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2. POLÍTICO NA ENUNCIAÇÃO

2.1 POLÍCIA E POLÍTICA

Segundo Rancière (1996), as relações em sociedade seriam constituídas por um litígio entre o falante como singularidade e uma valoração comum de justiça e injustiça. Por se tratar de uma relação conflituosa, esta disputa seria mediada por duas forças, as quais o autor irá denominar como polícia e política.

Embora normalmente seja entendida como política, a polícia, para Rancière, seria a realização de normas, organizações, manifestações e demais atividades que, ao realizar um processo de legitimação social, corroborariam com a manutenção da distribuição desigual dos sujeitos na sociedade.

Chamamos geralmente pelo nome de política o conjunto dos processos pelos quais se operam a agregação e o consentimento das coletividades, a organização dos poderes, a distribuição dos lugares e funções e os sistemas de legitimação dessa distribuição. Proponho dar outro nome a essa distribuição e ao sistema dessas legitimações. Proponho chamá-la de polícia. (RANCIÈRE, 1996, p. 41)

Assim, segundo Rancière (1996), há um viés perverso na polícia, quando esta, embora pareça ser justa e igualitária, na verdade, funciona como meio de manutenção das desigualdades. Por este motivo, o autor mostra que movimentos repressivos, polícia, muitas vezes são confundidos como práticas verdadeiramente democráticas.

Rancière também destaca que o uso do termo polícia não deve ser visto como sinônimo de força policial, pois, ainda que esta também seja um meio para manutenção do status quo, ela seria somente uma parte dos eventos desenvolvidos com tal propósito.

71 A baixa polícia é apenas uma forma particular de uma ordem mais geral que dispõe o sensível, na qual os corpos são distribuídos em comunidade. E a fraqueza e não a força dessa ordem que incha em certos estados a baixa polícia, até encarregá-la do conjunto das funções de polícia. Prova disso, a contrário, é a evolução das sociedades ocidentais que faz do policial um elemento de um dispositivo social, em que se entrelaçam o médico, o assistencial e o cultural. (RANCIÈRE, 1996, p. 41)

Assim, Rancière reconhece outros dispositivos sociais como responsáveis pela prática de execução policial, caso do assistencialismo social, médico e cultural. No entanto, o filósofo destaca que, em sua concepção, a polícia não é reduzida a um entendimento de aparelhamento que opõe o Estado à sociedade.

Utilizarei, portanto, a partir de agora a palavra polícia e o adjetivo policial num sentido amplo, que é também um sentido “neutro”, não pejorativo. Nem por isso estou identificando a polícia àquilo que é designado pelo nome de “aparelho de Estado”. A noção de aparelho de Estado encontra-se de fato ligada à pressuposição de que Estado e sociedade se opõem, sendo o primeiro figurado como a máquina, o “monstro frio” que impõe a rigidez de sua ordem à vida da segunda. (RANCIÈRE, 1996, p. 41) Com uma perspectiva ampliada, a polícia, na concepção de Rancière, seria a realização impositiva de uma ordem, configurada a partir de um conjunto de relações não perceptíveis na aparência, que designa de modo desigual os lugares de ser e dizer dos sujeitos.

A polícia é, na sua essência, a lei, geralmente implícita, que define a parcela ou a ausência de parcela das partes. Mas, para definir isso, é preciso antes definir a configuração do sensível na qual se inscrevem umas e outras. A polícia é assim, antes de mais nada, uma ordem dos corpos que define as divisões entre os modos do fazer, os modos de ser e os modos do dizer, que faz que tais corpos sejam designados por seu nome para tal lugar e tal tarefa; é uma ordem do visível e do dizível que faz com que essa atividade seja visível e outra não o seja, que essa palavra seja entendida como discurso e outra como ruído. (RANCIÈRE, 1996, p. 42)

Uma crônica de Machado de Assis, publicada no jornal Gazeta de Notícias em 19 de maio de 1888, apresenta-se como um bom exemplo para mostrar a opacidade que envolve uma manifestação de policiamento. No caso é abordada a Lei que aboliu a escravatura no Brasil, a qual ocorreu no dia 13 de maio de 1888,

72 seis dias antes da publicação da crônica. Embora esta aparente ter sido uma ação libertadora inconteste, há no texto de Machado um duro questionamento sobre a validade de tal ato pela maneira como foi realizado.

Na crônica, em uma estratégia para diminuir o prejuízo com a Lei, que seria promulgada na terça-feira, um senhor de escravos decide dar uma carta de alforria a um de seus escravos na segunda-feira.

Por isso digo, e juro se necessário fôr, que tôda a história desta lei de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar. (ASSIS, 1990, p. 19 maio 1888)

O plano do, até então, proprietário de escravos seria o de fazer com que, por meio de um apelo emocional, um de seus escravos desejasse permanecer por vontade própria, o que de fato irá acontecer.

– Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que…

– Oh! meu senhô! fico. (ASSIS, 1990, p. 19 maio 1888)

Mesmo antes de saber o valor de seu salário, o alforriado decide permanecer, revelando sua condição de subserviência. A crítica de Machado seria a de que, além da libertação dos escravos, deveriam ter sido ofertados meios para que os mesmos fossem de fato livres, o que não aconteceu. Por sinal, passados mais de cem anos, só agora são oferecidas concessões, como cotas em universidades e em concursos públicos, para amenizar o dano social que a escravidão causou ao negro.

Deste modo, na perspectiva de Rancière, o movimento, aparentemente, espontâneo qual culminou a Lei Áurea teria ocorrido em um funcionamento de polícia pelo fato de, mesmo amenizando a danosa condição do escravo, não resultar em uma ruptura da exclusão social a qual o negro era remetido.

73 A distribuição dos lugares e funções que define uma ordem policial depende tanto da suposta espontaneidade das relações sociais quanto da rigidez das funções de Estado. É, por exemplo, uma lei de polícia que faz tradicionalmente do lugar de trabalho um espaço privado não regido pelos modos do ver e dizer próprios do que se chama o espaço público, onde o ter parcela do trabalhador é estritamente definido pela remuneração de seu trabalho. (RANCIÈRE, 1996, p. 42)

Vale destacar que, para Rancière, a polícia pode acontecer de diversas maneiras. Com isto, é possível que mesmo algo indubitavelmente bom, como teria sido o caso da abolição, poderia, ainda assim, funcionar como polícia ao fazer perdurar uma lógica de exclusão. Aliás, esta capacidade de conceder frente a situações de tensão social seria uma característica que garantiria a permanência da prática policial.

A polícia pode proporcionar todos os tipos de bens, e uma polícia pode ser infinitamente preferível a uma outra. Isso não muda sua natureza, que é a única coisa aqui que está em questão. O regime da opinião sondada e da exibição permanente do real é hoje a forma comum da polícia nas sociedades ocidentais. A polícia pode ser doce e amável. (RANCIÈRE, 1996, p. 43)

Já a política, para Rancière, será um conjunto de atos, em oposição à ordem, os quais rompem com uma configuração que exclui parte da parte. Nesta direção, a política seria efetivamente política quando houvesse um deslocamento do lugar social de um grupo a um outro lugar a qual este grupo não pertencia.

Proponho agora reservar o nome de política a uma atividade bem determinada e antagônica à primeira: a que rompe a configuração sensível na qual se definem as parcelas e as partes ou sua ausência a partir de um pressuposto que por definição não tem cabimento ali: a de uma parcela dos sem-parcela. Essa ruptura se manifesta por uma série de atos que reconfiguram o espaço onde as partes, as parcelas e as ausências de parcelas se definiam. A atividade política é a que desloca um corpo do lugar que lhe era designado ou muda a destinação de um lugar; ela faz ver o que não cabia ser visto, faz ouvir um discurso ali onde só tinha lugar o barulho, faz ouvir como discurso o que só era ouvido como barulho. (RANCIÈRE, 1996, p. 42)

Observadas em conjunto, as ações promovidas em prol da inclusão do negro, ao manifestar sua afirmação de pertencimento, seriam um exemplo de um

74 movimento com característica política. Todavia, é fato que ainda existe um considerável caminho a se percorrer para que de fato possamos afirmar que houve uma ruptura no real, resultando no deslocamento do lugar social do negro.