado (a) mandar com frequência escravos ao calabouço.... em procedimento definição por generalização, em uma relação de hiperonímia. Por outro lado, ao significar por generalização, em hiperonímia, puro efeito das

relações sociais seria também uma reescritura de outras relações sociais

apresentadas no texto, como a que acontece no enunciado comprou um escravo,

e ia lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera61.

195 No entanto é evidenciada uma contradição no dizer quando (a) mandar

com frequência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer é

reescrito por trato um pouco mais duro, em relação de hiperonímia; enquanto o enunciado comprou um escravo, e ia lhe pagando, com alto juro, as quantias

que de mim recebera, é reescrito por UM GRÃO DE SANDICE, também em

relação de hiperonímia.

196 Deste modo, enquanto, para um branco, escravizar e agredir um negro seria significado como trato um pouco mais duro, para um negro, escravizar e agredir um negro significa UM GRÃO DE SANDICE. Ou seja, ainda que aconteçam reescritos por um mesmo enunciado, os eventos envolvendo os maus tratos aos escravos são significados de modo distinto no texto, correspondendo a uma normatividade que opõe o negro ao branco.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o objetivo de verificar os sentidos de escravo no romance Memórias

Póstumas de Brás Cubas, nos propusemos à realização de uma análise

enunciativa focada nas passagens onde as relações linguísticas resultem em um efeito que interfira na significação deste termo no texto.

Assim, um primeiro aspecto a ser destacado é a reescritura dos escravos da família Cubas por pretos, que acontece no CAPÍTULO XLVI / A HERANÇA, pois, esta relação de determinação acaba por atribuir sentido de preto sobre

escravo, produzindo um sentido de preto como hiperônimo de escravo.

Essa relação de hiperonímia é reiterada no CAPÍTULO XI / O MENINO É PAI DO HOMEM, quando a palavra escravas é redita por pretas, do mesmo modo que, em direção inversa, a palavra mucama62, nesta relação, significará como hipônimo de pretos.

No entanto, a relação de determinação entre a palavra escravo e preto não será limitada aos escravos da família Cubas, quando a palavra preto é usado em substituição do termo escravo na menção da figura preto do ganho63 no CAPÍTULO XXIII / TRISTE, MAS CURTO, substituição que produz, no caso, um sentido de sinonímia entre as palavras preto e escravo.

Este funcionamento, no texto, que produz um efeito de sentido que significa escravo e preto em sinonímia (também por hiponímia e hiperonímia) afeta o sentido de preto mesmo em situações nas quais não seria evidente que

preto acontecesse como reescritura de escravo, caso dos capítulos XIII / UM

SALTO e XXIX / A VISITA, quando, respectivamente, são descritas as

62 CAPÍTULO X / NAQUELE DIA.

198 personagens, periféricas, preto velho e preto jardineiro. Assim, observadas no acontecimento enunciativo, estas duas personagens significam em oposição às personagens brancas, quando preto velho é reescrito por ninguém, em relação

de sinonímia, enquanto preto jardineiro é relacionado em antonímia à Brás Cubas.

Além disso, reforça a significação de baixo prestígio social de escravo outras relações de predicação que acontecem no texto, nas quais o sentido de

escravo é relacionado à animal, caso dos capítulos XI / O MENINO É PAI DO

HOMEM e XII / UM EPISÓDIO DE 1814. Em XI, Prudêncio, que significa como hipônimo de pretos64, é redito, em efeito de sinonímia, por cavalo de todos os dias, enquanto, em XII, negros novos é reescrito por cabeças, o que recorta o

memorável de rebanho, em relação de hiperonímia.

Outra predicação importante para o sentido de escravo acontece na relação de sinonímia entre esta palavra e outras que indicam objetos, o que pode ser visto nos capítulos XXV / NA TIJUCA e XLVI / A HERANÇA.

Em XXV, moleque Prudêncio, reescritura de os pretos, em relação de hiponímia, acontece em articulação, por coordenação, com as palavras

espingarda, alguns livros, roupa e charutos, determinando uma relação em

sinonímia entre o escravo e os objetos descritos. Já em XLVI, a relação de hiponímia estabelecida na reescritura de herança por os pretos, coloca os mesmos em relação de sinonímia com outros bens deixados como espólio, chegando no mesmo capítulo a se relacionar em antonímia com os outros bens, quando Boleeiro e outro preto, que significam como hipônimos de os pretos, são reescritos por esmolas.