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CAPÍTULO 1 O ENGROSSAMENTO COMO DOUTRINA

1.1. A ANÁLISE DE GRACIANO NA DOUTRINA DO ENGROSSAMENTO

1.1.1. O CAPITAL: A VISÃO DE GRACIANO

Graciano se apresenta como autor da Doutrina com o pseudônimo de Dr. Guedes Júnior, ex-deputado federal. No Prefácio, a apresentação é feita pelo próprio Graciano como o fictício senador Melício de Seixas, atuando como autenticador da obra, e que exalta a doutrina do engrossamento como o caminho para se levar a República à ordem e ao desenvolvimento. Ele afirma que a “obra (...) condensa o sentimento vitorioso da sociedade moderna”, louvando a eficácia da doutrina, acrescentando que:

É tal convicção de minhas ideias sobre as vantagens da doutrina engrossatória que, se tivesse a suprema honra de dirigir qualquer dos estados da república, por delegação espontânea de meus concidadãos, não teria a

menor dúvida em fazer adotar o importante trabalho na instrução pública, iluminando o espírito da mocidade das escolas com o faixo brilhante

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Na Dedicatória, deixa claro que desejava oferecer o livro a um personagem específico de sua época, não identificado no texto, mas, “na cruel necessidade de não poder cumprir os votos mais íntimos do seu coração, recorrendo ao nome augusto que lhe não é dado publicar” (NEVES, 1999, p.26). Assim, consagra sua obra ao Congresso Federal, destino da mocidade que o autor tem a “ambição patriótica” de formar nas práticas engrossatórias. Fica evidente a intenção de que o texto humorístico se reverta de um caráter crítico ao sistema político.

Na Advertência, declara que o exercício do engrossamento é aplicável a outras ocupações, mas que no livro se ocuparia do engrossamento político. Sua ironia fica caracterizada quando afirma:

(...) não temos a intenção de preconizar os nossos méritos profissionais, com vistas numa secreta candidatura. E desde já declaramos que não somos

candidates, salvo se a Pátria (a nossa, a de nós outros, os engrossadores políticos) periclitar por tal maneira, que os nossos amigos e correligionários julguem indispensável que devemos levar conosco ao seio da representação nacional um germe vivaz de disciplina e de obediência ao prestígio da Autoridade. (NEVES, 1999, p.28-9, grifo

nosso).

Graciano termina as iniciais do livro, partindo para o primeiro capítulo, a “Introdução Fundamental”, parte primordial do livro para o que pretendemos analisar aqui, na qual encontraremos as bases da sua definição de capital, ordem e engrossamento. Vejamos como ele desenvolveu seu raciocínio para chegar à Doutrina.

No desenvolvimento do primeiro capítulo, Graciano afirma que não foram sentimentos como o de amor ao próximo que fomentaram a convivência social dos homens quando ainda eram coletores de alimentos e andavam vagueando de lugar pra lugar. O estado de natureza em que viviam, com suas dificuldades e lutas, os induziu à busca pela satisfação pessoal percebida como algo mais fácil de ser conseguida quando se vive em grupo, para defesa contra o inimigo e busca de mantimentos. O agrupamento em tribos criou certa disciplina social, embora ainda fortemente caracterizada pela obediência ao mais forte, pela submissão à força.

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Ainda assim, as tribos se ocupavam de lutas sem fim pela disputa de territórios abundantes de alimentos e pela captura de mulheres. A fixação e adensamento populacional só se deram quando condições positivas permitiram algumas experiências pastoris e agrícolas. A guerra foi dos primeiros fatores favorecedores da associação humana, e a consecução de reservas alimentares permitiu a fixação e crescimento das sociedades.

À medida que a existência humana foi facilitada pelo acúmulo de capital (aqui representado pelas reservas alimentares), suas lutas foram se atenuando e a obtenção de propriedades fez do homem um ser mais ordeiro, metódico, abrandando-se a selvageria de seus impulsos, tornando-se refratário às revoluções. Na visão do autor, o capital passa a ser fator mantenedor da ordem e progresso, avalizando o poder do Estado. Para Graciano:

(...) as classes capitalistas dos países beligerantes opõem toda a sua grande força contra um acontecimento que lhes pode trazer calamidades financeiras. A influência extraordinária dos interesses comerciais vai dia a dia apagando

no espírito humano a ideia de Pátria e substituindo-a pela concepção

vitoriosa, moderna e elegante, do Cosmopolitismo. (NEVES, 1999, p. 22-3, grifo nosso).

O surgimento desse sentimento cosmopolita começa a definir conceitos do que é bom. E o que é bom é catalisado, apoiado e avalizado pelo capital. Dessa forma, na exposição de Graciano, a ideia de pátria sofre um deslocamento e se atrela à ideia de capital. Se pátria era a tribo nômade da qual o indivíduo fazia parte e depois dizia respeito também ao solo ocupado, às plantações e rebanhos, esse deslocamento faz com que pátria passe a ser o lugar onde o homem tem, ou para onde remete seus recursos econômicos, que definem sua segurança e conforto. A definição de capital aqui o torna um ente independente, sinônimo de recursos econômicos, desligados já do trabalho produtivo direto. É como uma entidade que tem vontade própria e capacidade de domínio como se verá no desenrolar da análise.

O texto de Graciano possui certas similaridades e certas discrepâncias com as definições de Marx e de Comte. Para Marx (2007), por exemplo, capital é sinônimo de burguesia, de propriedade que explora o trabalho assalariado, uma força social, um produto

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coletivo, um poder social capaz de ser monopolizado, sempre definido negativamente. Já Comte (1978a) define capital como algo que deve ser concentrado nas mãos dos mais preparados, desejado para o desenvolvimento e o progresso, fonte de comando e governo, capaz de exercer uma generosa intervenção nos principais conflitos sociais. Na

Doutrina, capital é identificado como formador do crédito público e das energias morais

de uma nação, esteio que ampara os governos constituídos, definidor da soberania de qualquer instituição política, instituição que formou as sociedades, fator mais decisivo para a ordem e o progresso, pré-requisito para todas as transformações políticas, base para as descobertas científicas. Ao contrário de Marx, que sempre condena o capital burguês como fonte de todos os males e base para a luta de classes, e de Comte que aprova a concentração do capital e joga para o futuro as correções quanto aos aspectos negativos que ainda se via no uso do mesmo, Graciano denuncia em sua crítica o efeito danoso do capital, como veremos em algumas passagens, de forma similar à crítica de Marx, mas ironicamente descreve a ação do capital como se estivesse positivando o conceito, em um caminho comteano. É justamente da ação do capital no estabelecimento da ordem que nasce a estratégia do engrossamento, irônica proposta para a solução dos problemas da convivência política.