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2. EDUCAÇÃO NO TERRITÓRIO DA LIBERTAÇÃO

2.4 CAPITÃO DOS ÍNDIOS CHICO BARROS

A escola teve esse nome, porque o Francisco Barros foi um dos quatro companheiros tombados aqui na luta pela terra, e a morte dele foi uma das mais perversas que aconteceu, entre esses companheiros que tiveram as vidas ceifadas para que a gente conquistasse de fato essa terra, o Francisco Barros foi homenageado como um legado importante no nome da nossa escola, por esse fator deixou doze filhos, a maioria deles eram menores na época, e nessa história a gente achou que o saber, fazer educação do assentamento, ele tinha que ir além das fronteiras, lembrando que a Educação do Campo também tem que ser pautada, também, na valorização da história de luta que essa comunidade fez e faz. Portanto o nome dele é e foi lembrado, será sempre, como uma luta permanente, que não vai parar. (Lúcia 12.07.2019).

Francisco Araújo Barros é descendente direto das famílias que aparecem nas narrativas dos povos do território. No Torrões, está localizada a Lagoa Luiz Barros, local onde também residiu, no final do século XIX, o antigo capitão dos índios Luiz de Barros, a cujos sucessores, os capitães Basílio de Barros e Chico Barros, ambos narrados como Capitães dos Índios do aldeamento Tremembé no início do século XX, foi atribuída uma relação de parentesco com Francisco Barros. Chico Barros foi indicado ainda como o primeiro cacique Tremembé. Finalmente, sobre esse elo de parentesco, há a necessidade de realizar uma investigação mais detalhada, inclusive sobre o que é entendido como parentesco nas dinâmicas locais, entretanto, esse fato indica outras inúmeras ligações políticas e organizativas que ajudam a tecer essa narrativa sobre o nome da Escola do Campo.

A terra que se quer conquistar é, ao mesmo tempo, o lugar de trabalhar, de produzir, de morar, de viver e de morrer (voltar à terra), e também de cultuar os mortos, principalmente aqueles feitos na própria luta para conquistá-la. (CALDART, 2004, p. 354).

Para entender esse elo entre Francisco Barros e Chico Barros, é preciso compreender a estrutura organizativa atual da aldeia dos Tremembé de Almofala, constituída após as atuações de missionários indigenistas no século XX. Sobre esse tema, traço uma interpretação sobre a dimensão colonial do organograma hierárquico “imposto”, negociado, que pode ser compreendido por uma dimensão da ideia de tutela e controle para com os grupos indígenas. Até que ponto essa intervenção desestabilizou e/ou desarticulou um processo autônomo de organização e recriação de suas formas organizativas associadas às suas práticas cotidianas de sobrevivência? Pacheco de Oliveira faz a seguinte afirmação que dialoga com esse questionamento:

Estabelecer a tutela sobre os “índios” era exercer uma função de mediação intercultural e política, disciplinadora e necessária para a convivência entre os dois lados, pacificando a região como um todo, regularizando minimamente o mercado de terras e criando condições para o chamado desenvolvimento econômico. (PACHECO DE OLIVEIRA, 1998, p. 52).

O papel exercido pelo Capitão dos Índios no início do século XX, no contexto das narrativas sobre o Capitão dos Índios Chico Barros, era o de intermediar as prestações de serviços entre os índios do aldeamento e as fazendas localizadas ao redor de Almofala e, ainda, negociar áreas de plantio fora da área do antigo aldeamento para os índios do local, fator que considero importante para pensarmos a espacialidade ocupada pelos Tremembé nesse período, frente à expropriação do seu território no século passado. Para além disso, os relatos afirmam que Chico Barros exercia uma liderança política sobre o povo de Almofala, sendo responsável por algumas mediações de conflitos internos, entre índios e/ou entre os não-índios.

Relatos contam ainda que, antes da figura de poder atribuída ao Cacique da comunidade Tremembé, era de responsabilidade do capitão de índio fazer as articulações da vida cultural da aldeia com o poder público e os demais povoados. Neste contexto, remeto à reflexão e à comparação dessa patente a um cargo hierárquico criado para auxiliar na administração dos aldeamentos, neste caso de Almofala, cabendo a um indígena a função de mediação das relações sociais dos “de dentro” com os “de fora”. Fabricio Lyrio Santos (2013) nos traz uma reflexão acerca do afastamento das direções das aldeias das mãos dos clérigos ao ser repassada para o cargo de “capitão da aldeia” (p. 5). Essa analogia pode ser utilizada como uma forma de facilitar o entendimento acerca da incumbência de Chico Barros, atribuída aos processos de negociação durante a transformação das aldeias em vilas de índio, mudança política detalhada pela tese de Isabelle Silva (2003), conferindo, para isso, essa patente diretamente ao cargo de mediador interno, isto é, um interlocutor indígena com as instituições dominantes coloniais.

Esse formato hierárquico encontrado nas aldeias indígenas, na atualidade representado pelas figuras do Pajé e do Cacique, remete a uma padronização das imagens do senso comum existente sobre os “índios”. Por que todos os grupos que se utilizam da categoria de indígena para pautar suas demandas políticas são representados por uma esfera hierárquica semelhante àquela oriunda das instituições ocidentais? Uma ideia de poder centrada em uma representação política, no caso dos Caciques, e em uma esfera espiritual religiosa e tão influente quanto, no caso do Pajé. Entre as fronteiras étnicas no território, encontrei essa estrutura hierárquica como fator de diferenciação entre grupos que se afirmam Tremembé e que não se integraram a tal organograma hierárquico. Quando Fabricio Lyrio Santos (2013) apresenta

algumas questões históricas sobre a administração das aldeias no período colonial, deixa as seguintes pistas sobre a ideia de uma função de gerenciamento desses aldeamentos:

No tocante ao regime de funcionamento das aldeias, a lei de 1611 atribuiu o encargo espiritual dos índios aldeados aos vigários seculares, nomeados pelo bispo. Na falta, porém, de clérigos, essa função poderia ser exercida por religiosos, nomeadamente da Companhia de Jesus (mas também de outras ordens religiosas), desde que subordinados à jurisdição episcopal. Além disso, a administração temporal foi tirada das mãos dos religiosos, ficando estabelecido o cargo de capitão da aldeia. Essa lei, no entanto, não foi inteiramente aplicada e tudo permaneceu como antes, com os religiosos exercendo tanto o encargo espiritual quanto a administração temporal das aldeias. (SANTOS, 2013, p. 5, grifo meu).

Isabelle Silva (1993), quando faz uma reflexão sobre a “cultura de contato” a partir das interações existentes nos aldeamentos, apresenta uma incógnita sobre a dualidade cultural existente no papel desempenhado no cargo diferenciado dado a um indígena naquela instituição colonial. É importante a reflexão acerca do fato narrado, ou seja, sobre qual é a função que tal sujeito estabelece naquela conjectura de mediação e negociação, ora representante de uma instituição dominadora colonial, ora representando o papel dos grupos que simbolizavam resistência e buscavam a manutenção de suas sobrevivências, perante o histórico de opressão e expropriações de seus territórios, oriundos da colonização. Isabelle Silva ainda reforça a ideia desses sujeitos mediadores nas estruturas organizativas dos aldeamentos, quando tece os seguintes comentários:

Nas aldeias de visita, quando os padres não estavam presentes, havia índios que eram uma espécie de substitutos, encarregados de cuidar do templo, ministrar as doutrinas, ensinar às crianças e, em caso de necessidade, batizar e oficializar o último sacramento. Esses substitutos provavelmente se diferenciavam dos demais, embora não tenhamos condições de avaliar em que medida eles também não vivenciavam a tensão da “dualidade cultural” (...) Os Principais eram figuras chaves nos aldeamentos. Eles eram canais através dos quais os missionários realizavam suas decisões, inclusive a aplicação de castigos ordinários: “... e geralmente tudo o que houvemos de fazer, se forem coisas de momento, convém que não o façamos imediatamente por nós, senão pelos Principais de sua nação, os quais com isto se satisfazem, e nos acrescentamos respeito e autoridade” (Vieira apud Leite, 1943: 119) (SILVA, 1993, p. 8).

Retomar esse suposto parentesco entre as funções desempenhadas pelo Capitão dos Índios Chico Barros e pelo mártir cristão Francisco Barros deixa incógnitas sobre uma noção de identidade étnica sobre o território. Quero, contudo, reforçar o autorreconhecimento étnico a uma ancestralidade indígena, presente de forma simultânea à pertença à terra, entre boa parte das famílias que têm, na simbologia dessa memória e de suas raízes nos cajueiros, recordações de momentos coletivos que reforçam historicamente as suas lutas.