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1. Introdução

3.4 Capitalismo Enraizado

Nenhum arranjo histórico é permanente, apesar de que observado isoladamente em determinado momento eles aparentam serem permanentes ou sempre terem existido daquela forma. A arquitetura internacional financeira – coleção de normas e regras que estruturam as interações entre o mercados financeiros internacionais e governos – sofreu várias mudanças substanciais ao longo do tempo (ABDELAL e RUGGIE, 2009, p. 157). Portanto, a explicação para a emergência da economia offshore deve considerar a situação institucional, política e histórica do seu tempo (PALAN, 2003, p. 70).

Conforme Palan (2003, p. 76), a evolução histórica do capitalismo, leis, formas de Estado e soberania produziu a ideia de que a soberania estatal se exerce sobre um território que é limitado por fronteiras. É uma narrativa que informa sobre como pensar sobre o Estado, nação e sociedade. Entretanto, a existência de um mercado global produz relações que atravessam fronteiras dos Estados, de forma que podem estar submetidas ao alcance da jurisdição de mais de um Estado. Assim, conclui Palan (PALAN, 2003), existe uma lacuna entre o discurso do poder estatal e a realidade de dar efeito a esse discurso em uma sociedade composta de vários Estados e jurisdições.

Ruggie (1982), escrevendo no início do processo de neoliberalização, em 1982, diferenciava a ordem liberal do século XIX da ordem posterior à 2ª Guerra Mundial, de forma

que o liberalismo que foi criado após a Guerra foi, portanto, um liberalismo diferente da versão anterior. Em sua análise dos regimes financeiro e comercial, Ruggie (1982) propôs a existência do que ele denominou de Liberalismo Enraizado.

Conforme Ruggie (1982), a comparação entre a ordem internacional liberal do século XIX e o período do pós-guerra demonstra uma diferença fundamental entre os dois momentos: no século XIX prevalecia o liberalismo “laissez-faire”, enquanto no imediato pós-guerra, a ordem econômica internacional pode ser denominada de capitalismo enraizado (RUGGIE, 1982, p. 382).

Sua tese parte da teoria de Karl Polanyi, autor que em A Grande Transformação, diferenciou a existência de ordens econômicas enraizadas e desenraizadas. Durante a história, a ordem econômica sempre refletiu os princípios e valores das sociedades em que existia. Apenas nos meados do século XIX se formou uma ordem econômica liberal, dissociada da sociedade, com seus próprios princípios e lógica, e que desenraizou os mercados nacionais e, em sequência, os mercados globais (ABDELAL e RUGGIE, 2009, p. 151-152). Assim, a regra era a existência de ordens econômicas enraizadas e legitimadas na ordem social, até a ordem econômica liberal, propositadamente isolada da ordem social, e caracterizada pelos regimes do livre comércio e do padrão-ouro, que aflorou na metade final do século XIX.

Citando também Charles Kindleberger, em The Rise of Free Trade in Western Europe, Ruggie (1982) expõe que o livre comércio se origina da destruição do sistema anterior das propriedades senhoriais e guildas e do interesse de certos grupos dominantes (como os mercadores, donos de navios e banqueiros, na Holanda, setor manufatureiro e intelectuais da Escola de Manchester, no Grã-Bretanha, e industriais importadores na França), e da expulsão do Estado da arena econômica (RUGGIE, 1982, p. 386). O papel do Estado passou a ser de instituir e proteger o mercado autorregulado, uma transformação que aconteceu inicialmente na Grã-Bretanha, mas que se espalhou, no final do século XIX, para os outros países da Europa ocidental e para os EUA. De forma que no início do século XX, a hegemonia britânica estava ameaçada pela ascensão dos EUA e da Alemanha.

A primeira era da globalização, de 1870 a 1914, foi construída baseada em uma concepção liberal, em que se acreditava que restringir a liberdade do capital não era legítimo, de modo que o capital deveria ser livre para fluir de uma país para o outro (ABDELAL e RUGGIE, 2009). No sistema internacional liberal, a coordenação econômica entre os estados era mínima e baseada no voluntarismo. A Crise de 1929 e a Segunda Guerra interromperam esse processo. Para Polanyi (2012) o conflito entre o mercado autorregulado – uma utopia – e

a realidade das exigências da vida em sociedade resultaram na destruição daquela sociedade liberal que se formara no século XIX. O liberalismo foi interrompido pela primeira guerra mundial, ascensão política das classes e partidos trabalhadores, pelo nacionalismo econômico, pela crise de 1929, fascismo e Segunda Guerra. A tentativa de recriar o liberalismo nos moldes do pré-guerra falhou durante as décadas de 1920 e 1930. Os períodos de guerra aumentaram a participação e interferência do Estado na economia. O entreguerras foi marcado por uma contradição entre o papel mediador do Estado entre a economia e a sociedade – caracterizado por muito mais intervenção e pelo nacionalismo econômico – e o livre mercado internacional aberto (RUGGIE, 1982, p. 392).

No pós-guerra a visão modificou-se. Passou a se considerar que era necessário evitar o efeito desestabilizador dos fluxos de capital especulativo e que os governos deveriam ter autonomia em relação aos mercados financeiros internacionais de forma a perseguir objetivos estabilizadores internos, como criar um estado de bem-estar social e regras que protegessem os trabalhadores. O restabelecimento do sistema internacional liberal, no pós-guerra, se baseou na soberania dos Estados nacionais gerirem seu consenso social doméstico, mas dentro de uma esfera de regulação institucional que tinha por objetivo facilitar a manutenção do liberalismo, denominado por Ruggie de “Embedded liberalism” (PICCIOTTO, 1999, p. 65). O estatuto do FMI (1945), o Tratado de Roma (1957) e o Código de Liberalização de Movimento de Capitais da OCDE (1961) previam o direito dos membros de regularem o movimento de capital (ABDELAL e RUGGIE, 2009, p. 157).

A economia pós-segunda guerra foi uma busca da reconciliação entre mercado e sociedade, pois a conclusão a que chegaram os líderes dos países capitalistas vencedores da Segunda Guerra era de que o desenraizamento do mercado era politicamente insustentável e fora rejeitado pela sociedade, tanto à esquerda quanto à direita (ABDELAL e RUGGIE, 2009). Desde as negociações entre os EUA e o Reino Unido, ainda durante a Segunda-Guerra, o campo capitalista queria evitar um retorno à situação que levara à crise do liberalismo no entreguerras. A solução adotada foi de que o Estado saído do pós-guerra passasse a assumir uma posição de maior responsabilidade pela estabilidade econômica e pelo bem-estar social de sua população. Essa mudança na relação Estado-sociedade foi aceita por todos os estratos da hierarquia social, desde os trabalhadores e seus partidos políticos até mesmo os demais grupos sociais, com a possível exceção, considera Ruggie (1982, p. 388), dos círculos financeiros ortodoxos.

Para Ruggie (1982), a autoridade internacional reflete uma fusão de poder e de propósito social legitimo. Nesse ponto, ele contesta tanto os liberais, que consideram que o livre fluxo de

comércio e o capital só ocorre quando há uma aderência a uma ordem econômica internacional aberta, quanto os realistas e marxistas, os quais consideram que a transnacionalização é um reflexo da existência da hegemonia (RUGGIE, 1982, p. 383).

O liberalismo enraizado criado no pós-guerra buscava uma forma de compromisso, preservando a internacionalização da economia e a estabilidade doméstica, por meio de um acordo multilateral que permitia o intervencionismo doméstico (RUGGIE, 1982, p. 393). O objetivo era garantir o emprego, o Estado de bem-estar social e a estabilidade econômica e evitar a ascensão do unilateralismo, ao mesmo tempo em que continha os movimentos e partidos socialistas, principalmente na Europa. Esse resultado foi possível após Bretton Woods e durou por algumas décadas, até que foi substituído por um retorno a ideologia do antigo liberalismo e ao capitalismo desenraizado. As políticas de Thatcher e Reagan representaram a mudança de paradigma. O paradigma do capitalismo enraizado foi substituído pelo paradigma neoliberal.