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7 ESTUDO DE CASO: PROGRAMAS POLICILESCOS E VIOLAÇÃO DE

7.1 Características e delimitação conceitual dos “programas policialescos”

7.1.1 Características dos Programas policialescos

Um dia antes de ser exibida as cenas de estupro, o portal da emissora já fazia a chamada da matéria anunciando a exibição das cenas. Em entrevista à autora, Janaíne Aires (2018) diz que havia uma celeuma em torno do tema e o aumento de interesse do público ao programa (AIRES, 2018). O apresentador, na ocasião da difusão, antes da exibição da reportagem, antecipa-se às possíveis críticas que viria a enfrentar. A estratégia discursiva já foi mencionada nesse trabalho, a divisão de polos. Nesse caso, a estratégia se cristaliza no apresentador em busca de justiça versus demagogos críticos do sensacionalismo. Nesse espaço, Samuka Duarte faz um discurso moralista na tentativa de justificar a exibição das imagens.

Depois vão dizer que eu... [anda apressado para a parte de trás do estúdio e bate na pilar com o cajado, em seguida volta para frente das câmeras.] que eu... [entra o bg com “tenha calma doido”] vão dizer que eu faço sensacionalismo! Faço! Pronto! Vocês que são demagogos! [arremessa o cajado com as duas mãos no chão, a câmera treme na hora da queda passando mais realismo, em seguida tira o paletó e fica segurando com uma das mãos. Neste momento entra o bg “que é isso, meu filho? Calma.”] Ó, vocês que são hipócritas! [entra o bg com “misericórdia”] Vocês que são intelectuais banda de tigela! Vocês que dizem que a imprensa é sensacionalista. Samuka é sensacionalista. Samuka faz... Faço! Porque não é com você o que nós vamos mostrar agora! [joga o paletó no chão] O que nós vamos mostrar... Eu peço para que as crianças saiam da sala (CORREIO

VERDADE, 2013).

Historicamente, os estudos na área dos programas policialescos iniciaram com o conceito de “sensacionalismo”. O termo já era debatido academicamente antes mesmo da abordagem televisiva massiva que conhecemos hoje. Na década de 70, Alberto Dines (1971) publica o artigo “Sensacionalismo na Imprensa”, em que comenta sua participação na Semana de Estudos em Sensacionalismo, realizada na Universidade de São Paulo (USP). Outro autor que ainda provoca repercussão nos trabalhos da área é Moniz Sodré, com “A comunicação do Grotesco” (1972). Na década seguinte, Marcondes Filho (1986) e Pedroso (2001a, 2001b)161 apresentaram estudos sobre a temática. Mais recentemente, Angrimani Sobrinho (1995) traz o

161 O livro “A construção do discurso de sedução em um jornal sensacionalista” foi originalmente apresentado

“Espreme que sai sangue. Um estudo do sensacionalismo na imprensa”. Nos anos 2000, Márcia Franz Amaral (2003; 2005) e Marinalva Barbosa (2005) publicam trabalhos passando a revisar alguns conceitos, inclusive, o de sensacionalismo.

Amaral (2003; 2005) em análise revisional, considera que o termo sensacionalismo é associado a uma visão limitada da imprensa e elitista da cultura. Para a autora, o conceito de sensacionalismo está vinculado a produtos jornalísticos mais populares e suas citações acadêmicas são tão abrangentes que o termo se tornou amorfo. Amaral (2003; 2005) propõe que o caminho para avaliar criticamente o sensacionalismo está em considerar quais as acomodações utilizadas por essa imprensa para alcançar o segmento popular. A partir dessa perspectiva, consideramos que a linguagem utilizada pelo programa, sobretudo pelo apresentador, é uma das principais estratégias do programa sensacionalista para alcançar a audiência pretendida.

Os entrelaços entre sensacionalismo e informação nos programas policialescos estão presentes nas discussões acadêmicas. Como pressuposto para a discussão, Amaral (2003) concorda com Dines (1971) que, ainda na década de 70, esclarece que todo jornalismo mexe com as emoções e sensações do público. A diferença, para autora, é que o jornalismo sensacionalista apresenta uma carga emocional mais intensa. Amaral (2003) se preocupa com os rótulos do jornalismo sensacionalista limitando, assim, uma discussão mais abrangente.

As práticas abrangidas pela caracterização sensacionalista tanto podem significar o uso de artifícios inaceitáveis para a ética jornalística, como também podem se configurar numa estratégia de comunicabilidade com seus leitores através da apropriação de uma Matriz cultural e estética diferente daquela que rege a imprensa de referência (AMARAL, 2003, p. 5-6).

No fim, Amaral (2005, p. 2) defende que “o sensacionalismo corresponde mais à perplexidade diante do desenvolvimento da indústria cultural no âmbito da imprensa do que um conceito capaz de traduzir produtos midiáticos populares mais recentes”. Acreditamos que essa perplexidade se dá pela alteração dos padrões de produção do jornalismo.

Angrimani (1995, p.40) enaltece a diferença: “a edição de um jornal sensacionalista não pode ser a mesma de um jornal analítico-informativo. Há necessidade de mostrar justamente o que o outro não mostra”. Por sua vez, Amaral (2006, p. 52) argumenta que o jornalismo popular

Baseia-se no entretenimento e não na informação, mistura gêneros, utiliza fontes populares e muitas vezes trata a informação de um ponto de vista tão particular e individual que, mesmo dizendo respeito à grande parte da sociedade, sua relevância se evapora. Muitas vezes, o interesse do público suplanta o interesse público não em função da temática da notícia, mas pela

forma como ela é editada, com base na individualização do problema, o que dá a sensação da não realização do jornalismo.

Quanto ao lugar do sensacionalismo associado ao mal jornalismo, tanto Marcondes Filho (1986), quanto Angrimani (1995) trabalham a questão. Nesse entendimento, chamar um jornal de sensacionalista é o mesmo que tirar sua credibilidade.

Se um jornal (telejornal ou radiojornal) é tachado de sensacionalista, significa para o público que o meio não atendeu às suas expectativas. Na abrangência do seu emprego, sensacionalista é confundido não só com qualificativos editoriais como audácia, irreverência, questionamento, mas também com imprecisão, erro na apuração, distorção, deturpação, editorial agressivo – que são acontecimentos isolados e que podem ocorrer dentro de um jornal informativo comum (ANGRIMANI, 1995, p. 14).

Pedroso (2001b) respalda-se no uso do que denomina “gramática do jornalismo sensacionalista”. A autora indica, ainda, que o sensacionalismo é uma forma de reconhecimento entre o jornal e as classes populares.

O efeito-sensacionalista é um processo de identificação e exacerbação do caráter singular dos acontecimentos através do destaque, acréscimo ou subtração de elementos linguísticos, visuais (sonoros) e ideológicos através da repetição de temáticas que contêm conceitos e valores que se referem à violência, à morte e à desigualdade social (PEDROSO, 2001b, p.14).

A autora considera que os efeitos dessa linguagem repetitiva têm o intuito de reforçar os estereótipos dos habitantes das áreas mais vulneráveis sem que as condições reais das misérias sociais geradoras da violência sejam abordadas. Pedroso (2001b) elenca alguns dos pressupostos utilizados nesse discurso, como a exploração do caráter singular e extraordinário dos acontecimentos sem contextualização; adequação ideológica às condições culturais, políticas e econômicas das classes populares; discurso repetitivo, motivador, despolitizador e avaliativo; exagero; variedade na apresentação gráfica; linguagem que valoriza a sedução e não a informação; exploração do extraordinário, entre outros.

Canavilhas (2011, p. 5) diz que “A espetacularização da notícia é consequência do domínio da observação sobre a explicação. A televisão procura prender o espectador, dando prioridade ao insólito, ao excepcional e ao chocante”. Para o autor, a informação-espetáculo se constrói a partir destes elementos: a seleção de dramas humanos; a dramatização, os efeitos visuais e, por fim, a reportagem “ao vivo”, que corresponde à cobertura na hora do acontecimento, tirando proveito da emoção do momento.

que na transmissão do saber162 (2009, p. 49). Essa linguagem que estimula respostas emocionais define, para Marinalva Barbosa (2005, p. 2), um “jornalismo de sensações”. “As sensações às quais nos referimos encontram-se na relação da leitura com o extraordinário, com o excepcional, aproximando esse tipo de notícia do inominável”. Além disso, a autora descreve que a narrativa é construída através da formação de mitos e figurações presentes no imaginário popular em representações arquetípicas. Destacamos, nesse aspecto, a descrição do programa Cidade Alerta no site da Rede Record, líder de audiência dos programas policialescos nacionais: “Com um jornalismo corajoso, o Cidade Alerta combina informação e emoção na hora de apresentar ao público as principais notícias do dia”163.

A cobertura dos crimes, fatos pitorescos, do improvável são as pautas referenciais para esses programas. Muniz Sodré (1992) relaciona os temas televisivos à chamada estética do grotesco. Para o autor, o grotesco é mostrado como a soma de vários elementos populares pitorescos e bizarros. Seria uma estética que choca pela diferença dos padrões de beleza clássicos constituídos. “O grotesco é o belo de cabeça para baixo, a catástrofe do gosto clássico” (SODRÉ, 1992, p.96).

Posteriormente, Sodré (2002) articulou o seu trabalho com Raquel Paiva, considerando que tais programas transferiram o ethos festivo da praça pública para a tevê.

Caracteriza-se desde o início por uma atmosfera sensorial de “praça pública”, no sentido trabalhado por Bakhtin, isto é, a praça como feira livre de expressões diversificadas da cultura popular (melodramas, festas do largo, danças, circo etc) ou como lugar de manifestação do espírito dos bairros da cidade, com suas pequenas alegrias e violências, grosseiros e ditos sarcásticos, onde a exibição de altos ícones da cultura nacional confronta-se com o que diz respeito ao vulgar ou “baixo”; os costumes e gostos, as vezes exasperados do populacho (PAIVA; SODRÉ, 2002, p.111).

Muito influenciados pela concepção de indústria cultural, Paiva e Sodré (2002) analisam a apropriação da transmissão da praça pública pelas tevês como o “encadeamento da cultura popular com a indústria cultural” (PAIVA; SODRÉ, 2002, p.111). Para eles, a televisão se apropria da espontaneidade popular164, transformando-a em produto industrial, a fim de captar

162 O autor defende o papel social que o jornalista cumpre como transmissor de um certo tipo de saber. “O jornalista

é o elo do conhecimento dos políticos, sociólogos, filósofos e dos cientistas com o cidadão. O jornalista está totalmente comprometido em fazer com que o público ache compreensível o acontecer. Para isso, deve procurar saber se o conhecimento que ele transmite pode ser compartilhado com seu público. O jornalista possui um papel social institucionalizado e legitimado na transmissão do saber cotidiano e age como tradutor do saber dos especialistas para o grande público” (ALSINA, 2009, p. 268-269).

163 Disponível em: http://comercial.recordtv.com.br/programacao-nacional/cidade-alerta/programa/. Acesso em: 01 ago. 2018.

164 Para Paiva e Sodré (2002, p. 111), a espontaneidade popular são “expressões simbólicas típicas da cultura

mais audiência.

As expressões simbólicas das classes economicamente subalternas, ao mesmo tempo em que vão perdendo o seu enraizamento dinâmico nos lugares diversificados da cidade, são retrabalhadas pelos diferentes dispositivos de comunicação massiva, em especial a televisão. E o programa de auditório é um bom modelo disso a que se tem chamado de popularesco (PAIVA; SODRÉ, 2002, p.111).

Os autores concordam que os programas de televisão se utilizam da ótica do grotesco como estratégia agressiva para conseguir audiência e testar seus limites.

O grotesco chocante permite encenar o povo e, ao mesmo tempo, mantê-lo à distância. Dão-se voz e imagem a energúmenos, ignorantes, ridículos, patéticos, violentados, disformes, aberrantes, para mostrar a crua realidade popular, sem que o choque daí advindo chegue às causas sociais, mas permaneça na superfície irrisória dos efeitos (SODRÉ, 1992, p.133).

Paiva e Sodré (2002) dizem que a exploração da miséria na televisão brasileira vem desde a década de 60 e exemplificam: “Silvio Santos, em Rainha por um Dia, promovia o desfile de miseráveis, que contavam suas penas. Cabia ao auditório escolher a história mais triste. A mais desgraçada, a mais infeliz, era eleita ‘rainha por um dia” (PAIVA; SODRÉ, 2002, p. 13).