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Modinhas no Brasil Imperial : ornamentação sob a influência dos castrati

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Academic year: 2021

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Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Artes

Adriana Xavier de Almeida

Modinhas no Brasil

Imperial:

Ornamentação sob a influência dos

castrati

Campinas 2014

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Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Artes

Adriana Xavier de Almeida

Modinhas no Brasil

Imperial:

Ornamentação sob a influência dos

castrati

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de Artes da Unicamp como requisito parcial para obtenção do título de Mestra em Música na área de Práticas Interpretativas.

Orientação: Prof. Dra. Helena Jank

Co-orientação: Prof. Dra. Adriana Giarola Kayama.

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA

ADRIANA XAVIER DE ALMEIDA, E ORIENTADA PELA PROF. DRA. HELENA JANK

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Campinas 2014

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Dedico este trabalho a meu amado marido pelo apoio incondicional.

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Agradecimentos

À Profa. Dra. Helena Jank pela orientação, apoio, paciência e compreensão.

Ao maestro Branco Bernardes, pela paciência e dedicação em escrever as partes de piano ornamentadas das modinhas e que de maneira generosa me deu todo suporte ao ouvir ornamentos, cacarejos e candenze, opinando de maneira enriquecedora sempre. Sua presença foi imprescindível para meu processo criativo neste trabalho.

Ao meu filho, Benjamin, pela compreensão pelas horas que não compartilhamos juntos enquanto me dedicava ao mestrado.

Aos professores Ângelo Fernandes e Pedro Persone pelas instruções valiosas na qualificação.

Aos funcionários do Instituto de Artes da Unicamp que sempre foram muitos gentis e solícitos, em especial a Letícia Cardoso Silva Machado e Vivien Helene de Souza Ruiz.

Aos funcionários da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro que me acolheram com carinho.

A todas as pessoas que participaram, contribuindo para a realização deste trabalho, direta ou indiretamente, meu agradecimento.

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A modinha é um suspiro de amor...

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Sumário

Resumo ... xv

Abstract ... xvii

Introdução ... 1

Capítulo I: Sobre a Modinha e Seu Tempo ... 3

Capítulo II: A influência do bel canto no Brasil ... 13

2.1 Bel Canto e os Castrati ... 15

2.2 Prática de Ornamentação e Improvisação ... 19

2.3 Capela Real de D. João VI: castrati e sua influência nas obras do Padre José Maurício Nunes Garcia ... 35

Capítulo III: Sugestão de Ornamentação nas Modinhas Imperiais ... 49

3.1 Beijo a mão que me condena ... 51

3.2 Quem Sabe?!... ... 65

3.3 Último Adeus de Amor ... 75

Conclusão ... 83 Referências ... 87 Bibliográficas ... 87 Artigo ... 91 Partituras ... 93 Internet... 95 Apêndices... 97

Beijo a mão que me condena ... 97

Quem sabe?!.. ... 99

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Resumo

Este trabalho considera aspectos históricos e estéticos do bel canto e seu aculturamento no Brasil como recurso interpretativo na ornamentação e improvisação em modinhas luso-brasileiras. Foram observadas as práticas musicais no Rio de Janeiro durante a presença da Família Real e as influências europeias trazidas pela corte portuguesa e seus músicos, com ênfase na presença dos

castrati. A partir de fontes primárias e secundárias, tratados e documentação escrita

de época e posterior, propõe-se a realização de três modinhas: Beijo a mão que me

condena de Padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), Quem sabe?!... de

Antônio Carlos Gomes (1836-1896) e Último adeus de amor de Emílio E. C. do Lago (1837-1871) de acordo com elementos técnicos e estilísticos observados em cada uma delas.

Palavras chaves: Modinha, Ornamentação, Castrati, José Maurício Nunes Garcia, Carlos Gomes, Emílio do Lago, Práticas Interpretativas.

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Abstract

This work considers historical and aesthetic aspects of bel canto and its acculturation in Brazilian as an performance resource for ornamentation and improvisation Luso-Brazilian modinhas. Musical practices in Rio de Janeiro during the presence of the Royal Family and European influences brought by the Portuguese court and his musicians, with emphasis on the presence of the castrati were observed. From primary and secondary sources, treatises and material of the time and later, it is proposed to realize three modinhas: Padre José Maurício Nunes Garcia’s (1767-1830) Beijo a mão que me condena, Quem sabe?!..., Antônio Carlos Gomes’ (1836-1896) and Emílio E. C. do Lago’s (1837-1871) Último adeus de amor, according to technical and stylistic elements observed in each one.

Key Words: Modinha, Ornamentation, Castrati, José Maurício Nunes Garcia, Carlos Gomes, Emílio do Lago, Vocal Performance.

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Introdução

Há alguns anos venho buscando com grande empolgação elementos que nos facilitem a abertura de possibilidades interpretativas das modinhas imperiais. Senti necessidade de buscar maior aprofundamento no estudo vocal com enfoque artístico e acadêmico, embasando meu conhecimento do gosto musical do período. O que mais me fascinou foi descobrir a presença e atuação dos castrati e outros cantores italianos virtuoses do bel canto na Capela Real, nas montagens de ópera e nos salões cariocas após a chegada de D. João VI. Suas atividades como intérpretes e professores de canto instigaram-me a curiosidade: como teriam sido interpretadas modinhas luso-brasileiras por esses cantores? Faria sentido estético e histórico aplicar o que conhecemos de seu domínio vocal nesse repertório?

Este trabalho busca relacionar a influência do canto italiano sobre o repertório brasileiro de modinhas, levando em consideração as práticas musicais no Rio de Janeiro durante a presença da Família Real trazidas ao Brasil pela corte. De maneira específica, procurei compreender como a arte dos castrati poderia ter influído de alguma maneira na interpretação das modinhas imperiais.

Baseada na ornamentação de árias, com caráter mais ou menos improvisatório, conforme praticada pela escola do bel canto, proponho ornamentar três modinhas. Além dos elementos estilísticos acima mencionados, os embelezamentos sugeridos levam em conta minhas habilidades vocais, extensão vocal e contribuição pessoal como intérprete.

No primeiro capítulo procurei situar a modinha imperial em seu contexto histórico, apresentando suas principais características musicais a partir do levantamento bibliográfico sobre o gênero.

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No segundo capítulo observamos o impacto cultural provocado pela chegada da corte portuguesa e apresento suscintamente o bel canto no Brasil e sua influência na música até então produzida. A presença dos castrati no Rio de Janeiro indica a transposição do conhecimento e técnica vocal italiana: a arte de embelezar melodias agregando maior luxúria e variação nas repetições.

Acredito que os castrati pertencentes à Capela Real influenciaram nosso mestre de capela, a ponto de Padre José Maurício Nunes Garcia reescrever algumas obras anteriormente compostas agregando maior virtuosismo e embelezamento vocal. Dedicatórias suas e de seu colega Marcos Portugal documentam o apreço pelos cantores.

No terceiro capítulo apresento sugestões de ornamentação nas três modinhas selecionadas:

 Beijo a mão que me condena (edição póstuma - 1837) - José Maurício Nunes Garcia (1767-1830)

 Último Adeus de Amor (s/d) - Emílio E. C. do Lago (1837-1871)

 Quem sabe?!... (1859) – Antônio Carlos Gomes (1836-1896)

A partir da possível influência estética e pedagógica do bel canto como praticado pelos cantores da Capela Real e posteriormente Imperial, com especial atenção aos castrati e sem deixar de considerar o intérprete atual, exponho as sugestões de ornamentos neste capítulo. Ornamentos estes tratados como uma intervenção artística e recriação de um estilo exuberante e mutável a cada nova

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Capítulo I: Sobre a Modinha e Seu Tempo

A modinha é um suspiro de amor... (Mário de Andrade apud ARAÚJO: 1963, 49)

Modinha é o diminutivo de Moda, canção tradicional e sentimental mais

divulgada na vida social portuguesa dos séculos XVIII e XIX. A modinha encontrou no Brasil grande apreço no século XIX. (DODERER: 1984, vii)

Para Mário de Andrade (1893-1945), o termo moda é usado para canção vernácula em Portugal, sendo a modinha um termo primeiramente iqualitativo utilizado como demonstração de carinho. “É geito [sic] luso-brasileiro de acarinhar tudo com diminutivo” (ANDRADE, 1980: 8). Ainda de acordo com Mário de Andrade, com o passar do tempo, modinha tornou-se o substantivo específico que se refere à forma modinha. Devemos entender que Mário de Andrade usa forma em sua acepção genérica, como maneira particular de se executar uma determinada obra, não no sentido estrito de estrutura musical.

O ensaísta português Teófilo Braga (1843-1924) escreveu em sua História da Poesia Popular Portugueza que “O nome de modinha dado às Canções Lyricas veio-nos do Brasil no século XVIII (...)” (BRAGA apud ARAÚJO: 1963, 44), dando-nos a entender ser a modinha de autoria brasileira, questionamento este que provoca divergências de opiniões entre diversos autores.

Bruno Kiefer (1923-1987) também relaciona o termo modinha como diminutivo de moda, e propõe a palavra como um termo genérico utilizado tanto no Brasil como em Portugal para qualquer tipo de canção. Ainda nos faz refletir que o termo designa também as modas caipiras e de viola, cantadas a duas vozes em

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terças e sextas paralelas (como as modas portuguesas da segunda metade do século XVIII), as quais são características de São Paulo, Minas Gerais e Goiás (KIEFER: 1977, 9).

Mozart de Araújo (1904-1988) procura entender modinha a partir de suas diversas acepções históricas e etimológicas. Módulo, que afirma tratar-se de um

canto popular da Idade Média, possuiria o mesmo radical de modo que, assim como

ayre ou ária eram termos intercambiáveis para cantiga ad una voce no início do

século XVIII em Portugal. Modilho seria o modo simples, singelo (ARAÚJO: 1963, 25). Das diversas interpretações, Mozart de Araújo aproxima modilho, motete e

modinha que teriam origem comum em mote. E apresenta a sequência mote → moda → modinha (ARAÚJO: 1963, 25). Apresenta uma terceira variável das origens

da modinha: cantiga, ária, romance e moda seriam expressões genéricas de uso português da segunda metade do século XVIII substitutivas de termos mais antigos, como ayres, tonos, tonadilhas, coplas, seguidilhas, serranilhas, rimances, soláus,

xácaras e os modos (ARAÚJO: 1963, 27).

Interessante ainda é o posicionamento de Mozart de Araújo sobre as modas caipiras e sobre as modinhas, que vem entrelaçar a estreita relação de argumentos e suposições dos autores:

É indiscutível que a moda portuguêsa [sic] a duo produziu no Brasil a moda de viola, que se fixou nos nossos meios rurais. Como é irrecusável, também, que foi sôbre [sic] a moda a solo que aplicamos o diminutivo Modinha. (ARAÚJO: 1963, 28)

Canção, romança ou ária, todas herdeiras do trovadorismo com seus temas amorosos, assim define Frederico de Freitas (1902-1980) como sinônimos de modinha, tanto em Portugal como no Brasil pelos séculos XVIII e XIX. Pontua a segunda metade do século XVIII a autonomia da modinha brasileira sem derivação folclórica portuguesa, modinha brasileira agora com variedades estróficas e rítmicas influenciada pelo lundum africano misturado ao som nostálgico que invadia dos saraus de Lisboa. (FREITAS: 1974, 3).

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A utilização dos textos em vernáculo unidos aos elementos europeus parece ser elemento essencial também na caracterização e autonomia da modinha brasileira.

A origem da modinha como influência da moda portuguesa, porém em sua segunda fase influenciada pelo lundum é compartilhada pelo professor José Teixeira D`Assumpção. (D´ASSUMPÇÃO: 1967, 179)

Os estudos da modinha esboçam períodos distintos no Brasil, se pensarmos em Brasil colônia, dos tempos do rei, primeiro e segundo Império e República, abrangendo diferentes estilos dentro do mesmo gênero.

A moda e a modinha foram os gêneros musicais de salão que empolgaram a corte de D. Maria I (1734-1816). Nas ruas de Lisboa dominava a Fofa, no teatro, a ópera italiana, e nos salões, a moda e a modinha. (ARAÚJO: 1963, 27). O gosto musical português foi trazido para o Brasil com a corte, e as modinhas de salão foram influenciadas pelo lundu do Brasil, relembra Mário de Andrade: “Por tudo isso a gente percebe o quanto a nossa modinha de salão se ajeitava à melodia europeia e se nacionalizava nela e apesar dela”. (ANDRADE: 1980, 7)

A grande influência do lundu na modinha brasileira é dada segundo Araújo na última década dos setecentos, podia-se ouvir modas e modinhas que eram quase lundus e lundus que eram quase modinhas. Segundo suas observações, surgiram por aqui duas espécies de modinhas, a dos lundus e a das leves produções dos nossos melhores músicos e solfistas. (ARAÚJO:1963, 11-12)

O lundu-canção, gênero híbrido entre a modinha e a dança do lundu, ao que indica, parece ser produto desses cruzamentos culturais.

Essas modinhas de salão começaram a ter aceitação desde a segunda metade do século XVIII e dominaram a musicalidade do Brasil e de Portugal, apenas se findando nos fins do Segundo Império [1831-1889]. (ANDRADE: 1980, 5)

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A origem da modinha está relacionada a um fenômeno europeu - e não apenas português - da segunda metade do século XVIII. Com a progressiva ascensão da burguesia e, conseqüentemente, com a mudança de hábitos da nobreza, surgiu uma prática musical doméstica ou de salão destinada a um entretenimento mais leve e menos erudito que aquele proporcionado pela ópera e pela música religiosa. Assim, a música doméstica urbana, praticada por amigos e familiares em festas ou momentos de lazer, privilegiou formas de pequeno número de intérpretes, de fácil execução técnica e de restrito apelo intelectual. (CASTAGNA: 2009, 1)

Sem contestar o fluxo e refluxo das modinhas de elementos musicais entre ambas as culturas, ou mesmo o que podemos chamar de intercâmbio cultural, muitos autores concordam com sua origem advinda da estética erudita sendo ela de exigência técnica mais simples ou mais elaborada.

Gerhard Doderer (1896-1966) escreve que a modinha brasileira é uma conjunção dos elementos do canto erudito europeu e do folclore africano e brasileiro, advindo do intercâmbio entre continentes e colônia, sendo ela diferenciada da moda [portuguesa]. (1984, VIII)

Assim também é definida a modinha por Mário de Andrade, como canção descendente diretamente da melodia italiana, de origem erudita e da semi-cultura burguesa. A proveniência erudita europeia da modinha, para Andrade é incontestável, analisando assim as modinhas de salão até o século XVIII. Somente no século XIX, passa a ser cantada fora dos salões, como forma popularizada de canção. (ANDRADE:1980, 5-6)

Vale lembrar que os autores das modas portuguesas, os que compunham moda a duo ou solo eram mestres de contraponto, solfistas, músicos que compunham óperas e peças sacras (ARAÚJO: 1963, 27). Não havendo muito espaço para crer que as modinhas brasileiras não tivessem profunda influência erudita.

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Para um entendimento mais claro a respeito das fases da modinha, Doderer a divide em três períodos históricos: a) até o fim do século XVIII, b) fim do século XVIII até meados do século XIX, c) a partir de 1860/70.

Até fim do século XVIII era tratada como uma canção de língua nacional (portuguesa) e influenciada predominantemente pelo estilo musical italiano. Era também usada na ópera popular como canção intermediária, sendo neste período o início da aceitação mútua e integração da modinha em ambos os continentes. Recebia tratamento melódico próprio da arte de cantar italiana, concebida muitas vezes para duetos com acompanhamento de viola dedilhada ou cravo na base de baixo cifrado. (DODERER: 1984, VIII)

Pelos finais do século XVIII, começa a surgir um novo tipo de modinha, esta cantada nas salas e salões a uma voz e com acompanhamento de piano. Torna-se diferenciada melódica e ritmicamente, com alterações de tempos fortes. É doce e deliciosa, cheia de suspiros e ais. (DODERER: 1984, VIII)

O inglês Lord Beckfort (1760-1844) anotou em seu diário no ano de 1787 em Portugal suas impressões a respeito da modinha:

“Aqueles que nunca ouviram este original gênero, ignoram e permanecerão ignorando as melodias mais fascinantes que jamais existiram (...). Elas consistem em lânguidos e interrompidos compassos como se por excesso de enlevo faltasse o fôlego e a alma anelasse unir-se a alma afim do objeto amado.” (BECKFORF apud ARAÚJO: 1963, 41)

Já no primeiro quartel do século XIX a ópera reflete-se no repertório de modinhas, com adaptações de texto em português em motivos de árias onde é cantada nos salões da alta burguesia de São Paulo e Rio de Janeiro. (DODERER: 1984, VIII)

Na primeira metade do século XIX há uma forte influência da ópera no Brasil. Esta confluência entre ópera e modinha alimentou a sociedade aristocrática e

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burguesa de Portugal e do Brasil por quase dois séculos e moldou a modinha no seu tipo próprio.

Afirma Freitas:

“Cabe por fim ao advento da ópera italiana registrado entre nós a partir do primeiro quartel de oitocentos, o impulso decisivo para a criação da modinha no seu tipo específico” (FREITAS: 1974, 5)

No Brasil a modinha torna-se a forma mais popular de canção, havendo então, a partir de sua popularidade o surgimento de numerosas coletâneas de modinhas (com ou sem música). A partir dos anos de 1830 oficinas no Rio de Janeiro já imprimiam Modinhas em água-forte e litografias. Há registros de impressões da oficina do músico francês Pierre Laforge (1791-1853?) a partir 1834. Provém desta mesma oficina diversas peças da Coleção de Modinhas Luso-Brasileiras, incluindo as modinhas baseadas em motivos de ópera contidas na coleção. (DODERER: 1984, X)

Em 1831 e 1834 respectivamente datam das estreias no Rio de Janeiro das óperas Norma de Vincenzo Bellini (1801-1835) e Lestocq [L´intrigue et l´amour] de Daniel Auber (1782-1871). Não por coincidências, duas das modinhas da Coleção de Modinhas Luso-Brasileiras utilizam de motivos melódicos de árias dessas mesmas óperas. (DODERER: 1984, XI)

Fica clara a influência de Bellini nos modinheiros mediante a temporada lírica do Rio de Janeiro de 1845, afirma Kiefer:

Não são poucos os casos em que os empréstimos de árias de óperas italianas tumultuam o nosso modo de sentir. Aliás, perigoso neste sentido foi Bellini, cujas melodias suaves e melancólicas encontravam aqui, por afinidade, modinheiros submissos (KIEFER: 1977, 25)

Mário de Andrade também parece incomodado com a transformação em modinhas duma infinidade de árias italianas. Comenta em seu prefácio de Modinhas

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arranjadas pelo professor Raphael Coelho Machado (1814-1887) e poesia de diversos autores, coleção “O Trovador Brasileiro” (1876), sobre árias da ópera de Giuseppe Verdi (1813-1901) e edição de “Cantares Brasileiros” sobre adaptações de obras de Bellini e Gioachino Rossini (1792-1868). (ANDRADE: 1980, 7)

Referindo-se a uma modinha de 1869 Jovem Lilia abandonada Andrade comenta:

Não consegui obter essa composição, editada como “modinha”, mas possuo dela uma cópia inacabada em manuscrito imperial, onde se a qualifica de “arietta”. O que ela é mas é um bem descarado plágio de Rossini (ANDRADE: 1980, 7)

Doderer estabelece como terceira fase da modinha as produções a partir de 1860/70, a qual delimita como fase exclusivamente brasileira da modinha tornando-se uma canção trivial. Esse declínio da modinha, como nomeia Doderer, pode ter ocorrido devido o crescente número de músicos amadores e leigos que começaram a compor, provocando a queda na qualidade da modinha. (1984, X)

A influência da ópera italiana e a formação erudita dos musicistas em Portugal estão inseridas desde o século XVII em seus ambientes musicais, tornando-se mais sensível na segunda metade do século XVIII, portanto não há dúvidas que a estética operística atravessou o Atlântico através da colonização portuguesa no Brasil e diretamente influenciou a modinha, “...que foi se ajeitando a essa melodia europeia”, e como disse Mário de Andrade, “se nacionalizando nela e apesar dela”. (ARAÚJO: 1963, 48)

A maior parte dos trabalhos sobre modinhas são apontamentos baseados nas observações do prefácio das Modinhas Imperiais (1930) de Mário de Andrade. (DODERER: 1984, VII) Ponto este pactuado por outros autores, também Mozart de Araújo escreve ter sido o trabalho de Andrade o primeiro estudo sistemático e orgânico sobre o assunto, porém deixando nas entrelinhas do prefácio muitas interrogações a respeito (ARAÚJO: 1963, 7). Vale nos lembrar de que muitas

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de suas observações são niveladas pelo momento nacionalista em que o próprio Mário de Andrade estava vivendo, portanto há de se filtrar muitas observações tendenciosas.

Deixando as questões nacionalistas de Andrade para outro momento, podemos assegurar que sua contribuição histórico-musical é muito próxima daquilo que se concebe. “A modinha é um mistifório de elementos num ideal comum: a doçura.” , é uma mistura de plágios, adaptações, invenções e influência de toda casta, isso não podemos negar. Há também em seu prefácio indicações das formas musicais mais utilizadas nas modinhas (AB, ABC, AC, ABD, algumas em ária da

capo ABA), das fórmulas de compasso indica, (4/4, 2/4, ¾ devido à influência das

valsas) como as mais recorrentes. (ANDRADE: 1980, 5-8)

Não podemos encaixar a modinha em uma única forma, assim Doderer a situa como desligada de esquema pré-determinado, mas usualmente formadas de versos de oito ou cinco sílabas, com várias estrofes e estribilho, podendo ser canção bipartida, canção contínua ou até canção com forma da capo. Não se atendo a um critério único, porém afirmando ser seu conteúdo constantemente remetido aos desgostos de amor, saudades, cuidados com a pessoa amada, cenas mitológicas, alegóricas ou bucólicas. (1984, VII).

Araújo concordando com Doderer acrescenta que ela se distingue dos outros povos pelo lirismo e ternura, é entrecortada de lamentos e queixumes, com languidez sensual, conduzida por uma expressão de intensa emoção. Constantemente com temas sobre desgostos de amor, saudades, cuidados com a pessoa amada ou cenas mitológicas e alegóricas. (ARAÚJO: 1963, 48)

A influência climática fez a modinha brasileira ter “um que de açucarada”, com ritmo ondulante e quebradiço, segundo Freitas. Este autor distingue a modinha brasileira da portuguesa citando algumas diferenças: em Portugal a modinha é tratada com maior rigidez, com exigência [fixa] na ornamentação vocal escrita,

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geralmente cantada a duas ou três vozes e escrita em clave de Dó, já no Brasil, há passagens bruscas entre modo maior e menor, geralmente cantada a uma só voz e escrita em clave de sol. Afirma ainda que a modinha “não poderia ser criação de qualquer vulgar cantarejo”, pois guarda recato de canção de concerto por não ser uma dança como o lundum, o batuque, o sarambeque, a fofa, a carrasquinha, a chula ou o fandango. Portanto, ao se cantar modinha, a mesma atitude de cantores operísticos é solicitada, visto que as modinhas eram intercaladas nos saraus entre árias e cavatinas de ópera, quando estas eram apresentadas nos salões aristocráticos, no paço real e imperial acompanhadas ao cravo, piano, a viola e até a guitarra [violão], não deixando de citar as modinhas cantadas nas ruas acompanhadas ao violão. (FREITAS: 1974, 5-7)

“Dizem que a modinha morreu. Ela não morreu porque não é mais uma canção, mas um estado de alma. Ela está na própria essência emotiva da nacionalidade.” (Araújo apud KIEFER: 1977, 29)

Dos terreiros aos teatros, passando por salões, instituições de ensino de música, clubes musicais, igrejas, teatros, praças e ruas, a música, ou melhor, as músicas circulam entre esses espaços, transmudando-se, constantemente. São modinhas, que se apropriam de características de óperas, óperas que absorvem características do cancioneiro brasileiro, são lundus, maxixes, valsas e outros gêneros apropriados pelos teatros musicais, são músicas sacras com características modinheiras, etc. (FREIRE: 2004, 101)

A modinha foi um gênero que se espalhou por diversas classes sociais e é sabido que modinhas e lundus circulavam entre os meios eruditos e populares. Teve fortes influências eruditas – uma vez que pode ser entendida como a tentativa de apropriação do canto lírico encontrado nas árias de ópera – mas nunca se sujeitou a regras muito rígidas. Foi famosa nos salões, cantada nas casas, nos saraus, na sala de câmara do rei, enfim, um gênero com muitas possibilidades esteticamente válidas e que refletiriam as habilidades de seus intérpretes. Há de se pensar que uma mesma modinha cantada pela filha de um burguês, ou por uma mulata poderá ser muito mais simples na realização quando comparada, por exemplo, com o cantar de um castrato, que geralmente se apresentava para a corte e exibia seus dotes através do uso de sua extensão vocal e ornamentação.

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No entanto, mesmo com estes diversos meios e trocas de influências, não podemos nos esquecer que cada intérprete tem um histórico individual e marcante. E lembrando que segundo Andrade (1967, v.1, p. 49), no tempo de D. João VI os mais procurados professores de canto do Rio de Janeiro eram os cantores castrati da Capela Real e desta forma, se analisarmos como influência vocal, mesmo os que não cantavam nas óperas e no teatro, tinham acesso a todo o ideal estético vocal por meio de seus representantes maiores na cidade.

A modinha foi um fenômeno musical brasileiro do século XIX e conforme mencionado em alguns trechos do trabalho, as oposições entre erudito versus popular ou mesmo a discussão a respeito de sua identidade são apenas plano de fundo mediante ao fluxo e refluxo de enriquecimento musical adquirido entre as classes e entre o Brasil e Portugal. Esta divisão hierárquica entre criador e criatura é antes de tudo uma questão ideológica e não musical. Concluímos que esse gênero musical transita sim entre o popular e o erudito, podendo ser abordada de forma válida através de qualquer um desses ângulos.

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Capítulo II: A influência do bel canto no Brasil

A música era uma das grandes paixões dos reis da dinastia de Bragança e foram despendidas somas consideráveis em sua honra. Basta recordar a riquíssima biblioteca musical reunida por D. João IV [1604-1656], ele mesmo compositor e crítico de mérito, a contratação de Domenico Scarlatti [1685-1757] sob o reinado de D. João V [1689-1750], a de David Perez [1711-1778] e dos maiores cantores italianos sob D. José I [1714-1777], sem esquecer a construção do faustoso teatro de ópera “dos Paços da Ribeira” ou “Ópera do Tejo”, considerado por [Charles] Burney [1726-1769] como o teatro mais brilhante de toda a Europa, infelizmente destruído no ano de sua inauguração pelo grande terremoto de 1755 (SCHERPEREEL:1985, 13).

Com a subida ao trono de Dom José I, em 1750, a ópera se estabelece definitivamente como gênero musical dominante em Portugal, igualando-se em importância à música religiosa. Importantes compositores italianos como Nicollò Jommelli (1714-1774) e David Perez foram contratados pela corte e introduziram em Portugal todas as informações do panorama operístico produzido na Itália. A inauguração em 1755 da Real Casa da Ópera (Ópera do Tejo), primeira casa dedicada ao gênero em Portugal, contou com a participação dos maiores cantores italianos da época. Os personagens femininos eram predominantemente apresentados por castrati. Além da influência do estilo de composição e do cantar, toda estrutura musical também era oriunda da Itália. Desse país eram importados partituras, papel de música, instrumentos musicais, músicos e bailarinos. Figurinos, adereços e até mesmo as mechas para as velas da iluminação do teatro, pois as oriundas da colônia produziriam excessiva fumaça.

A coroa portuguesa subsidiava a formação de artistas através do custeio de seus estudos musicais na Itália, enviando-os preferencialmente para Nápoles. Em seu regresso, esses “bolsistas” do governo passavam a integrar o círculo português de compositores, aculturando o gosto local aos padrões internacionais

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estabelecidos pela ópera italiana. Essa é a corte que chega ao Brasil em 1808, acostumada à vivência com a ópera e apaixonada pelos cantores italianos, principalmente os castrati.

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2.1

Bel Canto e os Castrati

O “cantar belo” tem sido utilizado como expressão genérica para as diversas tradições vocais, técnicas e interpretativas surgidas na ópera italiana desde seus primórdios no século XVII. Equivocadamente, muitos consideram o bel canto como mero virtuosismo vocal, desconectado ou até mesmo contrário ao sentido dramático e expressivo do canto. Sem nos determos nas controvérsias insolúveis entre os detratores e campeões do gênero, essa forma de abordar a música vocal é uma das mais significantes contribuições ao desenvolvimento estilístico da música barroca, deixou sua marca indelével não apenas no barroco tardio, mas inclusive nos períodos subsequentes. (BUKOFZER: 2009, 118) Essa arte foi o meio de comunicação entre artistas e seu público, transformando a ária em declamação inflamada e cativante. A individualidade dos intérpretes seria vital na experiência musical dos séculos XVIII e XIX.

A base técnica do bel canto reside no controle da respiração, no aperfeiçoamento do legato, na precisão e flexibilidade da coloratura, na ausência de transições bruscas entre os registros, no controle sobre uma longa extensão vocal (com um registro agudo bastante desenvolvido e de fácil emissão). Não se restringe apenas às óperas da era de ouro do bel canto, podendo ser utilizada também em outros repertórios. A arte desse bel cantare era construída através de longa preparação dos castrati nos antigos conservatórios espalhados pela Itália, cujos expoentes se destacam Farinelli (Carlo Broschi: 1705-1782), Caffarelli (Gaetano Majorano: 1710-1783), Porporino (Antonio Uberti: 1719-1783) entre tantos outros.

Durante seis, às vezes dez anos, os jovens castrati davam conta de uma considerável labuta cotidiana que trabalhava essencialmente a respiração, a fim de desenvolver ao máximo os músculos inspiratórios e expiratórios, garantia de uma técnica vocal a toda prova. Graças as esses exercícios, os jovens castrati abandonavam aos poucos a respiração essencialmente abdominal, para adquirir de modo perfeito a respiração costo-abdominal

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profunda que lhes assegurava regularidade e flexibilidade. (BARBIER: 1989, 46)

Todo este estudo de controle da respiração estava diretamente ligado à infinita variedade de exercícios que os castrati executavam diariamente para obter o domínio na execução de ornamentação virtuosística ao cantar.

A esse trabalho de respiração se enxertava a espantosa técnica barroca de ornamentação que o castrato tinha que adquirir e dominar com perfeição: passagens, trinados repetidos, “colocações de voz”, agilidade martelada, gorgheggi, mordentes, apojaturas, ou seja, os mil e um requintes de uma vocalização flexível e ágil. (BARBIER: 1989, 46)

Os castrati ou evirati eram cantores homens que tendo sido emasculados em idade pré-púbere, desaceleraram o processo de maturação sexual ao extremo, mantendo consequentemente o registro vocal agudo infantil aliado ao domínio técnico de anos de prática. Os mais consagrados aliavam potência sonora e extensão ampla. Francesco Bernardi (1686-1758), mais conhecido como Senesino por ter nascido em Siena (Toscana), possuía região de contralto, de Sol2 a Mi4.

Farinelli possuía a estonteante extensão de Lá2 a Ré5. De fato, os castrati foram

os pioneiros do que seria conhecido no futuro como a arte do bel canto. Aqueles possuidores das mais belas vozes tornaram-se ídolos do mundo musical. Extirpados de seus dotes naturais na infância, restou-lhes dominar o mundo através de sua voz, constantemente ostentando seu outro poder em acrobacias sonoras, recriando de maneira impressionante suas linhas melódicas. Sem dúvida eram admirados por seu refinamento musical e embelezamentos elaborados, muitos dos quais foram devidamente anotados, embora a escrita não consiga expressar a sutileza e frescor de seus improvisos (JACKSON: 2005, 68-69)

O processo histórico de transformação do gosto musical promoveu o deslocamento desses artistas dos centros irradiadores da produção artística – como a Península Itálica – para a periferia consumidora, de gostos mais conservadores – como a Península Ibérica. Com a invasão francesa e consequente retirada

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estratégica da corte portuguesa, servos e criadagem a partir de 1807, vieram a terras brasileiras os músicos da Capela Real, entre os quais cantores castrati.

Com as transformações culturais ocorridas na Europa no século XIX, o declínio da participação de castrati na ópera é evidenciado pela transferência de seus papéis tradicionais para soprani e mezzi mulheres, observável nas óperas de Rossini e que preservam o legado do bel cantare com seus embelezamentos e

fioriture. (JACKSON: 2005, 69)

A prática de emasculação para fins artísticos iniciou longo processo de declínio cujo último representante, Alessandro Moreschi (1858-1922), registraria em áudio seus recursos vocais em gravações feitas em 1902 e 1903, possibilitando alguma ideia de como soaria esse tipo de voz, embora Moreschi não estivesse mais em seu auge vocal. (JACKSON: 2005, 69)

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2.2

Prática de Ornamentação e Improvisação

Ornamentação é tão necessária na vestimenta da música do barroco, como se vestir é para o corpo humano. Há uns poucos sortudos de nós que aparentamos o nosso melhor sem nada, apenas com um laço na cabeça (...).

(SADIE: 1998, 417)

Há sempre espaço interpretativo entre a notação musical convencionada e sua realização. Improvisação, adições e alterações sutis - ou nem tanto - a partir de uma obra musical previamente criada é elemento essencial da cultura humana. Tal variação pode ser melódica, como na expansão ou extensão das notas originalmente grafadas em uma ária operística através de diminuições ou ornamentos. Na música culta ocidental, há uma zona de tensão entre compositores que permitem instrumentistas e cantores nessa prática, permitindo certo grau de espontaneidade e desvio de sua música como anotada e no outro extremo, compositores contrários, que entendem a intervenção do intérprete como potencial ataque à integridade de suas criações. (JACKSON: 2005, 195)

A necessidade de variar a linha melódica parece ser inerente à prática musical. Para Frederick Neumann:

Desde que as pessoas começaram a cantar, isso significa em tempos imemoriais, tem existido ornamentação. A necessidade de brincar com o material musical, de manipular uma melodia de maneira lúdica alterando seus ritmos ou substituindo notas ou adicionando novas notas, deve saltar de um instinto muito profundo humano, porque nós encontramos essa manifestação em todas as eras e culturas. (1993, 293)

Para os músicos dos séculos passados, a partitura nua deveria ser elegantemente vestida. Contudo, saber o que vestir pressupõe intimidade cultural com o meio. Cada tempo, local e função possuem seus códigos particulares e

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precisamos obter noções o mais claras possível da distância que nos separa de um determinado período como de nosso conhecimento histórico e sensibilidade contemporânea. Mais do que estabelecer regras for dummies, principalmente porque as fontes primárias e secundárias não apenas dialogam como conflitam entre si, necessitamos compreender como seria estar naquele ambiente, entender os interesses e referências daqueles que viveram naquela época através dos olhos de alguém para o qual ornamentação seria “feijão com arroz” (SADIE: 1998, 417).

O intérprete de nosso tempo que deseje realizar o repertório dos séculos anteriores com propriedade e entendimento histórico deve necessariamente mergulhar na mentalidade de época. Um bom caminho seria perguntar como os artistas dos séculos XVIII e XIX teriam reagido à notação de seu tempo. Qual seria a expectativa da interpretação da escrita musical de um cantor em seu tempo histórico? Podemos afirmar que em um dos extremos haveria a possibilidade do acréscimo ao texto musical escrito de fiorature mais ou menos elaboradas, substancialmente modificando a linha melódica. Material original poderia ser inserido em cadenzas. Na ponta menos vistosa, porém não menos expressiva, há a aplicação de ornamentos mais discretos, com uma menor modificação do texto original, desde a aplicação e variação do vibrato, portamenti e sutis modificações nos ritmos. Interpolações de arpejos, trinados, grupetos e apojaturas não deformariam a estrutura do desenho melódico original. Conforme Bernardes (2008, 118):

De fato, não é possível um abandono de nossa individualidade que, afinal de contas pertenço ao séc. XXI. (...) Para nós, distantes alguns séculos, é necessário mergulhar no conhecimento de época, para através do conhecimento profundo, atuarmos no estilo e pensamento como uma segunda natureza, e realizarmos nossa intervenção artística recriando um todo coerente no novo contexto de realização.

Quando se pensa nas formas de expressão da música culta, o apreciador leigo – e mesmo grande parte de músicos profissionais – dificilmente reconhece a

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importância da ornamentação, embelezamento e improvisação nas práticas musicais de todas as eras. A musicologia no século XX atraiu nosso olhar para questões de ornamentação dos séculos XVII e XVIII, com seus misteriosos símbolos compostos por notas em miniatura, traços ondulados, cruzes e outras formas peculiares. Reconheceu-se a necessidade intrínseca do ornamento como constituinte essencial da estética barroca em sua busca pelo efeito, pela surpresa, pelo bizarro.

Podemos entender ornamento como uma adição à estrutura, agregando elegância, graça, suavidade ou variedade. Nesse contexto, a estrutura conteria os elementos essenciais, enquanto o ornamento adicionado realçaria o apelo estético de tais elementos. Ornamento e estrutura complementam-se um ao outro. (NEUMANN: 1993, 294) Se didaticamente tal oposição e complementaridade entre ornamento e estrutura pareça bastante nítida, no entanto, o ponto exato onde começaria uma e terminaria a outra pode ser bem difuso.

No século XX, em especial no período pós-guerra, houve uma forte tendência a se valorizar apenas o texto anotado na partitura pelo compositor. Essa visão de ortodoxia equivocada provocou a conduta de se entender como norma a escrita, esquecendo-se das práticas musicais. Apenas recentemente tal concepção restrita tem sido desafiada, o que provocou renovação e frescor nas performances. O desafio de entendimento de estilo incrementa conforme nos distanciamos no tempo e no espaço – lembrando que se trata de produção de origem europeia ou nessa cultura inspirada. A maioria dos executantes da atualidade adiciona alguns trinados, apojaturas associados a alguma pequena modificação de fraseado e dinâmica, resvalando a superfície interpretativa, justificando performances da música dos séculos XVIII e XIX, enquanto há muito mais a ser observado. (BROWN: 1999, 415)

Dependendo de período histórico, filiação estética, nacionalidade e até idiossincrasias, a ornamentação poderá estar incorporada à escrita sem distinção clara da linha estrutural, ser anotada com notas de tamanho menor ou símbolos. Os

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ornamentos poderão ser adicionados ou até mesmo alterados por iniciativa do intérprete, quer seja de maneira espontânea ou mesmo previamente definidos. O caráter improvisatório seria frequentemente esperado, mesmo que apenas emulando a inspiração do momento. Falhar em surpreender a audiência com uma

performance plena de frescor implicaria em uma realização mal acabada,

dificilmente desejável pelo compositor. Tais acréscimos ornamentais não seriam marcados na partitura, mas adicionados pela iniciativa do executante, esses embelezamentos poderiam ir desde uma simples graciosa nota acrescentada até os mais caprichosos floreios ou longas cadências. (NEUMANN: 1993, 510)

Os castrati não deixavam de dar livre curso à imaginação para florir à vontade o tema inicial (BARBIER: 1989, 80). Podemos utilizar exemplos musicais anotados como exemplos das possibilidades de elaboração utilizados por artistas do período. O estudo desses exemplos nos permitiria adotá-los como guias ou modelos esteticamente plausíveis. Mesmo que previamente elaborados pelo compositor, adicionados por intérprete da época ou criados na atualidade, o principal imperativo é manter o sentido de espontaneidade como teria sido no processo original de improvisação, evitando qualquer impressão de rigidez. (JACKSON: 2005, 195-196)

Dentre o material escrito por castrati e outros cantores dos séculos XVIII e XIX destacam-se Opinioni de cantori antiche e moderni (Bolonha: 1723), de Pier Francesco Tosi (c.1653-1732), Pensieri, e riflessioni pratiche sopra il canto figurato (Viena: 1774) de Giovanni Battista Mancini (1714-1800), A Selected Collection of

the Most Admired Songs, Duetts, &tc. (c.1779-1795) de Domenico Corri

(1746-1825), Regole Armoniche o sieno Precetti Ragionati per apprender la Musica (1797) e o Traité complet sur l’art du chant (Paris: 1847) de Manuel García (1805-1906).

Opinioni de’ cantori antichi e moderne de Tosi é considerado como o primeiro

tratado inteiramente dedicado a arte do canto. Em 1743 foi publicada sua primeira versão em inglês como Observations on the Florid Song. O trabalho de Tosi foi lido, estudado, traduzido e citado por professores de canto por ao menos meio século

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após sua publicação e permite-nos entrever alguns aspectos sociais e técnicos da música vocal do Barroco (SADIE: 1998, 426), embora a ausência de qualquer ilustração musical seja uma perda considerável. Homem já velho quando da publicação de Opinioni, Tosi passa severo sermão no qual critica o que considera ser excessivo cultivo do atletismo vocal em prejuízo do cantabile e do patético pelos compositores “modernos” – e por extensão cantores para os quais escreviam. (SADIE: 1998, 417)

Nesses moderne podemos incluir jovens compositores napolitanos, como Leonardo Vinci (1690-1730) e Leonardo Leo (1694-1744) que estavam plantando a semente de um novo estilo pós-Barroco, cujo mais brilhante representante, Carlo Broschi (1705-1782), detto Farinelli, tinha apenas iniciado carreira.

As árias admitiam diversos tipos de ornamentação e seu uso e formas transformaram-se consideravelmente durante a vida de Tosi. A utilização de ornamentos (grace notes) está intimamente associada às árias patéticas, expressivas, como as de Alessandro Scarlatti (1660-1725), por exemplo. Em primeiro lugar há os trinados e apojaturas em suas diversas variedades, messa di

voce, mordentes, vários tipos de portamenti ou ligaduras (scivolo) e o que aparenta

ser um tipo de rubato (stracino, possivelmente equivalendo a rallentando). Os mais desafiadores à musicalidade e gosto do cantor, de acordo com Tosi, são os passi.

Passi seriam pequenos grupos de notas introduzidos pelo cantor de maneira a

embelezar a linha melódica, sem perturbar o fluir do compasso, porém ritmicamente matizadas – roubada no tempo para cativar a alma – e dinamicamente sombreadas. (SADIE: 1998, 419-420)

Tosi faz o que pode ser considerado o primeiro depoimento teórico a respeito do embelezamento da ária da capo. Em tal ária, ele diz, a primeira parte deverá ter somente alguns ornamentos simples e de bom gosto de maneira a preservar a integridade da composição, a segunda parte deverá ser dada um pouco mais de adereços para mostrar mais da habilidade do cantor, e no da capo no qual cada um

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pode variar e improvisar o que cantou antes, não é grande novidade. “Quem não variar melhorando tudo que cantou, não é grande homem.” (TOSI: 1723, 60) (NEUMANN: 1993, 520-521)

A ornamentação era responsabilidade do cantor que vestiria a melodia base com suas melhores habilidades vocais. Seu desenvolvimento vocal havia sido realizado desde a infância, obtendo pleno domínio de recursos técnicos e estilísticos e supunha-se que o intérprete deveria ter inteligência e gosto para ornamentar, realçando a beleza e expressão musicais. Tosi deplorava a tendência “moderna” de se anotar apojaturas. Ornamentação deste tipo era mais do que mera decoração, ela supria o executante com um recurso com o qual poderia brincar com a suscetibilidade de seus ouvintes. (SADIE: 1998, 420)

As passagi, passagens melódicas ricamente ornamentadas, em princípio eram escritas pelo compositor, que tinha em mente as habilidades particulares do cantor para quem eram destinadas. (SADIE: 1998, 420) Conservador, Tosi ataca o que entende por uso excessivo de passagi pelos modernos. Considera as divisões impotentes para tocar a alma, apenas despertam nossa admiração. Devem, no entanto ser ensinadas ao estudante – que as praticará com assiduidade - “pois quando são bem executadas no lugar apropriado, merecem aplauso, e tornam um cantor mais universal; ou seja, capaz de cantar em qualquer estilo.” (TOSI: 1743, 51)

Precisamos contextualizar a severidade de Tosi em relação aos excessos de ornamentação. Possivelmente o tipo de embelezamento criticado tenha possuído um nível de luxúria praticamente inconcebível na atualidade. Mesmo uma fração de tamanha volúpia sonora seria excessiva para nós, embora pudesse soar escassa para os padrões da época. Poderíamos exercitar nossa sensibilidade através do olhar dos cantores que os teriam cometido. Privado das possibilidades de realização masculina, treinado rigorosamente desde a infância para o único propósito de maravilhar a audiência com proezas vocais sobre-humanas é de se esperar que o

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virtuose castrato incite seu público com os mais diversos malabarismos vocais,

arrancando aplausos e buscando um sentido maior para sua história pessoal. Era o que demandava o público de ópera europeu – com parcial exceção da França, rival e consumidora da música italiana. A sedução proporcionada pelos castrati foi a mais visível e espetacular característica do século XVIII. “Divisões eram para eles o equivalente aos dós de peito bramidos por nossos robustos tenores.” (SADIE: 1998, 424)

Mancini estudou canto em Nápoles com Leo, o que o colocaria diretamente na mira de Tosi como um dos “modernos”. Seu tratado de 1774 dá continuidade ao trabalho de Tosi (1723). Considera-se de grande importância a influência de Mancini no culto ao virtuosismo vocal que se prolongaria no século XIX. As controvérsias com Manfredini revelam as transformações estéticas do final do século XVIII.

Era prerrogativa do intérprete a elaboração de versões mais decoradas, especialmente em seções repetidas. Cadenze são pontos especialmente interessantes para improvisação. Corri defende limitar a duração de uma cadenza a apenas uma respiração. (JACKSON: 2005, 198) Farinelli escreveu alguns de seus embelezamentos, assim como Faustina Bordoni (1697-1781) de quem ao menos um exemplo das diminuições de árias que cantou sobrevive. (JACKSON: 2005, 198) A ornamentação demonstrava o domínio vocal como também da linguagem musical.

...ele não se contentava em exibir seu virtuosismo, mas dava prova de seu bom gosto musical; a arte vocal tinha de ser constantemente criativa, e não fixada através das notas escritas no papel: saber ornamentar era então a prova de um domínio total dessa arte. ...para satisfazer o público, o cantor tinha de arranjar uma progressão através das três partes da ária (A-B-A) e ornamentar mais a segunda cadência que a primeira, depois a terceira muito mais que a segunda. (BARBIER: 1989, 78)

Nos períodos entre 1750-1900, podemos observar uma flexibilidade maior na interpolação de elementos ornamentais que permitem as convenções de notação do século XX. No século que nos antecede, os compositores tenderam

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progressivamente em especificar seus requerimentos musicais. Tal procedimento aproximou a performance do intérprete da notação pontual indicada pelo compositor, com relação a altura, ritmo e embelezamento da obra. (BROWN: 1999, 415) O artista desloca o peso de sua abordagem do enfoque criativo e gradualmente assume o papel de executante. No entanto, essa cristalização em recriar, embelezar e alterar tempos pode nos limitar a meros reprodutores ao invés de fundirmos os complementos estrutura e ornamentos com criatividade artística. Ornamento e estrutura são aspectos complementares e essências da performance artística. Para Corri, “uma ária ou um recitativo, cantados exatamente como comumente anotados e escritos, seria uma performance rude e muito inexpressiva” (apud BROWN: 1999, 417).

A colaboração entre compositor e intérprete não implica obrigatoriamente em acréscimos por parte deste à criação daquele. Essa colaboração pode significar também a redução de ornamentos. Anselm Bayly (?-1794), em seu Practical

Treatise on Singing and Playing with Just Expression and Real Elegance (1771)

(apud BROWN: 1999, 417), afirma que:

Muitos compositores inserem apojaturas e ornamentos que sem dúvidas devem auxiliar ao aprendiz, porém não a um executante bem educado e de bom gosto que pode omití-los conforme julgar apropriado, variá-los ou introduzir outros de sua própria fantasia e imaginação.

Charles Burney (1726-1814) (apud BROWN: 1999, 417-418), comentando sobre Antonia Wagerle Bernasconi (c. 1741-1803), integrante do King’s Theatre a partir de 1778, que La Bernasconi não teria grande voz, mas possuía um estilo de cantar muito elegante, e muitos ornamentos e refinamentos totalmente novos na Inglaterra de então. Sobre Teresa Maddalena Allegranti (1754-c.1802), diz Burney:

Sem dúvida ela parece para mim original, seus ornamentos e embelezamentos não parecem ter sidos copiados de nenhum outro cantor, ou que tenham sido mecanicamente ensinadas por um mestre ou professor. (apud BROWN: 1999, 418)

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O entendimento do caráter essencial de embelezamento e elaboração como inerente ao repertório do século XVIII como fundamental à experiência estética do compositor, executante e ouvinte aparenta ser senso comum no mundo acadêmico. No entanto, o mesmo entendimento a respeito das práticas no século XIX, ainda provocam debates, e é necessário que se compreenda que as mudanças de atitude frente às práticas musicais oriundas dos séculos anteriores foram bem mais lentas e graduais do que possamos imaginar em um primeiro momento. Especialmente no mundo do canto lírico e da ópera. Deve-se considerar que as práticas e abordagens da notação musicais desse período eram mais próximas e fundamentadas nas percepções do século XVIII que na segunda metade do século XX. (BROWN: 1999, 415-416)

A gradual mudança de hábitos de escrita e das convenções de performance desestimularia práticas de improvisação e os ornamentos seriam absorvidos na notação durante o século XIX. Os grandes artistas do período, como Ludwig van Beethoven (1770-1827) e Frederic Chopin (1810-1849) improvisavam e muitas de suas partituras documentam esses momentos. No entanto, devido a essas mudanças nas práticas de notação e consequentemente na abordagem dos intérpretes, a ornamentação seria entendida como uma das questões mais desafiadoras à performance da música criada nos séculos XVII e XVIII do que àquela criada em períodos subsequentes. (NEUMANN: 1993, 293-294)

Argumentos contrários à prática de embelezamento baseados em críticas do período podem ser resultado de equívocos de interpretação. Como observa Brown (1999, 421), críticas publicadas no Allgemeine Musikalische Zeitung, jornal de música publicado em língua alemã no século XIX, com objeções a embelezamentos realizados em árias de Le Nozze di Figaro KV 492 e Die Zauberflöte KV. 620 pelo baixo Ludwig Fischer (1745-1825) opõem-se não à inclusão de fiorature em árias de Mozart, mas à sua má realização. Nessa mesma publicação, em 1802 um crítico

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lamentou a ornamentação de Fischer em In diesen heil’gen Hallen (Die Zauberflöte), alegando ser a harmonia complexa e que Mozart já escrevera muitas notas...

Também é possível que tais críticas indicassem gradual mudança de gosto no período. Três anos antes, o mesmo jornal pedia apenas que Fischer usasse “um pouco menos de embelezamentos” (apud BROWN: 1999, 421). Fischer foi um grande colaborador e amigo de Mozart. Com sólida formação musical – Fischer iniciou seus estudos musicais aprendendo violino e violoncelo –, seus dotes vocais e artísticos – não apenas como cantor, como também sua atuação – foram amplamente admirados pelos compositores e público da época. Para ele Mozart criou especialmente o papel de Osmin (Die Entführung aus dem Serail KV 384) explorando suas habilidades e extensão vocais.

A prática improvisatória em cadenze vocais permanece século XIX adentro, principalmente na música influenciada pela ópera italiana. Embora Wolfgang Mozart (1756-1791) após c. 1781 não mais privilegiasse adições ad libitum em suas composições, tais convenções continuaram aceitas entre compositores italianos da geração de Rossini, Gaetano Donizetti (1797-1848) e Vincenzo Bellini (1801-1835). A tendência no final do século entre compositores italianos, Giuseppe Verdi (1813-1901) incluso, é definirem suas próprias cadenze. O soprano francês Laure Cinti-Damoreau (1801-1863), associada a Rossini com quem estudou e para quem criou diversos papéis, em seu Méthode de chant (1849) fornece diversos exemplos aplicáveis a Giacomo Meyerbeer (1791-1864), Donizetti, Jacques Halévy (1799-1862) e outros. (JACKSON: 2005, 199)

É possível que os compositores do século XIX anotassem embelezamentos desejados – se não fiorature obrigatórias – como forma de se prevenir de equívocos de ornamentação incorreta ou inapropriada por parte de executantes inexperientes ou de pouca sensibilidade artística. Mesmo na geração de Verdi há evidências de que os compositores não esperavam que cantores realizassem as passagens ornamentais como exatamente explicitadas na partitura ou mesmo as cadenze de

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maneira literal como escritas. Possivelmente tais anotações operassem mais como um guia indicando ao cantor os pontos e duração adequados aos embelezamentos interpolados. Em períodos anteriores, tais decisões seriam deixadas totalmente a critério dos intérpretes.

Clive Brown (1999, 419) relata uma anedota envolvendo Manuel Garcia, pai (Manuel Del Pópulo Vicente Rodríguez García: 1775-1832) e Manuel Garcia, filho (Manuel Patrício Rodríguez García: 1805-1906) em que é possível vislumbrar a transição e simultaneidade entre a tradição de se escrever apenas o esqueleto de uma ária à qual o cantor colocaria seus embelezamentos e às novas práticas em que o compositor assumiria maior domínio nos detalhes da música. Narra García filho um incidente em cerca de 1815 durante o ensaio de uma nova ópera na presença de um compositor da velha escola italiana. Tendo recebido de seu pai uma parte para ler à primeira vista, García filho cantou com perfeito fraseado e sentimento, respeitando a partitura exatamente como escrita. Após terminar, o compositor teria lhe dito: “Muito bem, mas nada do que eu queria”. Ao pedir uma explicação, García filho foi informado pelo compositor que a melodia era meramente um esqueleto ao qual o cantor deveria recobrir com o melhor de suas habilidades e instinto artístico. Sendo García pai muito habilidoso em improvisação, demonstrou a ária com diversas alterações e adições, introduzindo escalas rápidas, trinados,

roulades e cadenzas. “Bravo! Magnífico! Era assim que eu desejava minha música!”

disse o velho compositor sacudindo calorosamente a mão do cantor.

A habilidade de invenção do intérprete, naturalmente criando novos embelezamentos seria atributo essencial de um cantor solista bem sucedido. Posicionamentos semelhantes perdurariam pelo século XIX como se apreende através do depoimento do violoncelista Friedrich Dotzauer (1783-1860) nos anos 1820:

Há uma massa de ornamentos cuja forma e humores dos virtuoses tem feito crescer de tal maneira que nomes que combinem com eles não foram sequer descobertos para serem usados”. (BROWN: 1999, 418)

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Necessário em todas as circunstâncias, o grau e tipo de embelezamento seriam variáveis de acordo com o contexto e trecho musical abordado. Árias de grande impacto dramático, de bravura ou desespero, solicitam intervenção de grande virtuosidade. Da mesma forma, o caráter lírico ou melancólico recomendaria recursos mais sutis. Louis Spohr (1784-1859), em sua Violinschule (1832), distingue com clareza entre um estilo “correto” e um estilo “refinado”. Pode-se apresentar a música de maneira meramente correta – o que em si demanda grande conhecimento técnico e artístico –, ou artisticamente refinada, na qual o intérprete submete o texto original a uma série de modificações mais ou menos sutis em benefício da expressão. Era esperado que o executante tivesse capacidade de enxergar além da notação literal do compositor. Algumas vezes, por convenção genericamente entendida, figuras e notas da partitura eram reconhecidas como indicadoras de outras notas e figuras! Assim como no Jazz da atualidade, a partitura é escrita dentro de uma convenção que não descreve com exatidão aproximativa sua execução, mas implica necessariamente em uma reinterpretação e execução distintas. O tipo de execução estava implícito no contexto musical, convenções eram operativas para variáveis alterações rítmicas – como notas pontuadas – e arpejos de acordes. (BROWN: 1999, 416)

Críticas contra o excessivo embelezamento e/ou sua aplicação incorreta não significam necessariamente o repúdio à prática. Como observa Anton Reicha (1770-1836):

Não se deve confundir uma coisa com abuso que é feito dela, pois há sempre uma diferença entre as duas. É necessário saber distinguir um cantor de talento que embeleza uma melodia com uma voz flexível, agradável e com gosto refinado e excepcional discernimento, com aqueles mal mímicos e caricaturas de dar pena que fazem disso algo pior. E se o anterior tem, em acréscimo, espírito o bastante para colocar seus embelezamentos da maneira justa e correta, não se deve confundi-lo com os últimos, que os usam de maneira equivocada”. (BROWN: 1999, 420)

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Podemos afirmar que ao menos até a primeira década do século XIX os embelezamentos foram proeminentes sempre que houvesse performance solista, especialmente no caso da música vocal. A quantidade de elementos elaborados, agregados e alterados de forma artística era consideravelmente mais ampla e profunda do que o seria em anos posteriores. A visão mais difundida até fins do século XVIII era do compositor prover não uma obra acabada, mas um delineamento ou esquema a partir do qual o intérprete solista demonstraria suas melhores e mais assombrosas habilidades com maior vantagem expressiva (BROWN: 1999, 416-417).

Por volta de 1830 e 1840 os intérpretes instrumentistas gradualmente tornam-se menos inclinados a adicionar ornamentos não especificados pelo compositor. Friedrich Starke (1774-1835) em sua Wiener Pianoforte-Schule (1819-1821) defende que pianistas não deveriam introduzir seus próprios ornamentos, embora cantores pudessem fazê-lo. O uso de símbolos para ornamentos tornam-se menos frequentes tornam-sendo assimilados aos contornos detalhados das linhas melódicas compostas. (JACKSON: 2005, 292)

Pode-se traçar um paralelo a respeito do processo histórico no qual os compositores gradativamente aprofundaram o nível de detalhamento de suas composições com os novos níveis de especialização do trabalho ocorridos durante a Revolução Industrial. Rossini também começara a anotar os embelezamentos de maneira mais completa em suas próprias partituras. Tal atitude revela seu descontentamento em confiar sua música ao acaso de receber um intérprete com suficiente técnica vocal, gosto e entendimento para realizar os efeitos desejados. Contudo, não há razão para se acreditar que Rossini ou os cantores com os quais o compositor se relacionou diretamente considerassem tais embelezamentos anotados como restritivos ou exclusivos.

Podemos observar nas primeiras gravações realizadas o tratamento interpretativo de cantores formados nas melhores tradições do século XIX. O uso

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de interpolar embelezamentos elaborados inseridos no repertório estava longe de findar, mesmo na geração posterior à morte de Rossini. A cavatina Una voce poco

fa (Il Barbieri di Siviglia: 1816) é característica como ária de ostentação da primeira

metade do século XIX. Em peças como essa, longamente estabelecidas no repertório, camadas de tradição interpretativa acumularam-se e podemos identificar muitas semelhanças entre embelezamentos de distintos cantores mais recentes. Muitos cantores do século XIX eram renomados por sua fertilidade criativa, ousando embelezar e elaborar uma mesma ária de maneiras e ocasiões diversas.

Através de gravações realizadas em torno de 1900 é possível observar práticas remanescentes do século XIX. (JACKSON: 2005, 199) A tradição na prática de se embelezar o repertório manteve-se durante o século XIX sendo documentada através das primeiras gravações no início do século XX. Alessandro Moreschi (1858-1922), considerado o último castrato, legou-nos uma série de gravações realizadas entre 1902 e 1904. Embora haja controvérsia a respeito de sua técnica, seja por estar longe de seu auge vocal, seja por não representar diretamente o bel

canto dos séculos XVII e XVIII, ainda assim a onipresença de embelezamentos é

fruto de tradições dos castrati do século XIX (BROWN: 1999, 428).

Exemplos de gravações de Una voce poco fa por Marcella Sembrich (1858-1935), Luisa Tetrazzini (1871-1940) e Amelita Galli-Curci (1882-1963), três grandes sopranos nascidas durante a segunda metade do século XIX, revelam-nos consistência na escolha de lugares específicos na ária em que sugerem elaborados ornamentos. Podemos reconhecer nas três interpretações gravadas semelhanças com alguns modelos tradicionalmente sancionados, porém essas gravações também apresentam outras passagens em que as intérpretes introduzem diferentes tipos de ornamentação e demonstram suas melhores habilidades técnicas específicas da individualidade de suas vozes. (BROWN: 1999, 419-420)

Nota-se o frequente uso de portamento. Como ornamento, também não era usual indicar esse tipo de condução da voz, ao longo de intervalo amplo, geralmente

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ascendente, passando rápido por todas as notas intermediárias, em absoluto legato, no qual se antecipa a nota real. Seu uso sublinhava importantes palavras no texto, como pode ser observado nas gravações do início do século XX que refletem as práticas do século anterior. (JACKSON: 2005, 293)

O debate sobre ornamentar árias e peças assemelhadas, não importa qual posição se tome, não consegue alterar o fato de que qualquer embelezamento – cuja tradição é possível vislumbrar através de gravações históricas do início do século XX – era prática amplamente impregnada na cultura do século XIX e anteriores.

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2.3

Capela Real de D. João VI: castrati e sua influência nas

obras do Padre José Maurício Nunes Garcia

No período que vai da chegada da corte portuguesa ao Brasil até a abdicação de D. Pedro I (1808-1831), os músicos nacionais e alguns estrangeiros radicados no país é que impulsionaram a vida musical da cidade. Raros são os músicos de passagem. (ANDRADE: 1967, 134)

A vinda de músicos treinados na estética e técnica europeia causou certamente forte impacto na música até então produzida no Brasil. Se não provável, é bastante plausível que cantores treinados arduamente na arte do bel canto, mestres na arte de embelezar melodias, agregando maior luxúria e variação nas repetições, como o eram os castrati, tenham aplicado seu empenho também nas modinhas imperiais.

Os castrati não só participavam da Capela Real, como também eram presença marcante nas festas particulares e nas montagens de ópera. Há um comentário de 1826, onde um cronista inglês que assina por APDG afirma “Eu nunca assisti a uma soirée no Rio sem lá ver um ou dois castrati”. (apud CARDOSO: 2008,93) Como professores de canto certamente transmitiram a escola de bel canto aprendida na Europa. O ápice dessa prática se caracterizou pela arte dos castrati, e implica em toda uma tradição vocal, técnica, estilística e interpretativa da opera

seria, característica do barroco.

Como professores de canto, consequentemente transmitiram sua técnica e gosto a seus alunos locais.

Com a chegada da corte e a consequente vinda de cantores europeus, os intérpretes cariocas puderam contar com professores especializados na arte do canto. Dentre eles, “os mais procurados professores de canto do Rio de Janeiro eram os cantores sopranistas (castrati) da Capela Real”. (ANDRADE: 1967, 49)

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