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Convenções do sistema genológico de tradição literária

Os textos autobiográficos encontram a sua matriz na antiga Grécia, lapidarmente concentrada na máxima de Sócrates «Conhece-te a ti mesmo» – o filósofo sempre insatisfeito com as definições propostas para cada campo do conhecimento –, como constitui o desafio do oráculo a descobrirmos a sabedoria, tal como Sócrates, considerado o mais sábio dos homens, através de um exercício permanente de indagação1 sobre a questão profunda da nossa identidade «quem sou eu?». Mas igualmente como exame de consciência, como mergulho na profundidade humana para dele emergir um novo homem psicológico e ético, exemplificado no livro Confissões de Santo Agostinho. Porém, entre Sócrates e Montaigne, como refere Georges Gusdorf, dois mil anos se passaram para se operar uma revolução, uma mudança de atitude no método do conhecimento de si:

«De Socrate aux chrétiens en passant par les philosophes classiques, il semble qu’il n’y ait pas de secret de la vie personnelle. Tout est résolu d’avance, ou du moins si quelque incertitude subsiste, elle est sans importance. [...] L’attitude nouvelle au contraire ne rejette aucune part de la réalité intime au nom d’un jugement a priori. [...] L’analyste positif selon la nouvelle manière part à l’aventure. Le moi lui est donné comme un domaine inexploré»2

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Platão, Apologia de Sócrates, Lisboa, Guimarães Editores, 7ª edição, 2009, pp. 30-31: «Acerca da minha sabedoria, se é que ela é sabedoria, evocarei o testemunho do deus que está em Delfos. Querofonte [...] tendo ido certa vez a Delfos, ousou inquirir o oráculo com esta questão (peço-vos que vos não perturbeis com o que vou dizer) – se haveria alguém mais sábio do que eu. A Pítia respondeu-lhe que ninguém me superava em sabedoria».

Sobre a sabedoria de Sócrates, também Vergílio Ferreira sobre ela se pronunciou em atitude de admiração: «O ponto mais alto a que se pode ascender para daí olhar o mundo e a vida é a sabedoria que Sócrates recomendava e dizia não se poder definir ou explicar. Mas nada é explicável quando investido da sensibilidade humana, ou seja do mistério que é o próprio homem. [...]A sabedoria é incerta porque a dúvida prévia em que se dilui o seu saber, adia-lhe para sempre a definitividade do que é. Não é o “só sei que nada sei” porque aí não há saber algum. É o saber que o seu limite está no sem fim. E para essa viagem interminável ter um coração sossegado e um sorriso a acompanhar-lhe o sossego». Cf. Vergílio Ferreira, Escrever, frag. 158, 2001, p. 103.

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Os textos de carácter autobiográfico visam representar a identidade de um eu consciente de si mesmo e que, pela escrita, procede a uma eventual reconquista de si, representando o eu textual a verdade de factos do eu vivido, fazendo emergir a descoberta da sua interioridade para a plataforma da face exteriorizável do eu, um eu consciente que dá sentido ao vivido, procura superar os estados de dúvida ou angústia e encontrar o caminho para o encontro consigo mesmo. Um duplo eu que, ao recordar e expor parcelas, resíduos da sua vida, e, ainda que comprometendo sempre a completude do programa da escrita autobiográfica, por conseguinte, da acabada consciência de si, lugar de origem de toda a verdade pessoal, dado o carácter móbil da essência do nosso ser, procura, na sucessão incoerente de quadros da vida a passar, conferir-lhes sentido.

Por conseguinte, o trabalho da escrita sustenta-se no mito de Orfeu e Eurídice, segundo interpretação de Maurice Blanchot1, considerando Orfeu o escritor e a bem-amada a obra. A relação com a obra só pode ser feita pela mediação da escrita. Eurídice está na sombra, mas a sua recuperação e transporte para a luz, em forma e realidade, só será possível se Orfeu não olhar para trás. Mas a sua impaciência leva-o a perdê-la, perda só recuperável se se entregar ao universo imaginário da escrita para representar a realidade da qual se distanciou. O desejo incessante de recuperar Eurídice revela-nos o trabalho inesgotável do escritor bem como o da interminável realização da escrita autobiográfica:

«Le regard d’Orphée est, ainsi, le moment extrème de la liberté, moment où il se rend libre de lui-même, et, événement plus important, libère l’oeuvre de son souci, libère le sacré contenu dans l’oeuvre. [...] L’inspiration, par le regard d’Orphée, est liée au désir. Le désir est lié à l’insouciance par l’impatience. Qui n’est pas impatient n’en viendra jamais à l’insouciance, à cet instant où le souci unit à sa propre transparence; mais, qui s’en tient à l’impatience ne sera jamais capable du regard insouciant, léger, d’Orphée».

1

Maurice Blanchot “Le Regard d’Orphée”, L’Espace Littéraire, Saint-Amand, Éditions Gallimard, 2009, pp. 225- 232.

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Deste modo se compreende que a escrita (ou o acto de escrever) é o caminho para uma realização de arte, para uma configuração da ordem que das sombras avulsas e confusas do real procedeu, para uma reconstrução da experiência humana noutro tempo de enunciação e em contexto de ausência e de perda em relação ao vivido. Se, por um lado, há perda porque os factos ocorreram num passado, por isso, na acepção do tempo, segundo Santo Agostinho, já não existem, por outro, na matéria autobiográfica, só o presente existe, o que significa que os eventos do passado – que são memória e só já existem na mente – existem porque as conservamos nos instantes presentes da recordação e da enunciação que lhes confere existência e significação. É preciso também que a palavra se erga e consiga aprisionar, na página a escrever, o sentido, a verdade, a representação, a «transparência» da realidade sempre incoercível.

Debruçando-nos sobre os diários, o leitor reconhecerá, assim, a existência narrativa do sujeito escrevente que, ao anotar meditações, ocorrências anódinas, acontecimentos protagonizados por si ou por si testemunhados e reflectidos, vai traçando, num movimento deliberado, os caminhos do acaso em que se cumpriram parcelas da sua vida, desvelando, num jogo associativo, o ser que foi, mas sobretudo procurando «a coerência da [...] vida, a coesão de um sentido em contínua perda»1. Vivendo e escrevendo, o diarista – que é um eu de memória e de imaginação – vai construindo um saber e um conhecer individuais, pela reflexão pessoal que não pode deixar de ser informada e dinamizada pelos elementos da comunidade cultural histórica. O carácter errante e imprevisto da escrita do diário, embora disciplinado pelas notações temporais, espaciais, temáticas e pelo projecto de escrever a vida do eu na sua relação com o mundo dos outros, no acontecer quotidiano, constitui um símile da própria vida humana que se defronta com a facilidade ou a complexidade da viagem, mas que, na sua realização, consegue obter o conhecimento necessário para melhorar o seu percurso e dirigi-lo para as metas desejadas, que são construções incessantes de

1 Teresa Sousa de Almeida, «Um olhar sobre os diários em Portugal: Marcello Duarte Mathias e

Luísa Dacosta», Colóquio Letras 172, Setembro/ Dezembro de 2009, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, p. 117.

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significações novas. E o acto de narrar, bem como a produção de uma narrativa, transformam a realidade acontecida e vivida numa realidade de vida conhecida, esclarecida, fruto da auto-reflexividade, que se alcança, em primeiro lugar, pela distanciação dos acontecimentos experienciais do passado, do inevitável estranhamento derivado desse afastamento, e, em segundo lugar, pela apropriação que o método hermenêutico proporciona desse acontecido resgatado no momento presente da enunciação que, sendo tempo de escrita, se alimenta da «leitura», e é interpretação e compreensão incessantes das manifestações, dos dados da experiência expostos e explicados que documentam a existência. Caso contrário, a escrita do diário limitar-se-ia a apresentar uma realidade observada, anotada factualmente, mas não conhecida nem esclarecida por uma singular e humana experiência organizadora da linguagem e do pensamento:

«Quando tomadas isoladamente, as palavras não são suficientes enquanto organizadoras da experiência. As palavras, tal como a experiência, são os ingredientes do conhecimento. [...] Para conseguir construir uma coerência para a natureza caótica da experiência, o indivíduo necessita de a organizar narrativamente»1.

Acrescente-se ainda que, apesar do carácter fragmentário do diário, oferecido ao leitor por convencionais traços espaciais, cronológicos e separadores da experiência comunicada, cada excerto é uma micro-narrativa com unidade e organização, com incipit e clausura constantemente recomeçados, em novos indicadores de cronologização, de temporalização e de tematização, não obstante alguns excertos se nos apresentarem inconcluídos, subitamente interrompidos, conferindo, por um lado, maior naturalidade e sugestão de concomitância entre o acontecimento e a sua escrita, mas também, por outro, evidenciando a inapreensibilidade pela escrita do que a mente construiu em pensamento e dissipou.

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Óscar Gonçalves, Viver narrativamente, a Psicoterapia como adjectivação da experiência, Lisboa, Edição Quarteto, 2ª edição, 2002, pp. 43-44.

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Se a escrita autobiográfica procura responder à questão «quem sou eu?», também cumpre o propósito de responder à questão «porquê falar de mim?», na medida em que se torna o meio, através do qual, frequentemente em cada dia, o eu narrador pode esclarecer, na acepção da temporalidade heideggeriana, o tendo-

se sido no caminho de vida percorrido, elucidando-se, descobrindo-se, ao mesmo

tempo que vai fixando, pelo tornar-presente as móveis moradas do ser. Deste modo, os diários constituem uma forma privilegiada de estudar um ser na sua particularidade, nas variações de acontecimentos e de sentimentos ao longo do tempo, na pluralidade proteiforme das suas representações, na busca da verdade, só acessível em cada «agora», e na simultânea expectação futura e retenção pretérita do homem como um ser-para-a morte. Também, por isso, a escrita autobiográfica se revela de forma tão heteróclita e mudável, dificilmente se fixando com alguma definitividade dentro de critérios puramente formais, sobretudo de género ou de modos de representação do discurso. Nessa medida se compreende a pluralidade de discursos e de estratégias discursivas condicionadas por uma diferente visão do tempo. Por exemplo, anotações breves de episódios apresentadas numa configuração temporal ordenada, estável e cíclica, divagações temáticas que dilatam o tempo e constituem estratégias de fruição da lentidão e de adiamento de conclusões, pensamentos aforísticos pontuais, fulgurantes e eternamente presentes, protótipos textuais diversos.

As razões de o sujeito falar de si também contemplam uma estratégia para chegar ao mundo dos outros. Na relação contratual de leitura com o público, o diário, pelo carácter «confessional» de que se reveste, opera uma relação específica do artista com o leitor, uma vez que, decidida a publicação dos textos diarísticos, trata-se, paradoxalmente, não do escritor de romances que se expõe, depois de publicar a obra, na montra da vida pública, mas essencialmente do homem que escreve para «estar só», «escreve no interior de [si]»1 e se revela como a pessoa que constitui, em especial, a sua verdade. E nesse nível pessoal em que se revela, o artista, tentando atenuar o seu sentimento periférico e

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distanciado do espaço privado e recolhido em que se escreve, visa comunicar, aproximar-se do leitor, de modo a captar um olhar de reconhecimento do mundo habitual em que vivem.

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1.1.2. Carácter diverso, flutuante e híbrido dos textos