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Capela Real de D João VI: castrati e sua influência nas obras do Padre

Capítulo II: A influência do bel canto no Brasil

2.3 Capela Real de D João VI: castrati e sua influência nas obras do Padre

No período que vai da chegada da corte portuguesa ao Brasil até a abdicação de D. Pedro I (1808-1831), os músicos nacionais e alguns estrangeiros radicados no país é que impulsionaram a vida musical da cidade. Raros são os músicos de passagem. (ANDRADE: 1967, 134)

A vinda de músicos treinados na estética e técnica europeia causou certamente forte impacto na música até então produzida no Brasil. Se não provável, é bastante plausível que cantores treinados arduamente na arte do bel canto, mestres na arte de embelezar melodias, agregando maior luxúria e variação nas repetições, como o eram os castrati, tenham aplicado seu empenho também nas modinhas imperiais.

Os castrati não só participavam da Capela Real, como também eram presença marcante nas festas particulares e nas montagens de ópera. Há um comentário de 1826, onde um cronista inglês que assina por APDG afirma “Eu nunca assisti a uma soirée no Rio sem lá ver um ou dois castrati”. (apud CARDOSO: 2008,93) Como professores de canto certamente transmitiram a escola de bel canto aprendida na Europa. O ápice dessa prática se caracterizou pela arte dos castrati, e implica em toda uma tradição vocal, técnica, estilística e interpretativa da opera

seria, característica do barroco.

Como professores de canto, consequentemente transmitiram sua técnica e gosto a seus alunos locais.

Com a chegada da corte e a consequente vinda de cantores europeus, os intérpretes cariocas puderam contar com professores especializados na arte do canto. Dentre eles, “os mais procurados professores de canto do Rio de Janeiro eram os cantores sopranistas (castrati) da Capela Real”. (ANDRADE: 1967, 49)

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Muitos dos músicos que vieram durante o período joanino acabaram permanecendo no Brasil por muitos anos. Alguns não retornaram para a Europa, falecendo no Brasil, como é o caso do compositor Marcos Portugal (1762-1830), os irmãos Fortunato (1782-1855), Giovanni (1786?-1850) e Carlos Mazziotti (?-1874) e quase todos os cantores da Capela Real, alguns deles castrati e puderam transmitir até o fim da vida seus ensinamentos e deixar um legado pedagógico no Brasil.

Como exemplificação de ornamentação praticada pelos castrati no período, podemos observar as Dezaseis Variacoens sobre o Thema Nel Cor più non mi sento (apud PACHECO: 2007, apêndice III) de Domingos Luiz Lauretti (?-1857), sopranista na Capela Real do Rio de Janeiro (Figura 1, Figura 2, Figura 3 e Figura 4).

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Figura 4: Dezasseis Variacoens sobre o Thema Nel Cor piú non mi sento (continuação)

O efeito do domínio vocal desses cantores pode ser percebido através do registro de modificações e adaptações que Padre José Maurício realizou em obras próprias possivelmente adaptando-as ao gosto e possibilidades dos recém- chegados.

Àqueles interessados em se aprofundar no universo dos cantores que atuaram no Brasil durante o período de Dom João VI (1808-1821) remeto ao trabalho de Alberto Pacheco Castrati e outros virtuoses (Annablume). A partir de registros de pesquisadores importantes como Ayres de Andrade (1903-1974), Cleofe Person de Mattos (1913-2002), André Cardoso e Paulo Kühl (1965).

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Reproduzo parcialmente a compilação de Pacheco, apresentando castrati em atividade no Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX. (PACHECO: 2009, 78-114)

Giuseppe Capranica (Nápoles,17?- Rio de Janeiro, 15/08/1818). Primeiro castrato a chegar ao Brasil em 1810. Atuou na Real Capela do Rio de Janeiro.

Antonio Cicconi (Roma, 1781- Rio de Janeiro, 30/10/1870). Soprano

favorito de Marcos Portugal, chegou ao Brasil em finais de 1810. Dedicatórias em árias que revelam possuir voz muito ágil e maior qualidade no registro de cabeça. Atuou na Real Capela do Rio de Janeiro.

Giovanni Francesco Fasciotti (Bergamo,17?- Rio de Janeiro, 14/10/1840).

Chegou ao Brasil em meados de 1816. Foi o castrato de maior sucesso em nosso meio operístico, tendo recebido diversas dedicatórias do compositor Marcos Portugal. Aliava qualidade musical e desempenho dramático. Como mezzo-soprano participou no papel-título da montagem de Tancredi (1813) de Rossini que estreou no Rio de Janeiro em 1821 e também em várias montagens operísticas cariocas. Sua irmã e discípula Maria Tereza Fasciotti também esteve entre as mais influentes no meio teatral do Rio de Janeiro.

Giuseppe Gori (Arezzo,? - Rio de Janeiro, 04/03/1819). Chegou ao Rio de

Janeiro em 1810. Este cantor possui três árias dedicadas a ele pelo Padre José Maurício Nunes Garcia e duas por Marcos Portugal. As árias dedicadas a Gori pelo Padre Mestre exploram a região aguda da voz. Ambos os compositores revelam em suas dedicatórias musicais que o castrato possuía uma voz muito flexível, capaz de longos vocalises, trilos e staccati.

Domingos Luiz Lauretti (Itália,? – Portugal, 1857). Provavelmente esteve

no Brasil pouco antes de D. João VI voltar a Portugal. Compôs as Dezaseis Variações sobre o Thema Nel cor più non mi sento (onde demonstra altíssimo grau

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de virtuosismo na arte de ornamentar e embelezar um mesmo tema de maneira extremamente rica e criativa de acordo com suas próprias habilidades vocais.

Francesco Realli (Itália, ? - Rio de Janeiro ?,187?). Chegou ao Rio de

Janeiro em 1817 juntamente com Angelo Tinelli (ver abaixo). Aposentou-se da Capela Real em 1829.

Marcello Tani (Itália, ? - Brasil, ?). O sopranista chegou ao Brasil em 1816.

Marcello e seu irmão Pasquale (ver abaixo) se aposentaram após doze anos de trabalho dedicados a Real Câmara e Real Capela do Rio de Janeiro em 1828.

Pasquale Tani (Itália, ? – Brasil, ?). O contraltista chegou ao Rio de Janeiro

em 1816 com seu irmão Marcello Tani.

Angelo Tinelli (17?-18?). Chegou ao Rio de Janeiro em 1818. Foi cantor da

Capela Real até 1831.

Giuseppe di Foiano Toti (Itália, 17?- Portugal, 1832/33). Organista,

compositor e mestre de canto, Toti esteve no Brasil em 1809. Como não constam registros de sua participação na Capela Real, possivelmente tenha atuado como mestre de música. Não se sabe quando Toti teria retornado a Portugal.

Antes do Rio de Janeiro tornar-se o centro do império luso-brasileiro, “o conjunto vocal da Sé admitia vozes de meninos para as partes de soprano e contralto”. Mesmo considerando meninos cantores bem treinados, o aparelho vocal infantil implica em limitações na duração dos solos, no volume sonoro, no uso de passagens de agilidade, e na extensão vocal, sem falar das limitações musicais como a pouca prática dos jovens na arte da improvisação e ornamentação. (MATTOS: 1979, 362)

Com a chegada de novos cantores vindos da Europa e substituição das vozes de meninos pelos castrati, Padre José Maurício Nunes Garcia teve todas as

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chances de observar de perto as habilidades desses cantores, conhecendo profundamente suas vozes e nos revelando as aptidões solistas vocais destes novos músicos para quem ele escreveu.

A partir de Pacheco (2007) foi possível listar solos explicitamente destinados por Padre José Maurício Nunes Garcia a alguns desses cantores. A tabela permite melhor entendimento das mudanças de estilo e dos acréscimos de ornamentos e embelezamentos que estes cantores estimularam (Tabela 1).

Cantor Obra

Giuseppe Capranica ♪ solo de soprano Qui Sedes da Missa

Pastoril de 1811

♪ solo de soprano Laudamus Te da

Missa de Nossa Senhora da Conceição de 1811 muito

provavelmete escrito para Capranica (apud PACHECO:2007, 217).

Antonio Cicconi ♪ solo Laudamus Te da Missa Pastoril de 1811

♪ linha do 1º soprano do dueto Cum

vidi et ventums nas Matinas do Apóstolo São Pedro de 1815

Giuseppe Gori ♪ Laudamus Te da Missa a 4 vozes de

1815

♪ Caro et sanguis nas Matinas do

Apóstolo São Pedro de 1815

♪ Qui Tollis da Missa Pastoril de 1811 Tabela 1

Laudamus Te da Missa de Nossa Senhora da Conceição CPM 106 (1810) é

um exemplo interessantíssimo da influência desses virtuoses na música de Padre José Maurício Nunes Garcia. Pode se perceber com clareza a distinção entre os dois períodos criativos de Garcia: antes e depois da chegada da corte portuguesa. Sua escrita torna-se mais virtuosística e revela do quanto sua escrita vocal se

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adaptou ao gosto musical da corte portuguesa e à nova maneira de tratar a voz. A ária apresenta grande riqueza em modulações e passagi extensas (Figura 5: ex: compassos 83-86) e maiores saltos melódicos (Figura 5: ex: compasso 99), características evidentes da influência do bel canto.

Figura 5: Missa de Nossa Senhora da Conceição (Laudamus te) trecho do solo de soprano

A Missa Pastoril para Noite de Natal CPM 106 foi originalmente composta em 1808 e reescrita em 1811. Comparando-se com a escrita mauriciana anterior, podemos observar o desenvolvimento de linhas vocais e instrumentais de caráter virtuosístico, resultado oriundo das novas possibilidades técnicas apresentadas pelos cantores recém-integrados à Capela Real a partir de 1809. Segundo Cleofe Person de Mattos:

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É provável que a obra, estruturada desde 1808, tenha sido, além de orquestrada, também adaptada, nos trechos para solo, às características vocais dos novos cantores, cujos nomes – indicados pelo compositor na partitura, e que ao tempo da primeira versão ainda não haviam chegado ao Brasil – figuram na partitura de 1811. (In: GARCIA: 1982, 8)

Entre os que cantaram a Missa em 1811, Mattos informa que foram necessários nove solistas, dentre eles um tenor, três baixos e dois sopranos solistas para o dueto - possivelmente falsetistas atuantes no Rio de Janeiro desde os tempos da Catedral da Sé - e mais três castrati.

Na árias escritas para Cicconi, Capranica e Gori os embelezamentos anotados por Garcia demonstram agilidade vocal e indicam pontos de cadenza (Figura 6, Figura 7, Figura 8).

Cicconi (soprano)

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Figura 7: Qui Sedes da Missa Pastoril (GARCIA: 1982, 59-61)

47 Figura 8: Qui Tollis da Missa Pastoril (GARCIA: 1982, 56-58)

O virtuosismo vocal não era restrito apenas aos castrati. Árias para vozes masculinas também apresentavam na escrita mesma exigência de agilidade e ornamentação.

48 Figura 9: Gloria da Missa Pastoril (GARCIA: 1982, 43)

Tenor

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Capítulo III: Sugestão de Ornamentação nas

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