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Tal como referido anteriormente, vários estudos têm demonstrado que crianças com 3 anos de idade, independentemente do sexo, já conseguem aprender a reconhecer toques abusivos, distinguindo-os de toques não abusivos, assim como reportar pedidos

desadequados, mesmo quando são provenientes de pessoas de confiança (Brassard & Fiorvanti, 2015; Madak & Berg, 1992; Nemerofsky et al., 1994; Wurtele, 1990; Wurtele & Owens, 1997; Zhang et al., 2014). Atendendo à idade, a repetição dos conteúdos e atividades ao longo do crescimento revela-se essencial para a consolidação de conhecimentos. Também o envolvimento familiar e a realização de atividades de cariz prático, que foquem aspetos concretos e treino das competências aprendidas, são fundamentais para a criança consolidar o comportamento aprendido nesta etapa do desenvolvimento (Kenny, Capri, Ryan, & Runyon, 2008).

Ao trabalhar a prevenção do abuso sexual com crianças em idade pré-escolar não podemos esquecer que as crianças apresentam um conhecimento muito restrito de prevenção nesta idade. Os atos sexuais em que são envolvidas não são recíprocos, as crianças não compreendem as consequências das suas interações sexuais com os adultos e não percebem que esses atos violam os tabus sociais e leis morais existentes (Berrick, 1991).

Com base na literatura específica, verifica-se que nestes programas de prevenção o objetivo consiste em a criança aprender um conjunto de conceitos que estão associados a diferentes temáticas, sendo algumas delas essenciais trabalhar: o corpo humano, que implica a aquisição de definições corretas sobre as diferentes partes do corpo; a distinção entre “partes privadas vs. não privadas”, ou direitos sobre o corpo. Os programas abordam também toques adequados e desadequados, o saber dizer “não” a um toque desadequado, o ensinar a gritar, afastar o agressor, fugir e contar a um adulto de confiança, sem guardar segredo, fazendo-o sempre que a sua integridade é invadida. Alguns programas enfatizam também a importância de ajudar a criança a interiorizar a ideia de que não é culpada numa situação de abuso, e que esta forma de mau trato pode ser também cometida por pessoas próximas. Além disso, um programa deve ajudar a criança a aprender a reportar a situação de abuso a um adulto até que seja feito algo para a proteger, uma vez que este pode não acreditar nela (Berrick, 1991; Conte et al., 1985; Daro, 1994; Maria & Ornelas, 2010; Martyniuk & Dworkin, 2011; Wurtele, Kvaternick, & Franklin, 1992). Alguns programas mostram a utilidade da criação de regras

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específicas que ajudem a criança a distinguir os tipos de toques, pois estas são importantes para a consolidação destes conhecimentos e de situações de risco; por último importa apostar em exemplos de situações de risco intrafamiliar, uma vez que tal como já mencionado, esta é mais frequente e que as situações com estranhos são menos ambíguas para as crianças do que com conhecidos (Davis & Gidycz, 2000).

Além do foco específico nos conceitos supracitados que estão diretamente ligados à prevenção primária do abuso sexual, conceitos gerais ligados a competências pessoais e sociais tais como comportamento assertivo, capacidade de tomada de decisão ou

competências de comunicação, devem ser igualmente abrangidos (Daro & Donnelly, 2002). Estes temas devem ser trabalhados com base em diferentes atividades, permitindo uma dessensibilização para o tabu existente, promovendo-se um desenvolvimento sexual saudável. A literatura indica que as técnicas mais eficazes e reportadas são o treino de competências comportamentais ou role-play, técnicas de reforço comportamental e discussão em grupo, sendo essencial que a criança receba feedback sobre o seu desempenho nestas atividades. Além destas técnicas em que a criança tem um papel ativo, existem outras atividades, em que a criança tem um papel mais passivo, que se revelam igualmente eficazes, destacando-se a modelagem (através de pequenas representações com modelos reais – e.g., fantoches), visualização de filmes ou leitura de livros. O uso de jogos, músicas ou outros materiais didáticos pode ser também um recurso importante. Para qualquer uma destas técnicas, e atendendo à idade das crianças, é fundamental que o material seja apresentado de forma estimulante e variada, captando a sua atenção e reforçando os conhecimentos aprendidos. Aconselha-se, ainda, uma combinação das estratégias, repartidas ao longo de diversas sessões, dando maior ênfase às técnicas em que a criança é ativamente envolvida (Brassard &

Fiorvanti, 2015; Daro & Donnelly, 2002; Martyniuk & Dworkin, 2011).

Os pais e professores devem ser igualmente envolvidos nestes programas. O apoio parental tem sido um dos fatores que mais influencia o sucesso de programas de prevenção de abuso sexual em JI, sendo que estes devem autorizar a participação dos filhos, mas também reforçar o que lhes é ensinado, responder a questões que surjam e ajudar a compreender os diversos conteúdos. Acima de tudo, é importante garantir a existência de um contacto regular entre a escola e os pais para que a informação transmitida às crianças seja congruente

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Wurtele e colaboradores (1992), num estudo com 375 pais de crianças em idade pré- escolar (na sua maioria mães, com uma média de idades de 31,8 anos, sendo a maioria dos pais casados ou em união de facto), através da aplicação de um questionário sobre atitudes e crenças acerca de programas de prevenção de abuso sexual, concluíram que, de uma forma geral, os pais dizem falar sobre abuso sexual com os filhos, procurando que estes os alertem caso alguém tente tocar nas suas partes íntimas. No entanto, a grande maioria refere não recorrer a materiais lúdicos para auxiliar esta abordagem, mostrando-se relutantes em abordar de forma mais específica o tema da sexualidade com os filhos, nomeadamente, a transmissão de conteúdos como os nomes corretos das partes do corpo, ensinar as crianças a defender-se face a uma eventual situação abusiva, ou transmitir-lhes a ideia de que os abusadores também podem ser adolescentes, ou os próprios pais. Parece, ainda, ser difícil e gerador de

sentimentos de insegurança para os pais ajudar os filhos a compreender que podem explorar o seu corpo através do toque genital, desde que em privado.

Mais recentemente Hunt e Walsh (2011), numa revisão de literatura sistemática, constataram que os pais não sabem quais os conteúdos que se devem abordar quando falam em prevenção de abuso sexual, nem sabem quando o fazer. A falta de vocabulário, confiança e recursos é frequente, e quando conversam sobre o assunto com os filhos tendem a focar-se em aspetos menos relevantes, como o perigo de estranhos, e não sobre o facto de esse perigo também poder estar associado a pessoas conhecidas. Assim, para trabalhar a prevenção de abuso sexual de crianças é fundamental trabalhar esta questão de uma forma mais holística, contruindo materiais (didáticos e atividades) que sejam igualmente úteis para os adultos, promovendo o envolvimento ativo dos pais, fomentando a discussão sobre este tema entre criança-adulto, e procurando facultar informações que sejam úteis para os pais saberem lidar com potenciais revelações por parte da criança.

É importante não esquecer que muitos pais e EI temem que estes programas gerem efeitos negativos nas crianças, mas a literatura aponta para apenas uma pequena percentagem delas apresentarem sinais adversos, como medo dos outros (Reppucci & Haugaard, 1989).

Nesta visão holística é igualmente importante trabalhar com a comunidade onde a criança está inserida, especialmente os profissionais da área da saúde e educação que tenham contacto com crianças (Maria & Ornelas, 2010). A cooperação entre pais e a comunidade constrói um ambiente de suporte, para que todos os atores se sintam preparados para falar sobre a temática e partilhem os seus desejos e medos (WHO, 2010).

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Em suma, é essencial que a temática do abuso sexual seja trabalhada com

comunidades no sentido lato do termo devendo, idealmente, integrar o currículo escolar das crianças, em diferentes ciclos, alterando-se conteúdos de acordo com o desenvolvimento e maturidade destas (Brassard & Fiorvanti, 2015; Kenny et al., 2008). A importância de um trabalho longitudinal a este nível é fundamental pois a literatura aponta para o facto de haver ganhos significativos após a aplicação de programas, mas estes tendem a decrescer ao fim de algum tempo. Assim, a repetição de conceitos é essencial para o sucesso da prevenção, que deve ser iniciada na idade pré-escolar (Daro, 1994).

Com base no apresentado é importante reconhecer que o número de estudos e o trabalho efetuado na área da prevenção do abuso sexual tem vindo a crescer, refletindo a sua importância mas, ao mesmo tempo, continuam a existir poucos recursos, sendo escassos os estudos com medidas rigorosas que testam adequadamente a sua eficácia (DeGue et al., 2014). Assim, DeGue e colaboradores (2014) propõem que, para uma intervenção apropriada, o programa construído deve ter em conta nove características: (1) ser compreensivo

(compreender os fatores de risco e proteção associados à situação de abuso); (2) ser adequado no tempo (o acesso a estes programas deve acontecer antes das crianças serem vítimas de uma situação abusiva, devendo iniciar-se o mais precocemente possível); (3) utilizar diferentes metodologias (sendo mais eficaz o uso de atividades interativas, que envolvam ativamente a criança e o treino de competências); (4) a intervenção deve ser suficiente (o número de horas de intervenção deve ser adequado para influenciar o comportamento dos participantes); (5) administrada por pessoas bem treinadas (que implementem o programa de forma estável, que estejam comprometidos, competentes e se relacionem adequadamente com os participantes); (6) deve providenciar relações positivas (promovendo uma boa relação entre os sujeitos e os seus pais, pares e outros adultos); (7) ser relevante ao nível social e cultural (sendo sensível à cultura, crenças e normas da comunidade, abrangendo o máximo de pessoas possível, tendo em conta as especificidades das minorias); (8) baseada na teoria (tendo por base modelos teóricos), e (9) incluir uma avaliação de resultados.

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