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4. HISTÓRIA DA LUTA PELA TERRA NO TERRITÓRIO DA LIBERTAÇÃO

4.4 NO INFERNO NÃO TEM TERRA

Algumas pessoas que moravam na terra foram convocadas para uma “missa” que ocorreu no início do ano de 1987 na comunidade de Jardim. Lá, o padre explicou sobre a venda de todas as propriedades e fez o pedido para que as famílias desocupassem as terras. Sobre o caso, dona Maria Bia fez o seguinte relato:

Nós tinha um padre, que era um padre muito ruim para o povo dessa comunidade, um dia ele mandou chamar os morador, porque ele queria ter uma conversa, e a gente foi, quando chegou ele disse pra todos que estavam lá na reunião, que queria que o pessoal desocupasse a terra, qual é a terra? Essa que vocês vivem! E essa terra é sua? É minha, pode desocupar. Ai um morador aqui da Barbosa perguntou: Padre e nós vamos embora pra onde? Ele disse: Pro inferno! E disseram: mas no inferno não tem terra. Pois é pra ir pra lá. Ai quando nós chegamos, nós nos reunimos e dissemos: No inferno não tem terra, e a nossa terra é essa, e por isso vamos lutar por ela. Aí começamos a luta, foi uma luta muito pesada, onde tombou três irmãos nossos, mas nós não deixamos de lutar. (Depoimento de Dona Bia no documentário Canções de Libertação°16 – 2014, grifo meu).

A luta citada por Dona Bia se estendeu por vários meses. Nos relatos, surgiram as figuras dos pistoleiros montados a cavalos, que percorriam o ambiente e ameaçavam os moradores. As articulações já existentes entre as famílias da terra com a CPT através das CEBs se fortaleciam, de sorte que, ao mesmo tempo em que as ameaças e as afrontas às famílias ocorriam, reuniões e articulações internas eram realizadas. Entre as práticas das comunidades, estavam os mutirões, os quais estabeleciam trocas de dias de trabalho dentro das relações de amizade e compadrio. Diante das ameaças, estas relações se fortaleciam também como forma de resistência e proteção aos trabalhadores, dando a esses mutirões o nome de batalhões. Como a maioria das ameaças ocorriam nos campos de trabalho, os homens se reuníam para, juntos, irem trabalhar nos roçados um dos outros. Em uma dessas ocasiões, um mutirão de homens se reuniu pela manhã na comunidade da Barbosa para juntos irem fazer a limpeza de um campo para o plantio de uma roça de mandioca coletiva próximo ao povoado de Patos. Quando estavam todos lá trabalhando, foram surpreendidos por jagunços armados que chegaram atirando, e dentre os feridos a bala estava o Francisco Araújo Barros. Relatos contam que, ferido e tentando fugir, foi capturado e degolado com a foice com a qual trabalhava. Muitos anos depois, o assassino assumiu ter degolado Francisco Barros porque, caso ele sobrevivesse ao tiro, poderia identificá-lo, e ainda confessou que agiu a mando do Padre Aristide Andrade. Nos depoimentos

do Padre Aristide à justiça, ainda não julgado, ele afirma que contratou os seguranças para amedrontar os trabalhadores, e não matá-los. Tal fato ocorreu por conta da tentativa de vender a terra para a empresa “Ducoco”, que determinou, dentre outras exigências, que a terra estivesse totalmente desocupada.

Ocorre que, após esse acontecimento, houve uma grande mobilização das comunidades em revolta ao ocorrido com o Francisco Barros. A pressão da “Ducoco” sobre o território foi parcialmente inundada pela comoção que se deu em torno da morte de Francisco Barros. A ampla atuação da CPT reverberou nas muitas outras comunidades que estavam passando por processos de conflitos semelhantes em seus territórios. Dona Chiquinha discorre um pouco sobre essa identidade que se forjava no território, articulação que agregava muita gente em prol do Bem Viver sobre um grande espaço:

Fran - Foi muita gente unida no tempo? Eles falam muito o nome de Francisco Barros e do Manoel Veríssimo.

Dona Chiquinha - No dia que mataram o Manoel Veríssimo17 lá (Itapipoca), nós

fomos daqui pra lá tudin de pés, de pés... andando. Quando chegamos lá o enterro já tinha feito, já tinham feito o enterro. Não abalsemaram, mas nós fomos tudim, um bando de gente, era gente a cavalo, levando os que fosse enfraquecendo, tudim de pés, para o velório do Manoel Veríssimo. Fomos... e no dia do sétimo dia, no dia da missa dele, nós fomos de novo. Era, rapaz... nós lutava demais... estou dizendo que as unhas da gente caía. (Dona Chiquinha – 15.10.2018).

Houve a articulação entre as muitas comunidades eclesiais de base em um território bem mais amplo, que incluía povoados de Amontada, Itapipoca, Trairi, Paraipaba, Uruburetama, Tururu, Umirim, Sobral, Acaraú, Santana do Acaraú e Irauçuba, todos passando por levantes de resistência semelhantes, e que vieram em marcha à Itarema quando souberam do assassinado de Francisco Araújo Barros. Maria Ivaniza nos apresenta o seguinte depoimento: Tem um outro material, outras coisas guardadas ali (Ivaniza foi buscar mais arquivo e fotografias), essa aqui é a viúva do Francisco Araújo Barros, e esse aqui é o Padre que celebrou a missa, a missa de sétimo dia, celebrando a vida e morte de Francisco Araújo Barros, ele morreu na Luta pela Terra no dia 12 de agosto de 1987, mais de cinco mil pessoas de todo o Ceará participaram

da missa celebrada em Itarema, a missa foi feita na cidade de Itarema

(mostrando as fotos) até a igreja, antigamente como era Itarema, esse aqui é o Tio Louvado, irmão da mamãe, que era marcado também para morrer, ele que fez a leitura na missa, nós estávamos lá, quem cantou os hinos foi eu, aguentando... morrendo de chorar, mas cantava... o hino era aquele: Vamos juntos povo unido, porque a nossa missão, de lutar pelos direitos... (Maria Ivaniza em 14.07.2018).

17 Manoel Veríssimo, assim como Francisco Barros, surge nas narrativas sobre a Luta pela Terra no território. Ele foi um camponês assassinado em 1986, em Trairi, enquanto reivindicava o direito à terra.

Figura 24 – A viúva Maria de Jesus e o Padre que celebrou a missa em homenagem à morte de Francisco Barros

Fonte: Acervo da escola

Na sequência desse fato, outros conflitos foram estabelecidos, sempre em torno da Luta pela Terra e da resistência dos povos locais em permanecer nas suas áreas de produção e sociabilidade. Além do assentamento Lagoa do Mineiro, há muitas outras áreas cuja imissão de posse também foram dadas ao povo local. Maria de Jesus, viúva de Francisco Barros, fez o seguinte relato a mim sobre os assentamentos:

Nós morávamos, aqui era uma ligação, um terreno só, era dos fazendeiros, uma terra só. Era herdeiro dos posseiros, Padre Aristides, Chico Andrade, era tudo uma família só lá. Éramos moradores e vizinhos, eram sete comunidades juntas que lutaram, que se organizou na luta pela terra, justamente uma era lá onde a gente morava, no tempo que foi desapropriado aqui, lá ainda ficou, era mais terra, sendo desapropriado só depois, tem uma parte que foi através de compra do IDACE, pois era de outro herdeiro, mas lá onde eu moro foi desapropriado, era do Padre Aristides, eram mais hectares, hoje onde eu moro é assentamento, Assentamento Melancias Canaã. (Maria de Jesus, viúva de Francisco Barros – 10.08.2018).

Em memória a esse ocorrido e ainda relembrando outros assassinatos ocorridos no território, realizam desde então a Caminhada dos Mártires, que ocorre sempre no dia 12 de agosto, data de morte de Francisco Barros. Após a partilha de um café da manhã na comunidade do Morro dos Patos, local onde se há um monumento em memória à luta, chamado de Cruzeiro dos Mártires, em frente ao qual ocorre a abertura do ato, em um intenso momento de memórias e místicas, com a presença de representações do MST e da CPT. As pessoas saem em passeata, entoando os cânticos que falam da luta, recontam as memórias e são reproduzidos num carro

de som. O cortejo faz uma parada exatamente no ponto do assassinato de Francisco Barros, referenciando-o, e seguem até a comunidade da Barbosa, seis quilômetros de distância, local onde há o outro Cruzeiro dos Mártires e onde fazem a partilha de um almoço. No ano de 2018, a refeição foi servida no pátio da Escola do Campo de Ensino Médio Francisco Araújo Barros.

Figura 25 – 17ª Caminhada dos Mártires - 12 de agosto de 2018 (à direita encontra-se o local onde assassinaram Francisco Barros)

Fonte: Acervo do autor

Figura 26 – Cruzeiro dos Mártires – Barbosa Fonte: Acervo do autor

Figura 26 – Cruzeiro dos Mártires – Morro dos Patos Fonte: Acervo do Autor

Essas mobilizações em torno da resistência às investidas da Ducoco tiveram distintos desfechos no território. A empresa se instalou em uma boa parte do território, expropriando um grande número de famílias. Nos relatos sobre o período da luta, surgem indícios para compreendermos as diferenciações, fronteiras étnicas, presentes no contexto político local, principalmente sobre as questões de afirmação étnica. As terras hoje tomadas pelos monocultivos de coqueiros eram ocupadas por muitas famílias Tremembé, que, devido às circunstâncias e muitas perseguições, foram obrigadas a desocupar as áreas. A educadora Lucinha faz o seguinte comentário:

As famílias aqui todas são, na época da conquista da luta, todas as comunidades se somaram aqui para lutar juntas, os índios lutavam junto com a gente, porque muitas das nossas famílias são de lá, moram lá, só que lá aconteceu a demarcação indígena pela FUNAI e aqui a desapropriação para fins de reforma agrária pelo INCRA. (Lucinha – 12.07.2018).

Parte dessas famílias ficaram concentradas nos povoados da Varjota e da Tapera, e, apesar de haver uma tentativa de dar o nome de Vila do Coco ao lugar, continua sendo a Tapera dos Tremembé. No local, também residem boa parte dos empregados da empresa, indígenas Tremembé. Na Marcha dos Tremembé de setembro de 2018, em uma das falas foi relatada a

demissão de mais cem funcionários da empresa, dentre os quais uma grande maioria eram indígenas Tremembé residentes na Tapera. Esse fato nos remete a uma dinâmica parecida com a lógica colonial: aproveitam-se dos povos locais, expropriam seus territórios, para, em seguida, inserir seus habitantes como mão de obra em regime de servidão nos monocultivos para servir aos interesses dos avanços mercantilistas.