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O caractere chinês não é um ideograma

Diferentemente das letras do alfabeto, os caracteres chineses, que são unidades de base desse sistema de escrita, são signos de silabas e não de fonemas. Compostos de elementos separados uns dos outros, os caracteres ou zi, são diferentes tanto da letra quanto da palavra. O termo ideograma deve ser evitado por causar muito mais confusões do que esclarecimentos, uma vez que estão carregados de uma ideologia e de ideias que não se aplicam ao caractere chinês. Desde a unificação da China na Dinastia Qin, no século III a.C., foi instituída uma escrita oficial que valeria para todo o império. Desde então diversas partes da China que falavam línguas diferentes, passaram a ter, obrigatoriamente, uma única escrita. Com isso seria possível ter acesso a textos, ofícios, prestações de contas, etc., em uma escrita que todos podiam ler, mesmo que falassem uma língua que seria incompreensível na fala. Desde então se viu povos que falavam línguas incompreensíveis entre si, mas com uma única escrita. Essa separação entre fala e escrita impressionou os europeus que vivenciavam a perda do lugar do latim como uma língua comum. O fato de encontrarem países de línguas diferentes se comunicando sem problemas através de uma mesma escrita fez com que imaginassem que se tratava de uma escrita com lógica e virtudes formais invejáveis. O século XVII viu alguns

167 filósofos europeus acreditarem que esta escrita diferente representava não palavras, mas coisa e noções, ou seja, ideias. Neste caso, o ideograma foi imaginado como não tendo qualquer relação fônica, independente de qualquer língua falada, sendo uma representação direta de coisas e ideias.

O fenômeno de uma escrita única para línguas diferentes se estende por diversos países da Ásia. A Coréia e o Japão, por exemplo, adotaram a escrita chinesa. Falando mais particularmente do Japão, se Lacan estivesse no século XVII estaria tentado não a questionar sobre o sujeito japonês, inanalisável por falar chinês na sua própria língua. Ele talvez pensasse como os demais que a questão não era em torno do que o sujeito faz com a língua e da operação que se coloca frente à distância entre o pensamento, ou, o inconsciente, e a fala (Lacan, 1972). O século XVII não pensou como Lacan, não formulou a questão que ele formulou diante do mesmo fenômeno – um japonês lendo chinês... em japonês. Eles preferiram, ou só puderam encontrar ali o próprio sonho do ideal de uma língua. A questão que o impasse entre escrita e fala que a China propiciou ao pensamento, não faz parceria com o ideal. Sua parceria deverá ser buscada em outro lugar. A questão que ela confere condições de possibilidade está mais próxima da década lacaniana de 1970 do que do século XVII (até hoje ainda?) de Leibniz.

O termo ideograma é muito mais o sintoma de um desejo de encontrar uma língua que pudesse dizer a coisa, ela mesma, do que uma indicação do que é a escrita chinesa. Daí muitos vieram dizer que se trata de uma língua escrita, ainda nessa suposição de que o ideograma seria um sistema autônomo em relação a uma língua falada, que não tivesse nenhuma relação com os sons da fala. A língua chinesa oferece elementos para pensar uma diferença e até uma separação entre fala e escrita, tanto que Lacan recorreu a ela de modo particular. Mas seria uma inflação do sentido encontrar nela uma língua escrita totalmente separada de uma língua falada. Essa visão que, infelizmente, ainda é encontrada em larga medida, são efeitos de um pensamento de data do século XVII e parece encontrar motivos para se manter em atividade. Esse ponto de vista a respeito da escrita chinesa, pautada na crença em um ideograma, compromete diretamente a compreensão da pertinência do mesmo no ensino de Lacan. De posse de uma visão de que o ideograma é uma grafia das coisas e das ideias coloca-o também do campo da representação, de símbolos, quem sabe até de arquétipos. O desvio seria difícil de conter.

168 A escrita chinesa não representa as ideias e as coisas, muito menos diretamente; ela é uma língua glotográfica, ou seja, ela representa ou simboliza as unidades de uma determinada língua falada, no caso a chinesa97, com suas sutilezas e particularidades. Não artigos em chinês, nem definidos nem indefinidos. O caractere 河significa rio, lê- se he. Porém, se dizemos um rio, o rio, os rios, a grafia sempre será 河sem variação de singular ou plural, sem um artigo definido nem indefinido. Não há uma correspondência de estrutura entre essas duas línguas. Os verbos também não flexionam. Podemos muito bem dizer o verbo vir, que se diz lai e se escreve 来. Mas se dissermos, viremos, viermos, vinha, veio, virá, virão e assim por diante, o chinês ainda dirá lai e escreverá 来. Do mesmo modo, não há o verbo ser, tão essencial na maioria das línguas. Com isso, digo que não é uma língua nem uma escrita construídas com fins lógicos e universais, ela não transcreve os elementos presentes em diversas línguas. Elas respondem às condições dos povos que as sustentam.

O ideograma é menos ainda um desenho. Não é possível atribuir a ele a função de um rébus ou de uma pintura, se ele porta uma imagem ela é menos significativa do que a imaginação a convida a ser. O apoio que Lacan encontrou no rébus e na figuração para esboçar sua noção de letra e da própria escrita chinesa, se limitarão aos pontos que já discutimos em outro capítulo. Em momentos posteriores, o apoio que Lacan encontrará no caractere chinês, e na escrita chinesa, será em outro tom. A página foi virada, da esquerda para a direita.