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3. Resultados e Discussão

3.1. Criando uma versão útil dos conceitos construcionistas

3.1.2. Caráter performático da linguagem

No capítulo introdutório, abordamos como o entendimento da linguagem como uma forma de ação trouxe mudanças para os terapeutas envolvidos no campo das práticas com famílias. Gergen (1997) propõe, como afirmamos anteriormente, que os consensos que embasam a vida em sociedade são atingidos em intercâmbios historica e culturalmente situados. Se as palavras não são uma representação do que acontece no mundo, então os sentidos que elas adquirem é fruto da coordenação da ação entre as pessoas em suas relações. Dessa maneira, para que os enunciados sejam inteligíveis para as pessoas em interação, estas precisam estar imersas em comunidades discursivas que partilham sentidos sobre o mundo. Neste sentido, o autor afirma que as palavras são artefatos sociais, uma vez que elas não guardam referência direta com o objeto descrito, mas com as convenções sociais que definem a forma como objetos e fenômenos devem ser nomeados (Gergen, 1985, 1997).

Assim, dizer que linguagem é ação constitui-se em uma forma de afirmar que os sentidos que utilizamos para dar conta do mundo produzem efeitos em nossas relações e circunscrevem práticas. Se a linguagem sustenta a organização da vida cotidiana das pessoas, então ela também oferece a possibilidade de criação e transformação desta vida cotidiana. Novos sentidos podem ser explorados quando as situações vividas estão a favor da opressão e do sofrimento. Esta é uma decorrência deste pressuposto apresentado por Gergen (1997), o qual se mostra bastante útil para a prática clínica. Alguns entrevistados destacaram estas ideias como norteadoras de seus trabalhos.

A seguir, transcrevemos momentos das entrevistas com Nina e Elisa. Quando descrevem o início do contato com essas ideias e como foram por elas influenciadas, as participantes afirmam:

Elisa: [...]. E quando eu me aproximei das ideias construcionistas sociais, então deu uma... um clique muito grande no sentido de se libertar de técnicas pré-pensadas e ao mesmo tempo de poder ter sua prática, minha prática, organizada pela conversação dialógica, como uma conversação de diálogo transformador.

Nina: [...] Então, aplicando também no campo da terapia familiar, que pra mim é um ponto de interesse muito grande, trabalhar em comunidade, políticas públicas, postos de saúde, esse tipo de coisa, que eu acho que o construcionismo se presta muito bem pra isso, e ajuda muito, porque justamente não exige grandes, é [pausa] não exige um setting específico, não exige material específico, não exige... é mais a questão da conversação, do diálogo, e tal. Então, a habilidade do profissional e a sensibilidade do profissional são suficientes para conduzir um assunto e ajudar as pessoas a ampliarem as suas... as suas visões, ahn... mais rígidas, e buscarem alternativas. Enfim, de ressignificarem sua vida, seus problemas, tal.

Ambos os trechos nos convidam a olhar, em um primeiro momento, para a similaridade de sentidos acerca do que é uma proposta terapêutica. Elisa refere-se ao contexto clínico em particular, e Nina refere-se às possibilidades de trabalho tanto na clínica como em grupos maiores, sendo que ambas falam da proposta terapêutica como um momento de conversação, em que o profissional está ativamente engajado em construir sentidos com as pessoas e buscar novas descrições que possam trazer mudanças.

Também consideramos que as descrições de Nina evidenciam a proposta crítica do construcionismo ao essencialismo e ao realismo. A participante afirma que a habilidade e a sensibilidade do profissional são suficientes para conduzir a conversa e o processo de transformação. Esta é uma descrição que desloca o foco proposto pelo profissional: ao invés de investir em perscrutar a mente dos indivíduos, o profissional investe no diálogo e na conversação; ao invés de estar voltado para o descobrimento de uma realidade externa, o

profissional está focado em ampliar narrativas e convidar as pessoas a transformações. Ademais, Nina afirma que o profissional não guia seu trabalho a partir de settings específicos, de materiais definidos a priori como dispositivos de mudança para as pessoas envolvidas. Elisa faz descrições semelhantes, dizendo que o profissional pode libertar-se de técnicas definidas como eficazes antes mesmo que os clientes cheguem ao atendimento.

Tendo como base a proposta de Gergen (1997), podemos dizer que as participantes afirmam que após o contato com o construcionismo elas passaram a conceber que o terapeuta não trabalha a partir de metanarrativas que construiu a priori sobre o contexto, sobre as pessoas e como elas devem mudar. Pelo contrário, o profissional se propõe a perguntar, conhecer, criar significados em comum, questionar versões de mundo que provocam sofrimento. Acreditamos que ambos os trechos apresentados, de Nina e Elisa, são os que implicam mais diretamente a crítica ao essencialismo e ao realismo proposto pelo movimento construcionista.

Em outras entrevistas, também foi conferida importância às possibilidades de ressignificação que a terapia oferece, marcando este aspecto como uma contribuição estreitamente ligada ao contato com o construcionismo. Quando conversávamos sobre o momento de sua trajetória em que Mônica inicia suas leituras acerca das ideias construcionistas sociais, ela afirma:

Mônica: [...] e o que me chamou mais a atenção é o processo de trabalho da ressignificação, o trabalho da reconstrução daquilo que se diz, dito de uma outra maneira, com outros enfoques, com outros significados, com uma visão diferente daquela que vinha sendo repetida, é... que a família vinha repetindo, que a gente começa a se dar conta que... “puxa, tá sempre dizendo a mesma coisa”, né? [...] É escutar, devolver, conversar com a família ressignificando, redefinindo tudo o tempo todo.

Mônica conversa sobre o quanto chamou sua atenção a possibilidade de trabalhar, com os membros das famílias, as descrições que eles têm do mundo e das pessoas. Em momentos de cristalização e enrijecimento dos significados que os familiares dão às suas vivências – o que ela vê como algo que os impossibilita de encontrar novas formas de ação – Mônica guia suas ações a partir da ressignificação, oferecendo aos membros novas formas de compreender suas vivências e convidando-os à mudança. Ao longo da entrevista, Mônica se refere ao papel do terapeuta como aquele que pode oferecer novos sentidos para as experiências dos clientes, convidando-os a experimentarem diferentes formas de se posicionarem diante de si mesmos e das outras pessoas.

Na entrevista com Cecília, quando perguntamos como o construcionismo é útil em sua prática, ela responde:

Cecília: Um pouco do que a gente falou, né? Que daí é uma conversa, presta bastante atenção no que ele tá narrando, ver o que dá pra narrar de outro jeito. Eu vou tentar co-construir outros significados para tentar iluminar coisas que ele não tá iluminando, né? Ele vai ver essa situação de uma forma diferente [pausa] e se ele vê de uma forma diferente ele fala de uma forma diferente e ele já cria uma realidade diferente e vai sair daqui mais potencializado. Então eu sinto que... muito disso, né? Que são recursos do construcionismo e que os terapeutas que se basearam no construcionismo usaram na sua prática.

Neste trecho, consideramos que Cecília descreve seu modo de compreensão do processo terapêutico. É interessante notar como ela constrói um encadeamento entre diferentes momentos deste processo. Primeiramente, ela se coloca de forma atenta em relação ao que é dito pelas pessoas, buscando aspectos destes sentidos que poderiam ser construídos de outra maneira – aspectos da vida, das pessoas e das relações que o cliente “não está

iluminando” (sic). Ao oferecer novas possibilidades descritivas, os clientes podem encontrar outras formas de conversar sobre si mesmos e as situações em que estão envolvidos. Eles estão, assim, diante da possibilidade de construir versões diferentes acerca da realidade vivida e sair da terapia mais potencializados, ou seja, podem experienciar as mesmas situações a partir de novos significados, o que lhes convida a lançar mão de recursos e potencialidades que antes não faziam parte das relações em que estão imersos. Ao conceber a terapia como uma conversação, Cecília se coloca atenta ao processo conjunto de construção de sentidos.

Quando perguntamos a Júlia quais possibilidades que surgem em seu trabalho ao conhecer o construcionismo, ela afirma que “é possível olhar para aspectos singulares,

aspectos da relação, do contexto, e desconstruir significados com o outro” (sic).

Nice, em nossa conversa, utiliza uma metáfora para falar sobre a ressignificação. Ela diz que a terapia pode ser um momento em que ela oferece suas vivências para os clientes como se fossem um cardápio, e os entendimentos que ela tem das situações que viveu em sua vida podem convidar os clientes a “transformar o que eles estão vivendo em coisas com mais

qualidade de vida” (sic).

Luana descreve momentos de um atendimento clínico em que sentiu grande estranhamento em relação a alguns hábitos do casal atendido, sobretudo no tocante ao privilégio dado às formas de comunicação pela internet. Ela frisa, assim, que a conversa terapêutica traz consigo possibilidades de transformação tanto do terapeuta como dos clientes,

no sentido em que se constitui em uma abertura possível para que ambas as partes mudem suas concepções de mundo e criem novas definições sobre os temas que conversam.

Nas conversas com Carina e Estevão, ambos descrevem o terapeuta como alguém que tem disponibilidade para estar com o outro e oferecer aos clientes novas descrições sobre suas experiências.

Focando na similaridade de sentidos a respeito da ênfase dada à ressignificação, vemos que estes participantes nos contam a respeito dos usos que fazem do pressuposto descrito por Gergen (1997) sobre a possibilidade de transformação de sentidos e discursos nas interações momento a momento. Novamente, encontramos na noção de utilidade dos discursos um aspecto central do processo interpretativo das entrevistas. A utilidade de um conceito no campo das práticas pareceu ser construída a partir de uma escolha acerca de quais aspectos da premissa teórica são enfatizados por eles na prática clínica com as famílias.

Assim, alguns aspectos tidos como centrais por Gergen (1997) na descrição de seu pressuposto são menos enfatizados no momento em que os profissionais necessitam aplicar praticamente este conhecimento. Como procuramos ilustrar acima, a elaboração de Nina e Elisa sobre o trabalho com as possibilidades de ressignificação implicam mais diretamente as críticas ao realismo e essencialismo, centrais para a proposta de Gergen para o campo psicológico, o que não ocorre da mesma maneira nas demais entrevistas. Nestes casos, o enfoque na criação e transformação de sentidos aparece mais atrelado ao processo de conversa em si, com menos referências às implicações de mudanças no entendimento acerca da linguagem. Com esta afirmação, não estamos dizendo que o “primordial” da proposta construcionista foi deixado de lado, mas que a difusão destas ideias no campo profissional está ligada à criação de formas de descrever o construcionismo que sejam úteis para aqueles imersos nos domínios da prática clínica.