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Carácter diverso, flutuante e híbrido dos textos diarísticos

Alain Girard1, na sequência do pensamento de Georges Gusdorf, distingue o diário pessoal, intimista, no qual o olhar do escritor se vira para si mesmo, do diário externo, de carácter cronístico e testemunhal, que se vira para o exterior, para a vida social e intelectual da sociedade em que se insere. Os traços comuns de uma modalidade e de outra assentam na visão de uma obra que se compõe dia- a-dia, de fragmentos descontínuos, impossibilitando a imagem de uma obra concluída, aliás, aspecto comum a toda a escrita de fragmento que se compõe, descontinuamente e sob o princípio da casualidade, em obediência ao critério temporal e à decisão de o autor escrever, suspender ou terminar essa escrita. Assim, a liberdade temática gera a liberdade formal, desobrigando-se o diarista de organizar um texto com a estrutura típica da narrativa com intriga conducente a um desfecho. Contudo, apesar do carácter de descontinuidade, há traços e valores essenciais de permanência e que acusam uma atitude pessoal e constante do diarista em relação à circunstancialidade e ao mergulho na História contemporânea.

Observando a sua realidade particular inserida num colectivo histórico, o autor de diários cumpre o objectivo jornalístico de informar sobre a actualidade dos factos (querelas literárias, grupos de influência, projectos profissionais, cenas da vida social e política, crónicas de costumes, a par de breves narrativas de acontecimentos ou registos da vida privada como as deslocações, cenas da vida familiar, despesas, etc.), bem como de expor as reflexões que o testemunho do mundo exterior provocam na sua consciência e de acordo com o modo como se relaciona com ele e age sobre ele, no momento da enunciação. O carácter mais íntimo ou extrovertido varia consoante a personalidade e o propósito de cada autor, havendo casos em que se consegue delimitar, com grande precisão, se os

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diários publicados resultam de uma atitude predominantemente introspectiva e confessional, ou se, pelo contrário, evidenciam um propósito de se virarem para o exterior, para a montra dos acontecimentos diversos que mereceram o seu interesse, a necessária anotação e consequentes narração e reflexão.

Num autor como Vergílio Ferreira, a recusa da confidência e da revelação da intimidade é um propósito expresso desde o Diário Inédito1 até à publicação de Conta-corrente2, o que não impediu que detalhes pueris do seu quotidiano,

pensamentos em construção, estados psicológicos diversos e relações familiares tivessem constituído também matéria frequente. Mas o decoro, o controlo das emoções e das palavras, a estratégia da ironia3 para assegurar a reserva de uma esfera mais íntima, foram uma evidência da personalidade de um autor que, ao publicar, muita revisão dos escritos diarísticos – mesmo os posteriores – realizou,

1 «Évora, 30 de Junho de 1948 (quarta-feira). É a terceira ou quarta vez que tento o diário.

Suponho que desistirei ainda. Tudo é a repugnância de ver que o papel me lê. Se eu não tenho feito versos é porque optei sentar em cima de mim. A ironia, essa confissão irresponsável, é o único meio que tenho à mão de condescender em me observar. Enfim, pela terceira ou quarta vez tento um diário. É que os resíduos de mim e do dia-a-dia já me pesam». Vergílio Ferreira, Diário

Inédito – 1944-1949, (apresentação de Helder Godinho e edição de Fernanda Irene Fonseca),

Lisboa, Bertrand Editora, 2008, p. 81. Saliente-se que, embora cronologicamente o Diário Inédito se reporte a referências autobiográficas dos anos 40, a sua publicação é muito posterior à dos volumes de Conta-corrente, e ocorreu mais de dez anos após o falecimento do autor.

Registe-se, ainda, que, no primeiro volume de Conta-corrente, o autor revisita e transcreve entradas de diário encetadas, em Évora, em Novembro e Dezembro de 1967. Op. cit., pp. 239- 240.

2 «6 – Janeiro (quarta). Sim. Vou recomeçar. Nada a fazer, este escrito é-me sem remédio. Mas

na realidade é verdadeiramente um começo. Eliminar todas as referências ao banal quotidiano, reduzir-me estritamente ao que de si tem alguma significação. Possivelmente é o correntio e banal que tem maior interesse digestivo para uma leitura que prenda. Forma sensível do escoar do tempo, nessa banalidade nós sentimos que a vida se revive e se nos escoa e nela a marca mais perceptível do que há em nós de temporário e de finito. Mas de qualquer modo, irei tentar outra coisa. Reflexão, impressões do que de importante possa ter acontecido, ideias que valha a pena existirem. De toda a maneira, muita coisa me vem à mente e se evapora no pensá-la. Escrevê-la é assim aprisioná-la, fixar-lhe a existência na leitura ocasional que alguém possa fazer disto. Como outros conservam mil ninharias de recordação, fixo eu o que acidentalmente me venha a calhar reter. E há um hábito que se me criou e contra o qual nada posso. Como o fumar. A ver». Vergílio Ferreira, Conta-corrente 4 (1982-1983),Venda Nova, Bertrand Editora, 2ª edição, 1993, p. 9.

3 Entenda-se jogo irónico não na acepção clássica, mas na moderna que implica que, na relação

com os outros, o autor recorra à conveniente dissimulação que lhe garante atingir a desejada distância que atenua e serena o que viveu ou o que sentiu e consiga tudo purgar de emotividade e de imediatidade na comunicação. Implica um ponto de vista adoptado em que o narrador não inventaria factos ou opiniões de forma simples e directa, antes se propõe narrar factos observados mas submetidos a um ângulo em que o observador/narrador é constantemente observado pela sua própria consciência vigilante e controladora.

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para purgar os seus textos das evidências que pudessem ultrapassar os limites do que considerava divulgável ou desejava publicar. Fernanda Irene Fonseca reconhece no autor, quando este declara que «um diário é sempre falso», «uma atitude meta-reflexiva em relação à escrita diarística, analisando-a ao mesmo tempo que a pratica»1. Esta atitude, segundo a referida autora, verifica-se e reitera-se em Conta-corrente, revelando Vergílio Ferreira a importância dessa escrita como laboratório ou lugar de anotação e reunião de outros projectos literários ou ainda como lugar importante para indução da reflexão:

«O projecto em que a escrita de Conta-corrente se vai revelando a si própria é o da pesquisa sobre a literatura (ainda) possível, a escrita (ainda) possível: pesquisa, afinal, da relação entre escrever e viver. Questão muito actual que representa o reformular, na literatura de hoje, do eterno problema da relação entre a arte e o real. Questão que, nesta obra de Vergílio Ferreira, é investida numa força nova. Porque não se trata de uma questionação abstracta, mas de uma questionação vivida».2

Atentemos no posicionamento de Luís Mourão:

«Como se vê, o problema do confessionalismo é, afinal, uma das figuras do conflito entre o diário e o romance. Para Vergílio Ferreira, as coisas são relativamente claras: além de não ser capaz de se confessar senão por interposto romance, a confissão diarística muito dificilmente permitirá chegar às verdades do sujeito. Daí a intenção, desde o início, de fazer um diário anti-confessional. E se o autor reconhece que resvala, sobretudo no 1º volume, não deixa, no final desse mesmo volume, de se avisar em relação ao futuro: «A continuar, só

optando pelo registo do que transcende os limites pessoais» (1: 329)»3.

1 Fernanda Irene Fonseca, «Tempo de Mudança: análise de um diário inédito (1944-1949) de

Vergílio Ferreira», in Colóquio «O Fascínio da Linguagem» em homenagem a Fernanda Irene Fonseca, Porto, FLUP, 23-25 de Maio de 2007, p.11.

2 Fernanda Irene Fonseca, «Conta-Corrente, a história de uma aventura romanesca», in Vergílio

Ferreira: A Celebração da Palavra, Coimbra, Almedina, 1992, pp. 128-9.

3 Luís Mourão, Conta-Corrente 6 – Ensaio sobre o Diário de Vergílio Ferreira, Mem Martins,

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Lendo os seus diários, reconhecemos matéria de diário íntimo e de diário externo, ressalvando, todavia, o facto de ter havido uma evolução de livro para livro, no sentido de o autor reduzir o carácter acontecimental do quotidiano para privilegiar modalidades de discurso argumentativo e reflexivo1. Assim, na nossa opinião, deve-se classificá-los no diário íntimo, na acepção proposta por Alain Girard, desde que se exclua a noção de intimidade como tudo o que releva da vida privada do autor:

«L’accent est mis par l’auteur sur sa propre personne. Même s’il évoque des événements extérieurs, même s’ il s’ anime à propos de la rencontre d’ une autre personne, ou d’ une conversation, ou de toute autre circonstance qui met en cause autrui, ce n’ est pas l’ événement, ni l’ autre, en eux-mêmes, qui intéressent le rédacteur, mais seulement leur résonance, ou encore leur réfraction dans sa conscience. [...] L’objet n’a pas de réalité en tant que tel. Il n’est qu’une occasion qui éveille le sujet à la vie»2.

Nesse sentido, surge a tese de Fernanda Irene Fonseca que, embora advogue a repulsa pelo confessionalismo tantas vezes confessada pelo autor, e defenda o carácter de coexistência na escrita diarística da arte e da vida, da ficção e do real, reconhece, contudo, no autor, para além do gosto, da necessidade ou do pecado incorrido de tanto falar de si, um objectivo maior:

«Em Invocação ao Meu Corpo, como em Conta-Corrente, a procura de compreender o homem e as suas criações, que o excedem – a arte e a palavra – é o que move essa escrita a instituir-se, ao mesmo tempo, num outro projecto,

1 Ao iniciar a nova série de Conta-corrente, o autor declara o seguinte: «É absolutamente

necessário deixar aqui expresso para mim mesmo que isto não é a continuação de Conta-

Corrente. O diário acabou no volume V. O que aqui vai são escorralhas do acontecer diário, pois

que as «reflexões» vão no outro livro que escrevo também paralelamente a este e ao romance. Preciso de escrever e nem sempre estou disponível. Então desço a estes paralipomena, que é um lixo nem talvez aproveitável como adubo do resto.» Cf. Conta-corrente, nova série I, Lisboa, Bertrand Editora, 1993, p. 19. Destaque-se que, apesar desta declaração de princípios, os volumes da nova série foram sendo escritos até ao número IV, provando a importância do diário no espaço literário do autor, uma vez que, ao mesmo tempo que cumpre o objectivo de continuar a escrever (mesmo que sem objectivo), oferece a possiblidade de lançar trilhos ou experimentações que poderão levar a outras criações.

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subjacente: a procura de uma escrita que possa aderir espontaneamente ao próprio gesto de escrever, numa espécie de redescoberta do prazer da escrita»1.

Se os diários de Conta-corrente podem ser incluídos na acepção de diários íntimos, ressalve-se, contudo, que o que os distancia é, por um lado, o grau de «intimidade» neles representados, que Vergílio Ferreira, efectivamente, recusa, e, por outro, o carácter híbrido de muitos textos que são representativos de géneros vizinhos ao diário, nomeadamente, crónicas, memórias, recordações, apontamentos de viagens, cadernos de pensamentos, registos ensaísticos e doutrinais. Um autor como Vergílio Ferreira apresenta, pois, dois tipos de diários: os que representam o miúdo acontecer na imediatidade do quotidiano, apesar de traçar uma linha evolutiva, como já foi referido, entre o acontecimento exterior e o que foi filtrado pela sua consciência e reflexão vivida; e os que se inscrevem, na linha filosófica de ensaios em fragmentos, como é o caso de Pensar e

Escrever, os que constituem a «quinta-essência» dos pensamentos do autor2. Explicando por outro modo, o autor escreve diários ditados pela tirania do tempo, submetendo-se à rapidez e ligeireza da comunicação, e outros, mais soltos do tempo cronológico, e caracterizados pela fulgurância pontual de um pensamento ou pela lentidão da argumentação reflectida e pelo acervo de uma memória e sabedoria cristalizadas.

O livro Pensar3, de Vergílio Ferreira, publicado em 1992, foi inserido pelo autor na secção do diário, mas, embora participe de um reportório suficientemente estável e recorrente de traços específicos, essa obra apresenta características distintivas, que o demarcam de outros diários escritos até então – a maioria dos volumes de Conta-corrente. Para distinguirmos a especificidade da identidade deste texto, e do Escrever, publicado postumamente, em 2001,

1

Fernanda Irene Fonseca, 1992, p. 128.

2 Em relação aos conceitos de privacidade e de intimidade, pretendemos dizer que, embora o autor

escreva a partir de factos, pensamentos, ideias, gostos, emoções particulares e que estruturam o seu modo de ser e estar no mundo, embora refira factos relacionados com pessoas da família, embora descaia, de quando em vez, para o exercício ambíguo entre a crítica, a maledicência e o ajuste de contas, há um campo mais íntimo e mais secreto que o leitor não consegue invadir para satisfazer voyeurismos, policiamentos da vida privada ou identificação clara de pessoas referidas.

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recorramos, pois, ao que esclarece o autor na introdução, intitulada «Do impensável»:

«Os textos que se seguem são o esparso e desordenado e acidental do “fragmento”. Ele tem que ver assim talvez também com o impensável do nosso tempo. Não porque a organização num todo não seja hoje possível – e em alguns o foi – mas porque a acidentalidade de tudo, a instabilidade, a circunstancialidade veloz, a negatividade voraz, recusam a aparência do definitivo de quem constrói para a eternidade, harmonizando-se preferentemente com o variável e instantâneo do passar. Daí a actualidade do diário – e estes textos são uma espécie de diário do acaso de ir pensando»1.

Com a expressão «uma espécie de diário», o autor admite já a relutância de totalmente integrar os fragmentos do livro na escrita diarística, ciente do carácter híbrido em termos genológicos e de síntese dos seus pensamentos mais importantes, quer recorrentes quer motivados pela actualidade e novidade dos factos e temas a comentar. A citação transcrita inscreve-os, por um lado, na realidade social e histórica contemporânea do autor, caracterizada pela fugacidade, desordem e transitoriedade superficial, onde o indivíduo se descentra pela contaminação do mundo tribal e colectivo das «massas», e, por outro, na sua realidade pessoal, empírica, de escritor com vasta obra escrita, bem reconhecida pelos seus leitores, até na linguagem e na expressão de mitos pessoais. Por isso, do alto da sua «venerável senectude», exerce a liberdade de ir pensando, ao acaso, privilégio cada vez mais raro (mas também precioso) do que as circunstâncias contemporâneas permitem, não deixando, também, de contrariar a velocidade de factos e imagens que se não fixam na sociedade em que vive, pela expressão de valores e de pensamentos que entende salvar e tornar relevantes e com novas significações no mar indistinto do quotidiano esteriotipado. Transmite, por conseguinte, o extracto da sua sabedoria construída e extirpada de excesso da experiência vivida, acontecida e pensada. Ainda que se tenha subtraído à marcação vigilante do calendário, há sobretudo o registo da sua

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proposta de visão e compreensão do mundo quotidiano social e cultural em que se situa, suscitando a reflexão ao intérprete do seu texto sobre temas intemporais ou localizados no espaço e tempo contemporâneos: o futuro, o advento ameaçador da televisão e da informática em oposição à cultura da leitura e do livro, a família e a escola como instituições alteradas, a valoração da arte, o amor ao seu país ou à sua língua, a identidade nacional e o patriotismo, a oposição ou as relações entre a realidade e a imaginação, a degradação de sentido de certas palavras e valores como a «virtude» ou de certos sistemas de pensamento, a vida e a morte, a aconselhada pacificação epicurista face ao abalo sentido pelos processos de massificação culturais, etc. Sem dúvida, o tempo de crise civilizacional motiva o seu verbo a preencher o vazio, a denunciar a erosão de identidades pessoais e sociais, através da elucidação, nascida da inquietação, e que não deixa de ser alerta e doutrinação.

Por isso a escrita é a actividade necessária para se descobrir e manter lúcido e actuante numa sociedade que cansa, distrai e retira força especulativa, essa indagação de cunho existencial que exige a lentidão ou a suspensão da temporalidade:

«Escrevo para criar um espaço habitável da minha necessidade, do que me oprime, do que é difícil e excessivo. […] Escrevo para tornar possível a realidade, os lugares, tempos, pessoas que esperam que a minha escrita os desperte do seu modo confuso de serem. […] Escrevo para tornar visível o mistério das coisas. Escrevo para ser. Escrevo sem razão»1.

Assim, cumpre registar em escritos condensados o que a memória reteve e a sua inteligência emotiva seleccionou, ao mesmo tempo que realiza a finalidade de despertar o leitor para, cada um, pensar e se projectar nos grandes problemas do Homem. Refere Eduardo Lourenço que «há algo que releva de uma revisitação de si mesmo, de uma certa repetição, não só de temática mas de fórmulas conhecidas de cor pelos seus leitores. Desse modo, Pensar é uma espécie de «quinta- essência», no sentido químico e alquímico do termo, da visão da vida de um autor

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que introduziu na trama da sua obra [ficcional e diarística] uma desusada carga de preocupação especulativa de teor expressamente filosófico ou metafísico»1.

No mesmo sentido surge a análise de Helder Godinho que localiza o sempre eterno projecto de Vergílio Ferreira (no romance, nas reflexões e na fixação do quotidiano) no entender o sentido da vida, materializável na palavra essencial que respondesse a essa busca de sentido2.

E ainda Fernanda Irene Fonseca sublinha a inegável prevalência do acto de escrever ao acto de pensar na obra diarística de Vergílio Ferreira:

«Escrever pode figurar como resumo de uma vida, como remate da construção de uma obra. Mas não pela razão banal de se tratar de uma vida consagrada a escrever. No universo vergiliano, “escrever” é muito mais do que a presença implícita da actividade subjacente à produção de uma extensa obra. É uma presença explícita e obsessiva: como tema, como vivência, ficcionalmente encenada, como exercício heurístico, gesto indutor do pensamento e da criação pela palavra. [...]

Em Pensar – que poderia também chamar-se Escrever – Vergílio Ferreira explicita e analisa essa concepção da escrita como acto de perseguir obsessivamente o indizível, a palavra inatingível que foge sempre à frente daquela que se consegue dizer»3.

Estabeleçamos o confronto entre o que de matéria quotidiana se registou em

Conta-corrente e em Pensar e Escrever. Recorde-se que o autor já havia

1 Eduardo Lourenço, «Pensar Vergílio Ferreira», O Canto do Signo. Existência e Literatura,

(1957-1993), Lisboa, Editorial Presença, 1993, p. 128.

2 Helder Godinho, «Os diários de Vergílio Ferreira e a questão do fragmento», Colóquio Letras nº

172, Setembro/ Dezembro de 2009, p. 106. Também a propósito da análise do mitoestilo do conto «A Estrela», esclarece que a sobreposição/ interversão dos três planos (pessoal/ familiar e social) se aplica a toda a obra do autor: «Julgo que é o núcleo mitoestilístico que pus em relevo em A

Estrela que obriga o texto vergiliano a organizar sempre em torno de si os diversos assuntos,

ambientes e problemáticas que lhe vão dando corpo. Porque em toda a obra de V. Ferreira, desde o seu primeiro livro, o quotidiano pessoal se alarga pelo social e pelo cósmico à procura de uma dimensão onde a relacionação dos seus elementos seja possível em Sentido». Cf. Helder Godinho, «Para a Determinação do mitoestilo do conto “A Estrela” de Vergílio Ferreira», in O Mito e o

Estilo, pp. 87-88.

3 Fernanda Irene Fonseca, «Vergílio Ferreira, Escrever: O Título Inevitável», in Revista da

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reconhecido a escrita diarística como «o grau zero, o imediatamente espontâneo ao nível da escrita, o rés-do-chão de [si] como «escritor», a [sua] rasa banalidade com uma caneta e uma folha»1. Sabemos, porém, que esse lugar mais modesto na graduação genológica conferida pelo autor em relação às suas obras, pode não coincidir com a opinião dos leitores nem com a época cultural em que vivemos, na medida em que as obras de fragmentos conquistaram a adesão de um público mais vasto2.

Com efeito, ali, num registo que actualiza os dias datados, tudo coube, dentro da diversidade dos factos a relatar, em diversas tipologias textuais: bio-grafia,

auto-biografia, topo-grafia, retrato, confissão, imprecação, crónica, comentário,

reflexão, meditação e prosa lírica. Com desenvoltura, o autor foi preenchendo páginas dando expressão a pensamentos, eventos públicos e privados,