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Ao falarmos de intriga ou enredo, remetemo-nos à situação dos personagens em determinadas sequências que constroem o desenvol- vimento e o desdobramento da narrativa. Falamos, também, que essa situação estava relacionada às características do espaço e do contexto narrado, às características físicas e psicológicas dos personagens que definiriam mais ou menos as formas e os destinos dos confrontos, cola- borando para o movimento da história.

A caracterização é o que define objetivamente as características, as qualidades que possam ter os personagens e os elementos da narrati- va em suas posições dentro da história. Entende-se como caracteriza- ção, portanto, o processo de cunho descritivo que tem como objetivo a atribuição de características distintivas aos elementos que compõem e integram o universo diegético em sua dinâmica própria e em relação a outros elementos diegéticos.

A caracterização não pode ser confundida com a identificação, que pode nomear um personagem a partir de um signo identificador como um nome ou apelido. A caracterização na verdade investe o personagem de uma série de traços, qualidades e características que são a matéria de descrição e que funcionalizam o jogo e o embate dos personagens no enredo da história. É comum encontrarmos um processo de descrição dos personagens, por exemplo, nos romances do séc. XIX, no início do relato, procedimento que, já de início, situa uma certa perspectiva parti- cular sobre os tipos e os papéis dos personagens que se relacionarão no desenvolvimento da intriga.

Se a identificação se diferencia da caracterização na qualidade da atribuição de sentido descritivo e da construção dos tipos (já vimos, na seção dedicada ao estudo do personagem, os personagens “tipo”), ela pode, contudo, participar como elemento importante no desenvol- vimento da caracterização psicológica do personagem. A caracterização física, para além da esfera psicológica, porém, contribui intensamen- te para a construção do tipo e da personalidade do personagem. Uma certa caracterização, por exemplo, do modo de se vestir, de falar ou de andar do personagem pode influenciar diretamente uma leitura de ca- ráter psicossocial, e não devemos esquecer que a caracterização de um personagem tem um peso decisivo na construção da intriga e em seu desenlace. Os teóricos da literatura costumam diferenciar duas modali- dades principais de caracterização: direta e indireta.

A caracterização direta pode ser reconhecida, por exemplo, nos ro- mances do escritor francês Honoré de Balzac.

Honoré de Balzac (1799 - 1850). Escritor francês da primeira metade do séc. XIX, é considerado o mestre incontestável do realismo literário francês. Sua obra - em particular A comédia humana - é caracterizada pela construção de uma representação minuciosa e “realista” da socie- dade de seu tempo. Obra monumental, composta de dezenas de volu- mes, constituindo um ciclo coerente com personagens fictícios e reais, ambicionava uma descrição quase exaustiva da sociedade francesa da primeira metade do séc. XIX. Em célebres palavras da época, essa obra procuraria “concorrer com o estado civil”. Seus principais romances são: Le Père Goriot, Le Colonel Chabert, Eugénie Grandet e La comé-

die humaine. A obra de Balzac está disponível em domínio público a

partir do Projeto Gutenberg, um projeto internacional de digitaliza- ção de obras literárias. Vocês podem acessar a página em português do Projeto Gutenberg no endereço: http://www.gutenberg.org/wiki/ PT_Principal.

Tempo, espaço, ação e caracterização

Capítulo

02

Outro exemplo de caracterização direta encontra-se em textos do escritor espanhol Benito Pérez Galdós. A caracterização direta consiste numa descrição estática e objetiva dos atributos do personagem que, normalmente, apresenta-se num trecho dedicado exclusivamente a essa finalidade. Vejam o exemplo de caracterização direta no seguinte trecho extraído do romance de Benito Pérez Galdós, El doctor centeno. O tre- cho selecionado é o primeiro parágrafo do primeiro capítulo do roman- ce, intitulado “Introducción a la pedagogia”:

“Con paso decidido acomete el héroe la empinada cuesta del Observa- torio. Es, para decirlo pronto, un héroe chiquito, paliducho, mal dotado de carnes y peor de vestido con que cubrirlas; tan insignificante, que ningún transeúntes, de estos que llamamos personas, puede creer, al verle, que es de heroico linaje y de casta de inmortales, aunque no está destinado a arrojar un nombre más en el enorme y ya sofocante inven- tario de las celebridades humanas. Porque hay ciertamente héroes más o menos talludos que, mirados con los ojos que sirven para ver las cosas usuales, se confunden con la primer mosca que pasa o con el silencioso, común o incoloro insectillo que no molesta a nadie, ni siquiera merece que el buscador de alimañas lo coja para engalanar su colección ento- mológica... Es un héroe más oscuro que las histórias de sucesos que aún no se han derivado de la fermentación de los humanos propósitos; más inédito que las sabidurías de una Academia, cuyos cuarenta señores an- dan a gatas todavía, con el dedo en la boca, y cuyos sillones no han sido arrancados aún al tronco duro de las caobas americanas.”

E, logo adiante, o narrador continua:

Há também um importante grupo internacional de pesquisa do ciclo balzaquinano chamado La comédie humaine. Na página da Internet a seguir, vocês poderão ter acesso à obra original e aos textos críticos desenvolvidos pelos pesquisadores: http://www.v1.paris.fr/musees/ balzac/furne/presentation.htm Vocês podem consultar também o en- dereço: http://www.epdlp.com/escritor.php?id=1432

Benito Pérez Galdós foi um escritor espanhol nascido em 1843 em Las Palmas de Gran Canaria e falecido em 1920 em Madrid. Vocês podem ter acesso à biografia em espanhol e às obras de Benito Pérez Galdós no endereço: http://es.wikisource.org/ wiki/Benito_P%C3%A9rez_ Gald%C3%B3s

Vocês podem ler esta bela narrativa de Galdós acessan- do o endereço: http://www.cervantesvirtual. com/servlet/SirveObras/ 124749697223659 40098435/p0000001. htm#I_1_

“Es un señor como de trece o catorce años, en cuyo rostro la miseria y la salud, la abstinencia y el apetito, la risa y el llanto han confundido de tal modo sus diversas marcas y cifras, que no se sabe a cuál de estos dueños pertenece. La nariz es de éstas que llaman socráticas, la boca no pequeña, los ojos tirando a grandes, el conjunto de las facciones poco limpio, revelando escasas comodidades domésticas y ausencia comple- ta de platos y manteles para comer; las manos son duras y ásperas como piedra. Ostenta chaqueta rota y ventilada por mil partes, coturno sin suela, calzón a la borgoñona todo lleno de cuchilladas, y sobre la cabeza greñosa, morrión o cimera sin forma, que es el más lastimoso desperdi- cio de sombrero que ha visto en sus tenderetes el Rastro.”

A execução da descrição das características físicas e psicológicas, do contexto sociocultural e moral ao qual o personagem pertence pode caber ao próprio personagem, o que representará uma autocaracteriza- ção. Esse é o caso do personagem de Memórias do subsolo, a admirável narrativa de Fiodor Dostoievski.

Fiodor M. Dostoievski nasceu em Moscou, a 11 de novembro de 1821. Estudou em um internato e, depois, em São Petersburgo, estudou engenharia numa escola militar. Sua primeira produção literária, aos 23 anos, foi uma tradução de Balzac (Eugénie Gran-

det). No ano seguinte, escreveu seu primeiro romance, Os pobres,

que foi bem recebido. Com os escritores e críticos que conheceu, tomou contato com os ideais revolucionários. Juntou-se aos socia- listas, o que lhe acarretou uma condenação a trabalhos forçados na Sibéria. Essas experiências foram registradas em Memórias da casa

dos mortos (1862). Voltou a São Petersburgo em 1859 e nos vinte

anos seguintes escreveu seis longos romances, entre os quais suas obras-primas: Crime e castigo (1866), O idiota (1869) e Os irmãos

Karamazov (1879). Morreu em São Petersburgo, a 9 de fevereiro de

1881 (Disponível em: <http://www.duplipensar.net/artigos/2005- -Q1/memorias-do-subsolo-dostoievski.html>).

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Capítulo

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Fiodor Dostoievski (1821 – 1881)

Vejamos um trecho do primeiro parágrafo do primeiro capítulo de Memorias del subsuelo:

“Soy un enfermo. Soy un malvado. Soy un hombre desagradable. Creo que padezco del hígado. Pero no sé absolutamente nada de mi enfer- medad. Ni siquiera puedo decir con certeza dónde me duele. Ni me cuido ni me he cuidado nunca, pese a la consideración que me inspiran la medicina y los médicos. Además, soy extremadamente supersticio- so... lo suficiente para sentir respeto por la medicina. (Soy um hombre instruido. Podría, pues, no ser supersticioso. Pero lo soy.) Si no me cuido, es, evidentemente, por pura maldad. Ustedes seguramente no lo com- prenderán; yo sí que lo comprendo. Claro que no puedo explicarles a quién hago daño al obrar con tanta maldad. Sé muy bien que no se lo hago a los médicos al no permitir que me cuiden. Me perjudico sólo a mí mismo; lo comprendo mejor que nadie. Por eso sé que si no me cuido es por maldad. Estoy enfermo del hígado. ¡Me alegro! Y si me pongo peor, me alegraré más todavía. Hace ya mucho tiempo que vivo así; veinte años poco más o menos. Ahora tengo cuarenta. He sido funcionario, pero dimití. Fui funcionario odioso. Era grosero y me complacía serlo. Ésta era mi compensación, ya que no tomaba propinas. (Esta broma no tiene ninguna gracia pero no la suprimiré. La he escrito creyendo que resultaría ingeniosa, y no la quiero tachar, porque evidencia mi deseo de zaherir.) Cuando alguien se acercaba a mi mesa en demanda de alguna información, yo rechinaba los dientes y sentía una voluptuosidad inde- cible si conseguía mortificarlo. Lo lograba casi siempre. Eran, por regla

general, personas tímidas, timoratas. ¡Pedigüeños al fin y al cabo! Pero también había a veces entre ellos hombres presuntuosos, fanfarrones. Yo detestaba especialmente a cierto oficial. Él no quería someterse, e iba arrastrando su gran sable de una manera odiosa. Durante un año y medio luché contra él y su sable, y finalmente salí victorioso; dejó de fanfarronear. Esto ocurría en la época de mi juventud. “

(Vocês poderão ter acesso ao livro eletrônico no endereço:

http://www.pucrs.campus2.br/~csouza/ebooks/literatura/dostoievski/ MemoriasSubsuelo.PDF)

Alguns autores chamam a atenção sobre o fato de que uma descri- ção do tipo de autocaracterização tende, às vezes, a uma atitude positiva ou de minimização de culpas, defeitos ou qualquer outra característica considerada “negativa”, algo que, como vimos, não acontece com o per- sonagem de Dostoievski, que também é o narrador do texto.

Já uma descrição de tipo heterocaracterizadora oferece uma atitude mais crítica em relação aos traços ou ao tipo do personagem. Ela tem lu- gar quando a descrição é executada por uma outra entidade da narrativa como o narrador ou um personagem se referindo a outro personagem. Pode acontecer que um personagem se autocaracterize e, no mesmo relato, outro personagem ou o narrador o caracterizem de modo dife- rente. Sempre é importante observar tais diferenças apreciativas sobre o mesmo personagem porque elas acarretam mudanças de sentidos e falam sobre a importância do papel que o personagem em questão joga na história.

A caracterização indireta, por sua vez, é aquela que se encontra disseminada ao longo do texto de modo disperso e, portanto, é mais dinâmica e, às vezes, mais complexa e exige maior atenção do leitor. Dispersa ao longo da história, sem a marca de uma posição mais homo- gênea no interior do discurso, a caracterização indireta se faz a partir de uma espécie de fragmentação da perspectiva descritiva. A partir do jogo amplo dessas descrições, pode-se inferir aos poucos um conjunto

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Capítulo

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de características significativas do ponto de vista social, moral, cultu- ral, psicológico e ideológico em que se desempenham os personagens a partir do movimento da intriga. Gestos, marcas pessoais como tiques e falas específicas que se reiteram, podem marcar os personagens de for- ma redundante, mas com grande efeito caracteriológico.

No que concerne ao âmbito da narração e do discurso desta decor- rente, a caracterização é condicionada não só ao tipo do narrador, mas também ao personagem que, em um dado momento, assume a voz nar-

Para entendermos melhor, vamos sair por uns instantes da narrati- va literária e pensar em personagens cômicos que todos conhece- mos dos programas humorísticos. Podemos verificar um elemento de caracterização que iria um pouco além dos processos normal- mente caracterizadores dos personagens. É o caso do “bordão” cô- mico, ou seja, a expressão ou frase repetida por um personagem ou apresentador para obter um efeito cômico ou emocional. Em quase todas as cenas - e para visualizarmos suas atuações, lembre- mos, por exemplo, dos personagens de Chico Anísio - cada per- sonagem cômico é investido por um complexo caracteriológico de indumentária e tipo físico, psicológico e contextual específico de seu papel. Esse contexto tipológico específico de cada “quadro” cômico é funcionalizado pelo “bordão”, que marca como uma es- pécie de síntese -além das características temáticas do personagem - também a sequência do enredo e o desfecho da cena. Com a cena humorística, é necessário lembrar que ela é sempre investida de uma hiperbolização ou exageração das características dos persona- gens, ou seja, de um exagero e de uma hipertrofia burlesca, prin- cipalmente quando se tratam temas socioculturais que podem ser abordados do ponto de vista da descrição dos “tabus” e dos vícios ou posturas moralmente condenáveis da sociedade.

rativa. Quando a caracterização é exercida por um narrador heterodie- gético, ela se apresenta com um certo distanciamento. A caracterização também poderá ser desenvolvida por um narrador autodiegético e/ou homodiegético que, diferentemente do narrador heterodiegético, onis- ciente, ao caracterizarem um personagem tendem a influir no próprio enredo da história. Na Unidade III, estudaremos os tipos de narradores homodiegético, autodiegético e heterodiegético, e vocês poderão enten- der melhor o problema da caracterização quando esta se dá na voz de um narrador e não de um personagem.

Resumo

No Capítulo II, estudamos que o Tempo da História é a sucessão crono- lógica dos eventos narrados datáveis com maior ou menor rigor. Tam- bém observamos que o Tempo Psicológico é o tempo que passa pela ex- periência subjetiva dos personagens. Também estudamos o conceito de

Espaço entendido não somente como o lugar onde se passa a ação, mas

também como os ambientes sociais, psicológicos, morais e culturais que fazem parte da narrativa. Estudamos que a importância da Ação é uma herança da narrativa tradicional, estruturada normalmente em torno das ações do protagonista em busca da solução para algum problema. No entanto, observamos que certas narrativas do século XX minimiza- ram muitas vezes radicalmente a importância das ações dos persona- gens. E, finalmente, estudamos a Caracterização como o processo de cunho descritivo que tem como objetivo a atribuição de características distintivas aos elementos que compõem e integram o universo diegético em sua dinâmica própria e em relação a outros elementos diegéticos.

Unidade

II

Tempo do discurso e perspectiva narrativa

Capítulo

03

Tempo do discurso e perspectiva

narrativa

Neste Capítulo, veremos como o Tempo do Discurso difere do tempo da história e como a perspectiva narrativa é fundamental para a constituição de um modo específico de construção do relato. Nesse sentido, o tempo do discurso será o tempo próprio não ao desenrolar da história e dos fatos narrados, mas vinculado à estrutura e à materialidade linguística do pro- cesso narrativo. A Perspectiva Narrativa, por sua vez, estará vinculada estritamente ao tempo do discurso no sentido em que se vale desse mesmo processo verbal estruturado pelo discurso.

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