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SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES FINAIS

1.5 Capitania do Rio Grande: prospecções

No século XVI a ocupação colonial das terras que viriam a formar a Capitania do Rio Grande confunde-se com a própria conquista da nova possessão de Portugal no ultramar. O imaginário dos europeus acerca dessa colônia, nos primeiros tempos do Quinhentos, foi marcado fortemente pela idéia de que as novas terras se constituiriam enquanto um paraíso na terra, um novo Jardim do Éden, como encontra-se grafado na narrativa epistolar de Caminha47.

O paraíso nos trópicos assinalado por Caminha não muito tarde estaria povoando o imaginário europeu com outros sentidos: o hábito nativo de andar nu, por exemplo, despertou os olhares dos viajantes do Velho Mundo, que viam na intimidade um grande tabu. A partir do fim do século XVI as crônicas escritas sobre a América Portuguesa qualificariam os indígenas como luxuriosos e pecadores, até mesmo por manterem relacionamentos intra- familiares – incestuosos, para a moral ocidental. Alie-se a aversão às práticas antropofágicas dos índios do litoral, rotulados como verdadeiros canibais e seres sedentos de sangue48.

A consciência cristã parecia abalada com as notícias chegadas à Europa sobre os costumes dos nativos, que não mais eram vistos em inocência e simplicidade, mas, como as formas mais grotescas possíveis de humanidade, dada sua predisposição natural à luxúria e ao canibalismo. O paraíso tropical mais parecia, agora, um inferno verde e essa visão religiosa que oscilava entre o bem e o mal caracterizaria os escritos sobre os povos indígenas nos séculos posteriores.49

A historiadora Laura de Mello e Souza demonstrou, a propósito, em seu estudo sobre as práticas de feitiçaria e religiosidade popular coloniais na América Portuguesa, como os relatos europeus fariam com que o imaginário do Velho Mundo oscilasse, nos primeiros séculos da colonização, entre considerar as novas terras cheias de figurações do Éden ou do Inferno.

Para a autora,

A infernalização da colônia e sua inserção no conjunto dos mitos edênicos elaborados pelos europeus caminharam juntas. Céu e Inferno se alternavam no horizonte do colonizador, passando paulatinamente a integrar, também o universo dos colonos e dando ainda espaço para que, entre eles, se imiscuísse o Purgatório. Durante todo o processo de colonização, desenvolveu-se pois uma justificação ideológica ancorada na Fé e na sua negação, utilizando e reelaborando as imagens do Céu, do Inferno e do Purgatório.50

Daí a razão para que, com a complexificação do sistema colonial nas fímbrias das terras portuguesas na América, índios, negros e, posteriormente, colonos tenham sido identificados com imagens edênicas ou demoníacas oriundas dos discursos dos viajantes e exploradores, mediados pelas idéias religiosas da época. Laura de Mello e Souza nos adverte, ainda, para o fato de que tais construções imagéticas não devem ser dissociadas do contexto global do fim da Idade Média e início dos tempos modernos, caracterizado pelo abandono – na Europa – do trabalho servil (de base feudal) e adoção do trabalho assalariado, enquanto que nas colônias se alastrava o trabalho escravo. Para ela, “(...) a visão paradisíaca foi, neste momento histórico, instrumentalizada pelas camadas dirigentes, convertendo-se em chamariz de gente e em elemento constitutivo da ideologia colonizadora. Povoar a colônia significava, também, purgar a metrópole: não apenas dos elementos humanos ‘doentes’ mas ainda das formas de exploração compulsória do trabalho(...)”51.

Os espaços que posteriormente comporiam a Capitania do Rio Grande, desde as primeiras tentativas de exploração, demonstraram refletir uma natureza e uma humanidade hostil e selvagem, pelo menos, para os lusos52. Evidência disso é o insucesso da expedição exploradora que saiu de Lisboa em 1501, que tinha o destino de adentrar pelas terras que Cabral comunicara a D. Manuel em sua carta no ano anterior. Contando com a participação de André Gonçalves e Gaspar de Lemos e do cosmógrafo italiano Américo Vespúcio, as três caravelas aportaram a 5º ao sul da Linha do Equador, num ponto que foi batizado de Cabo de São Roque. Aí observaram a presença de nativos e tomaram “posse do país em nome deste sereníssimo Rei de Portugal”.53 O ritual de tomada de posse, que reafirmava a superioridade do Ocidente e sua primazia com relação ao domínio das novas terras, foi marcado pela aposição de um marco de pedra lioz54 – rocha branca e calcária – no Cabo de São Roque. Tomada de posse que seguia o ritual padrão55 de espanhóis e portugueses e ratificava o domínio da Coroa de Portugal sobre a Terra de Vera Cruz.

A primeira reação de Américo Vespúcio sobre os nativos encontrados foi de receio frente a sua atitude de não se apresentarem aos europeus, como se depreende do trecho de uma de suas cartas, narrando os acontecimentos do dia 08 de agosto de 1501:

(...) e porque tínhamos grande necessidade de água e lenha, nos resolvemos, no dia seguinte, a tornar à terra para fazermos o nosso provimento. Estando, pois ali, vimos alguma gente no cume de um monte, a qual olhava para nós sem ousar descer abaixo. Estavam todos nus, e eram da mesma cor e feição dos anteriores [ anteriormente vistos ], e por mais diligências que fizemos para que descessem e nos viessem falar, nunca os podemos resolver a isso, não se querendo fiar de nós pelo que, vendo a sua obstinação, e sendo já tarde, tornamos para os navios, deixando-lhes em terra muitos cascavéis, espelhos e outras quinquilharias. Assim que

nos afastamos pelo mar dentro desceram do monte, pelo que lhes tínhamos deixado, ficando muito maravilhados de tudo o que viam; e assim neste dia não nos provemos senão de água.56 A apreensão não duraria muito. Face ao maravilhamento dos naturais com os presentes deixados na terra, e atendendo a acenos destes, que se encontravam reunidos no dia seguinte (09 de agosto) próximos à praia, dois dos marujos da expedição decidiram ir ao seu encontro, levando fazendas e em busca de encontrar riquezas, especiarias ou drogas. Quatro dias depois, para o terror dos que estavam a bordo, um dos marinheiros que havia ido à terra para averiguar a situação dos companheiros foi cercado por várias índias em um círculo e morto com uma bordoada, sendo, logo em seguida, despedaçado, assado e comido. A expedição singraria dali em direção a outros pontos do território, nomeando-os, também, em função do nome do santo do dia, porém, com a lembrança do mau selvagem57 e de um inferno verde na memória.

Do relato desta expedição a el-rei surgiria a primeira representação cartográfica conhecida do Novo Mundo com uma referência a um ponto que, mais tarde, viria a compor o território da Capitania do Rio Grande. Trata-se do planisfério português, anônimo, datado de 1502 e conhecido como “Mapa de Cantino”. Atualmente conservado na Biblioteca de Modena, na Itália, essa representação do globo está dotada de muita importância para a compreensão da primeira fase de ocidentalização promovida pela Península Ibérica. Isto porque, conforme entende Luís Jorge Semedo de Matos, esse mapa “reflecte o conhecimento geográfico português, num dos seus momentos mais decisivos, pouco tempo depois das viagens de Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral e João da Nova”58, ao que acrescentaríamos a expedição de 1501. O fragmento que apresentamos abaixo traz, no alto e à esquerda, a representação das ilhas de domínio castelhano, vizinhas ao Oceanus occidentalis, e, abaixo, os contornos do que seria, decorridos alguns anos, chamado de Brasil. À direita encontra-se a representação da África e da Europa. Na parte que correspondia à Terra de Santa Cruz, podemos perceber o destaque para o Cabo de São Roque (no mapa, São Jorge) demarcado por uma bandeira, certamente, indicando a presença do marco de pedra. No detalhe ainda aparecem as sinalações do Rio São Francisco, da Bahia de Todos os Santos e de Porto Seguro, este último, também demarcado por uma bandeira indicativa da posse lusitana. O mapa abaixo (Figura 03) e o seu detalhe (Figura 04) indicam o que acabamos de exprimir:

Figura 03

Fragment du planisphère envoyé de Lisbonne à Hercule d’Este Duc de Ferrare avant le 19 novembre 1502 par Alberto Cantino - Biblioteca Estense à Modène, Itália

Figura 04

Detalhe do mapa anterior, de 1502, com ênfase no Cabo de São Jorge (1), Rio de São Francisco (2), Baía de Todos os Santos (3) e Porto Seguro (4)

(1)

(2) (3) (4)

Nos anos seguintes à aposição do marco de pedra no Cabo de São Roque a Terra de Santa Cruz presenciou mais uma expedição exploradora (1503) e duas expedições guarda- costas (1516 e 1526), enquanto a costa foi pontilhada por feitorias59, responsáveis por atividades que não iam além da comercialização dos produtos naturais, sobretudo, o escambo do pau-brasil com os nativos. Esse primeiro contato dos europeus com a possibilidade de lucros no Novo Mundo, ligado a um movimento mais amplo de harmonia da colonização com os mecanismos da exploração monopolista no ultramar, foi puramente “predatório”, nas palavras de Fernando Novais60. Trata-se de um momento histórico em que, conforme a asserção do historiador Harold B. Johnson, os lusos aplicaram um dos padrões básicos de império desenvolvidos no Atlântico Sul: o de comércio sem colonização, posto em prática anteriormente ao longo do litoral africano, que tem seu modelo inspirado no sistema de feitorias realizado no Mediterrâneo no fim do Medievo61. Isto se deve ao fato da metrópole lusitana, nos primeiros trinta anos do século XVI, estar colhendo poderosos lucros no comércio com as especiarias orientais e na exploração do litoral africano – sobretudo do seu ouro62.

O enfraquecimento desse comércio no Oriente e no litoral africano, mais a constante pressão francesa63 no Novo Mundo teve como resultado a premência de se conquistar efetivamente as terras do além-mar. Dessa vez, não adotando o padrão desenvolvido na costa africana, mas, pondo em prática a experiência vivida em ilhas do Atlântico como Cabo Verde, Madeira e mesmo nos Açores: o entendimento de que as terras encontradas por Cabral eram juridicamente consideradas extensões do reino, devendo ser concedidas a fidalgos pelo rei – tal como acontecia na península – e colonizadas por imigrantes portugueses através de um sistema de colonização herdado da Reconquista medieval64. Esse entendimento, na prática, correspondeu à implantação do conhecido sistema de Capitanias Hereditárias65.

Esse sistema consistiu na repartição do vasto território colonial em quinze capitanias, que foram, através de doação real, concedidas a representantes da pequena nobreza – um grupo de doze capitães-mores, desde aqueles soldados com experiência no Oriente, como Duarte Coelho, até humanistas como João de Barros –, com a finalidade de serem colonizadas por intermédio do investimento privado. Os territórios das capitanias eram representados a partir de linhas demarcatórias paralelas que tinham como limite leste o Atlântico e oeste a Linha (imaginária) de Tordesilhas, como demonstra o mapa elaborado pelo historiador Harold B. Johnson (Figura 05).

Figura 05

As capitanias do Brasil no século XVI

A observação desse mapa nos mostra que o quinhão que tocou ao já citado João de Barros – Feitor da Casa da Mina e da Índia – e a Aires da Cunha66 constituía-se enquanto um dos maiores lotes do ponto de vista territorial: a Capitania do Rio Grande, com cem léguas de

extensão, cujo topônimo remetia ao nome do rio que desembocava no Atlântico, o Potengi. Seu limite sul era a Baía da Traição, divisa com a Capitania de Itamaracá, estendendo-se rumo a norte até o rio Jaguaribe (hoje, no Ceará), conforme afirmam os historiadores Luís Eduardo Brandão Suassuna e Marlene da Silva Mariz67. Ainda é ponto de controvérsias, na historiografia norte-rio-grandense, o limite norte da Capitania do Rio Grande, sendo unânime a afirmação de sua extensão, rumo a oeste, por territórios que hoje correspondem ao Ceará, Piauí e Maranhão68.

A historiografia clássica aponta, pelo menos, duas tentativas de colonização da Capitania do Rio Grande, financiadas, em parte, por el-rei. A primeira, de 1535, em que estiveram associados João de Barros e Aires da Cunha mais o também donatário Fernando Álvares. A expedição69 – comandada por Aires da Cunha e com a presença de dois filhos de João de Barros (Jerônimo e João de Barros) e de um delegado de confiança de Fernando Álvares – era formada de dez navios, com novecentos homens. Saindo de Pernambuco pela costa, logo depois do Cabo de São Roque foi dispersada por um temporal, indo os tripulantes parar em territórios que hoje correspondem ao Maranhão70. A segunda tentativa deu-se aproximadamente em 1555, encabeçada pelos dois filhos de João de Barros acima referidos, mas, também, malogrou em face da oposição dos Potiguara71.

As tentativas frustradas pela resistência dos nativos aliados aos franceses e a morte de João de Barros em 1570 concorreram para que a donataria fosse, após essa data, revertida para a Coroa, tornando-se, efetivamente, capitania real. A devolução da capitania a El-rei teve como recompensa para os herdeiros de João de Barros o recebimento de 150$000 de tença (pensão), por mercê real de 21 de junho de 1582, com direito de deixar em testamento até 30$000. A mercê, concedida por Filipe II de Espanha – naquele momento, rei de Portugal – foi dirigida ao filho Jerônimo de Barros. É provável que à concessão da tença corresponda a reversão definitiva das terras do Rio Grande.72 Isso explica o porquê de, no mapa das Capitanias Hereditárias confeccionado por Luís Teixeira – cuja produção deu-se entre as duas últimas décadas do século XVI73 – ainda figurar o nome de João de Barros, mesmo depois de sua morte (ver Figura 06).

Figura 06

O mapa de Luís Teixeira, longe de representar apenas a cartografia dos domínios lusitanos na América, ilustrada com riqueza de detalhes nos pontos até então conhecidos na costa, determinava à distante metrópole o imperativo da colonização das áreas ainda não ocidentalizadas pelo aparelho colonial português. O fato é que, quando da produção desse mapa, a Ibéria já era palco de mudanças na estrutura administrativa das duas coroas: por motivo de problemas de sucessão em Portugal, ambas as nações estavam sob o manto da dinastia espanhola dos Habsburgos, num período que durou de 1580 a 164074. Do outro lado do Atlântico, no antigo lote de terra doado a João de Barros, corsários franceses mantinham uma política de alianças com os Potiguara, mediante o escambo. Mercadorias trazidas da Europa eram constantemente trocadas por pau-brasil, essências vegetais, plantas medicinais, algodão, minérios, pedras preciosas, penas de pássaro, âmbar, peles de onça e animais como sagüis, macacos e papagaios, operação que se realizava nas desembocaduras dos rios Pititinga (Punaú), Ceará-Mirim, Pirangi (Porto dos Búzios) e Potengi e nas enseadas de Tabatinga e de Aratipicaba (Baía Formosa)75.

Potengi, Tabatinga e Aratipicaba eram espaços de longa convivência dos franceses, como demonstra o mapa concebido pelo cartógrafo normando Jacques de Vaulx, de Claye, datado de 1579. A carta, que foi elaborada em Dieppe, representa o atual litoral do Nordeste, estendendo-se do rio Real (Bahia) ao Maranhão. O litoral que corresponde, nos dias de hoje, ao Rio Grande do Norte, está circundado por uma meia esfera, tendo como limite norte a Baía de São Domingos (rio Paraíba) e sul o rio do Parcel (atual rio Acaraú, no Ceará). Nele estão representados desaguadouros de rios, montes, baixios e baías, com a respectiva indicação de qual produto embarcava para a França, por meio dos navios que aí aportavam.

Não somente os aspectos físicos emergem da representação de Jacques de Vaulx, mas, também, uma geografia da alteridade. Imagens de índios, junto a arvoredos e serras, preenchem os espaços vazios da costa76, inclusive servindo de baliza para a indicação de pontos de embarque/desembarque de naus francesas, como podemos observar na Figura 07. O cartógrafo aponta, pelo menos, a localização de três aldeias indígenas. Uma no litoral, chamada de Random, que Olavo de Medeiros Filho acredita tratar-se, dada a equivalência geográfica, da antiga aldeia seiscentista de Papari, habitada por índios Potiguara. As outras duas, Tarara Ouasou e Ouratiaume, situadas no interior da capitania, seriam povoadas por nativos Tarairiu77. Corroborando a tendência dualista, ocidental, de representar o nativo enquanto bom ou mau selvagem, a pena do cartógrafo não deixou de detalhar um momento antropofágico, que simboliza a primeira representação iconográfica, conhecida, dos índios que

habitavam o sertão da Capitania do Rio Grande78 (ver, nas Figuras 08 e 09, detalhes do mapa anterior com a imagem das aldeias e do canibalismo).

Figura 07

Partie de la Guyane et littoral du Brésil depuis la Guyane jusqu’au Rio real, de Jacques de Vaulx (1579) Seção Cartes et Plants, Biblioteca Nacional de Paris, Cód. Rés. Ge D 13871

Figura 08

Detalhe do mapa anterior com a representação das

aldeias Detalhe do mapa anterior com a representação do Figura 09 momento antropofágico

Não seria muita coincidência o fato de, ao lado da gravura do ritual antropofágico, aparecer um trecho escrito afirmando que dessa região seriam utilizados dez mil selvagens para desferir guerra aos portugueses, por serem estes nativos mais ousados que os do litoral79 – agressividade que seria um dos distintivos dos índios que habitavam o vasto interior do norte colonial nas representações de cronistas e missionários a partir do Quinhentos80. Essa agressividade dos nativos, aliada à pertinácia dos franceses, devia preocupar as autoridades reinóis na Ibéria. A existência do mapa de 1579, por outro lado, deixava bem claro que os franceses tinham conhecimento da costa e, quiçá, do interior, mantendo pacto com os grupos indígenas que habitavam esses dois espaços. Informou, a propósito, o frei Vicente do Salvador, que os franceses, além de tratar com os Potiguara, roubavam os navios que iam e vinham de Portugal, tomando-lhes os tripulantes e as fazendas, “vendendo-os aos gentios para que as comessem” 81.

A preocupação com a situação traçada no parágrafo anterior estimulou Filipe II, monarca das duas coroas ibéricas, a encaminhar expedientes82 ao Governador-Geral do Brasil, D. Francisco de Souza e ao capitão-mor de Pernambuco, para que fosse ao Rio Grande, lá construísse uma fortaleza e erguesse uma povoação83 este último, subsidiado pelo primeiro, a fim de que o domínio lusitano ficasse assegurado no norte colonial84. Para custear o empreendimento, o governador-geral colocou à disposição de Manuel de Mascarenhas Homem, capitão-mor de Pernambuco, o saldo dos dízimos reais, os direitos sobre a saída de açúcar, a sisa dos escravos vindos da África, doze mil cruzados tomados a uma nau da Índia que aportara na Bahia e todo o dinheiro recolhido do cofre dos defuntos e ausentes (quase nove contos de réis)85.

O germe da expedição de conquista ao Rio Grande, portanto, deu-se ainda na sede do governo-geral, na Bahia, nos fins de 1597, indo somar-se aos recursos humanos e bélicos da Capitania de Pernambuco e posteriormente da Paraíba, esta, governada por Feliciano Coelho de Carvalho. Na cidade de Filipéia de Nossa Senhora das Neves a força-tarefa foi dividida em duas unidades no avanço rumo ao norte. Uma esquadra dirigiu-se por mar, sob a chefia de Mascarenhas Homem, composta de catorze embarcações a vela e quatrocentos homens. Outra, por terra, formada por companhias de infantaria e cavalaria comandadas por Feliciano Coelho e composta de trezentos homens de espingarda, cinqüenta de cavalo, novecentos índios flecheiros e escravos originários da Guiné com o intuito de carregar as munições e apetrechos de guerra. Esta última, que partiu da Paraíba em 17 de dezembro de 1597, não duraria muitos dias de pé: a febre, dor no corpo, vômito e lesões na pele provocadas pela

Coelho a regressar. A companhia sob a direção de Jerônimo de Albuquerque, integrante da frente expedicionária que ia por terra, não retornou para a Paraíba e, em um porto intermediário86, seguiu em um caravelão com destino ao Rio Grande, juntando-se, dias depois, às forças de Mascarenhas Homem.

Estas veriam as dunas da antiga capitania de João de Barros na manhã do dia de Natal de 1597, quando ancoraram na barra do Rio Grande87. No dia seguinte, em terra firme, após tomarem posse da capitania, construíram uma trincheira com varas de mangue para proteção, temendo a investida dos Potiguara88. Obtido o refúgio no mangue cortado das proximidades e por ordem do general da conquista, Mascarenhas Homem, as tropas iniciaram a construção da fortaleza, cumprindo a determinação real, no dia 06 de janeiro de 1598. O início das obras foi principiado

na praia, em pau-a-pique, com varas, barreado com lama do mangue. Segundo o costume,