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O Império Médio (c. 2040-1650 a. C.) é considerado um período de unidade política e cultural após o período conturbado do Primeiro Período Intermediário (c. 2260- 2040 a. C.). O Egipto foi reunificado na XI dinastia pelo faraó Mentuhotep II (c. 2040- 1991 a. C.), terminando o Império Médio com a XIII dinastia (c. 1783-1650 a. C.)89. Amenemhat I, fundador da XII dinastia, terá estabelecido uma nova capital, Ititaui, na região do Faium, onde muita da construção real se terá concentrado, tendo-se estabelecido como uma capital essencialmente administrativa, enquanto Mênfis conservou a sua importância central90. A estável XII dinastia (c. 1991-1783 a. C.), caracterizada pela continuidade política, provavelmente facilitada pela prática de co-regências91, constitui o núcleo desta era de centralização e prosperidade económica, como é possível perceber pela acentuada actividade de construção de monumentos, que contrasta veementemente com a escassez de edificações reais do Primeiro Período Intermediário92.

Amenemhat I e os seus sucessores escolheram regressar à simbólica e impactante pirâmide como monumento mortuário, erguendo elaborados complexos em Licht, Lahun, Hauara, Dahchur e Abido93; contudo, nenhum destes túmulos continha inscrições e os templos para o elaborado culto funerário real que foram construídos perto destas pirâmides não sobreviveram em boas condições94. Foi dada também grande atenção à construção e ornamentação de templos ao longo do Nilo, nomeadamente em Heliópolis e Karnak, assim como a um programa de fortificação no Sul95, aliado a várias campanhas militares na Núbia96.

89 Datas usadas de acordo com Baines e Malek 1980. 90 Baines e Malek 1980, 40; Bard 1999, 51.

91 Bard 1999, 51; Araújo 2011, 104. 92 Araújo 2011, 107-109. 93 Bard 1999, 539-540; Bard 2007, 169. 94 Pinch 2002, 12; Araújo 2011, 104. 95 Richards 2005, 2-4 ; Ferreira 2016. 96 Baines e Malek 1980, 40.

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A par da construção real, desenvolveram-se substancialmente, a partir do Primeiro Período Intermediário, as necrópoles privadas. Na VI dinastia surge um novo «modelo» de sarcófago que se dissemina rapidamente por todo o país: no lado este são pintados ou gravados dois olhos udjat; as inscrições registadas em ambos os lados do sarcófago e numa linha na tampa tornam-se comuns, sobretudo em sarcófagos de madeira97. São as fórmulas do «Livro de proclamar justa qualquer pessoa na necrópole» ou Textos dos Sarcófagos, tal como ficaram conhecidos, dado que era esse o seu suporte privilegiado98. Estas inscrições começam por ser pintadas nos sarcófagos de oficiais e seus subordinados, mas também em paredes de túmulos, máscaras de múmias, estelas, vasos de vísceras e papiros. Os mais antigos exemplos de Textos dos Sarcófagos podem ser encontrados na necrópole de Balat, no oásis de Kharga, e as principais fontes são os locais de enterramento dos nomarcas da XII dinastia que se espraiam pelas Duas Terras, mas que se concentram na região do Médio Egipto, particularmente em Beni Hassan, Assiut, Licht, Meir e, acima de tudo, Bercha, o cemitério de Hermópolis, onde é possível encontrar quase em exclusivo o Livro dos Dois Caminhos99. Apesar de característicos do Império Médio, alguns registos de Textos dos Sarcófagos podem ser encontrados posteriormente em túmulos das XXV ou XXVI dinastias, por exemplo100.

Embora se tenha convencionado, sobretudo a partir da obra de Adriaan de Buck, que estas fórmulas constituem um novo corpus, alguns Textos das Pirâmides são ainda integrados. Consequentemente, Bernard Mathieu reflecte sobre a legitimidade da distinção entre Textos das Pirâmides e Textos dos Sarcófagos, com base nos cinco critérios habitualmente convocados: 1) delimitação textual: difícil de definir, dado que as

97 Grajetzki 2003, 35.

98 Franco 1993, 160.

99 Sobretudo dos sarcófagos de El-Bercha, mas versões abreviadas são também conhecidas de Kom el-Hisn

e Beni Hasan. O Livro dos Dois Caminhos é uma das primeiras composições que integram os chamados guias para o Além, que forneciam ao morto a informação necessária para o guiar no seu destino, sendo uma evidência de que no Império Médio a tradição textual funerária compreende um auge de desenvolvimento sem precedentes que dará lugar a novas formas de literatura do Além. Este livro integra o corpus dos Textos

dos Sarcófagos e é o exemplo mais antigo de uma cosmografia do Além, faltando-lhe ainda, por esse

motivo, a organização clara dos Livros do Além mais tardios, como os de Amduat, das Portas, das Cavernas, etc. Encontra-se inscrito quase exclusivamente no fundo de sarcófagos da região de Bercha com datações próximas no Império Médio. Tanto o cabeçalho como a inscrição «tudo o que está no fim do livro (mDAt)» quanto o cólofon, onde se lê «é o seu fim com dobrada satisfação», dão indicações acerca da unidade da obra e do material nela incluído e consolidam a sua designação de livro. Este encontra-se preservado em dois planos básicos – um mais longo e outro mais curto – que têm em comum as secções III-V, mas que diferem no restante. Estas secções comuns representam o plano dos dois caminhos e dão-lhe o nome moderno. Veja-se Lesko (1971, 31), Hornung (1999, 11) e Lesko (1972).

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fontes são conhecidas de forma muito incompleta e também pela natureza mutável, adaptável e actualizável do seu uso pelos antigos Egípcios101; 2) natureza dos suportes de escrita: nem sempre imediata, visto que às pirâmides e aos sarcófagos se juntam outros objectos funerários onde se encontram fórmulas inscritas, sendo ainda de considerar o eventual papel do papiro enquanto suporte material de cariz arquivístico, desde os tempos mais remotos102; 3) cronologia redaccional: não é absolutamente certo que a composição dos Textos das Pirâmides não remonte a uma época anterior ao Império Antigo, ainda que só surja nas paredes das pirâmides reais desse período. Também a composição dos Textos dos Sarcófagos, reconhecidamente faseada, poderá ter tido um início anterior ao Primeiro Período Intermediário103; 4) conteúdo semântico: é questionável que a distinção de colofones (inexistentes nos Textos das Pirâmides) e a categorização das fórmulas (fórmulas de oferendas, de ressurreição, entre outras) sejam critérios absolutamente válidos, assim como a ideia de que os Textos dos Sarcófagos terão sido alimentados por tradições locais104; 5) identificação dos beneficiários: pertinência da teoria do privilégio real e da «democratização» do Além105.

Conclui Mathieu que os critérios de distinção definidos podem não ser realmente discriminantes, pois o estado actual dos nossos conhecimentos é, ele próprio, uma incógnita. Nada nos garante que, em certos casos, alguns dos textos que classificámos como Textos dos Sarcófagos não sejam, efectivamente, fórmulas dos Textos das Pirâmides para nós perdidas106. Admite, porém, que, sendo possível encontrar neles disparidades suficientes para os considerar corpora diferentes, é necessário sopesar os critérios de diferenciação e a sua validação.

Devemos recordar que as fontes são conhecidas de forma bastante incompleta e desfrutam de uma natureza aberta porque os próprios Egípcios, longe de as considerarem imutáveis e definitivas, não cessaram jamais de as trabalhar, de as adaptar, de as transpor, de as actualizar. Existem cerca de 1185 fórmulas na divisão de Adriaan de Buck107; algumas dispõem de várias atestações enquanto outras podem ser encontradas apenas num local. Encontram-se escritas em egípcio hieroglífico médio clássico, apesar de

101 Mathieu 2004, 248. 102 Mathieu 2004, 250-252. 103 Mathieu 2004, 253-254. 104 Mathieu 2004, 254-256. 105 Mathieu 2004, 256-258. 106 Mathieu 2004, 259. 107 De Buck 1935-1961.

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remeterem propositadamente para o egípcio antigo, e apresentam idiossincrasias regionais pouco significativas108. Muitos dos textos inscritos em sarcófagos do Império Médio continuam por publicar, nomeadamente os de Licht, necrópole da capital da XII dinastia109.

Dado que de Buck não reproduziu na sua edição as passagens dos Textos das Pirâmides incluídas nos sarcófagos do Império Médio, Mathieu convoca o argumento de Assmann, advogando este que, devido a esta omissão, a edição dá uma impressão deturpada do volume e da repetição da literatura funerária, pelo que apresenta, por conseguinte, uma visão orientada, restrita, expurgada, que arrisca influenciar as nossas análises110.

Além disso, não há locais de enterramento intocados de funcionários da corte das XI e XII dinastias (nem túmulos reais). Há, contudo, muitos túmulos de funcionários de categoria média que servem de amostra para os costumes funerários da elite, nos quais os únicos textos fundamentais no programa decorativo, que surgem com regularidade, são os Textos dos Sarcófagos111.

Considera-se geralmente que, após as perturbações do Primeiro Período Intermediário, e com a erosão da autoridade central, os textos religiosos para protecção do rei foram sendo, desde as XI e XII dinastias, apropriados, desenvolvidos e adaptados por particulares para decoração dos seus sarcófagos de madeira com o intuito de garantir uma sobrevivência eterna no Além semelhante à do rei. Sintomático desta adaptação será o facto de o defunto passar a ser maioritariamente referenciado na primeira pessoa do singular112. Estes textos reutilizados e revistos que constituem os Textos dos Sarcófagos113 inscrever-se-iam num fenómeno tradicionalmente visto como tendo levado à «democratização» do Além, tema de grande debate em Egiptologia.

O facto de os Textos das Pirâmides terem sido, aparentemente, concebidos como um privilégio real exclusivo pode ter confluído numa visão do Além impenetrável para

108 Hornung 1999, 8-9.

109John Allen oferece uma síntese global dos sarcófagos de Licht não incluídos na colectânea de de Buck,

categorizando tipos e apresentando os textos (incluindo a sua disposição no sarcófago), que são sobretudo variantes, mas também algumas fórmulas que não se encontram na colectânea (Allen 1996). Outros sarcófagos já editados, mas não incluídos na edição de Adriaan de Buck, são os de Karf-Ammar (Petrie e Mackay 1915), Haraga (Engelbach e Gunn 1923), Sedment (Koefoed-Petersen 1951); Fattah e Bickel (2000, 1-36), Khachaba (Lapp 1985) e Kom al-Hisn (Silverman 1988, 129-141).

110 Mathieu 2004, 248-249. 111 Grajetzki 2003, 47. 112 Assmann 2001, 323. 113 Spencer 1982, 140-141.

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os outros indivíduos que não poderiam aspirar a mais do que uma continuação semelhante à sua existência terrena, enquanto o rei teria como destino a reunião com os deuses. Nas concepções mais antigas, esta reunião seria possibilitada pela sua transformação em estrela circumpolar, símbolo de permanência, mas cedo, nos Textos das Pirâmides, se juntaram à versão estelar referências à versão solar, estando ambas muitas vezes interligadas e presentes numa mesma fórmula114.

A aceitação por parte dos Egípcios de que o rei ou um deus poderia identificar-se com várias entidades simultaneamente poderá ter facilitado esta sobreposição, assim como a gradativamente mais relevante identificação do rei morto com Osíris: o rei morto era considerado um Osíris, assim como o monarca reinante era uma corporização de Hórus. É esta identificação do morto com Osíris que não permaneceu como privilégio da realeza nos períodos subsequentes, quando as inscrições reais funerárias foram exploradas por indivíduos privados115. É possível que no Império Antigo houvesse a convicção de que apenas o rei, à semelhança dos deuses, tivesse um ba que deixava o corpo após a morte e ascendia aos céus para se juntar aos outros deuses. Após o colapso do Império Antigo, a ideia de que cada indivíduo tinha um ba que atravessava o limiar do outro mundo ter-se-á universalizado116.

Tal como nos Textos das Pirâmides, encontramos nos Textos dos Sarcófagos fórmulas de protecção, fórmulas relativas a rituais funerários e fórmulas «pessoais» para uso do morto117. De acordo com Hornung, temas dos Textos das Pirâmides tais como as bases materiais para a existência no Além, protecção contra inimigos e perigos vários, o acesso ao ciclo solar e algumas fórmulas de transformação permaneceram importantes enquanto outros são adicionados, como a possibilidade de reunião com os entes queridos118, o monstro Apep e os «guias do outro mundo». Outros são ainda intensificados, como o julgamento, Osíris e o seu domínio e o imaginário de criação119.

Apesar de os vestígios indicarem que as novas fórmulas começaram apenas a ser registadas em túmulos não reais e sarcófagos durante o Império Médio, não é de descartar totalmente a possibilidade de indivíduos particulares terem já usado sAxw, 114 Spencer 1982, 140. 115 Spencer 1982, 141. 116 Assmann 1986, 145. 117 Taylor 2001, 194-195. 118 TS141; TS1446; TS146. 119 Hornung 1999, 10-11.

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«glorificações», no Império Antigo, sobretudo sakhu com origem no próprio corpus dos Textos das Pirâmides. De facto, pelo final do Império Antigo, as sakhu – enunciações rituais que tornam possível a transformação do morto em akh ou espírito glorificado que partilha no Além os privilégios dos deuses120 –, assim como outras fórmulas de natureza similar, começam a ser registadas em sarcófagos não reais.

É discutível se a transferência de inscrições funerárias das paredes das câmaras das pirâmides para o interior dos sarcófagos é indicador da quebra do monopólio real sobre este tipo de texto ocorrida durante o Primeiro Período Intermediário. O próprio Mathieu avança a hipótese de que Textos das Pirâmides e Textos dos Sarcófagos terão sido transmitidos em papiro e de que os primeiros teriam tido origem ainda no Período Dinástico inicial, estando os Textos dos Sarcófagos em composição contínua desde a VI dinastia até, pelo menos, ao período heracleopolitano. Efectivamente, a maior distribuição e disseminação deste género de textos entre particulares parece ter sido trazida pelo desenvolvimento da escrita de textos religiosos em papiro, que se verificou no Império Novo121, com os Livro dos Mortos, ou seja, a mudança pode ter ocorrido muito mais pela diversificação dos suportes de escrita do que por uma mudança de paradigma da crença. Ainda que também seja verdade que neste mesmo período de maior disseminação dos Livro dos Mortos se desenvolveram os Livros do Além teoricamente de prerrogativa real.

Em última instância, não sabemos sequer que textos funerários eram usados pelos reis do Império Médio, não sendo necessariamente os mesmos que eram usados pelos particulares122. Os seus túmulos e templos funerários não nos chegaram intactos, levando consigo as palavras de eternidade. É certo que os grandes dignitários, governadores e seus altos funcionários, utilizam passagens das antigas palavras dos túmulos reais que mesclam com tradições locais e outras preocupações, mas é verdade também que no Império Novo os túmulos reais ostentam já nas suas paredes novas composições exclusivas, os livros do Além, pelo que é de considerar que o Império Médio terá sido palco da elaboração destas novas composições123. Se estas novas elaborações se

120 Assmann 2001, 323.

121 Spencer 1982, 142. 122 Taylor 2001, 195. 123 Franco 1993, 95-96.

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reflectiam já numa distinção entre literatura funerária real e literatura funerária privada, é difícil de responder.

Apesar de partilharem muitas das suas características, não existe uma clara evolução linear dos Textos das Pirâmides para os Textos dos Sarcófagos. Mark Smith sugere mesmo que não existe nenhuma evidência indesmentível que suporte a ideia generalizada de que qualquer inovação no domínio das práticas e crenças no Além venha de fonte real124. É possível que o contrário também pudesse ter acontecido, ou seja, que o rei tenha adoptado, cristalizado e epitomizado práticas que corriam como crença generalizada125, pelo que, no que concerne às diferenças entre privilégios reais e não reais, os registos podem não implicar apenas matéria de crença, mas também matéria de prática126.

Adensa-se a questão se tomarmos em conta que a mudança política não implica necessariamente uma mudança religiosa, na medida em que há padrões que transcendem o enquadramento das divisões políticas. Tanto mais que o significado mais fundamental destes textos não é essencialmente político ou sociológico, mesmo que só estivessem ao alcance de uma elite restrita: os critérios de exclusão dos indivíduos da vida eterna não se definem em função do seu estatuto político-social (faraó em detrimento de mortais ou elite administrativa em detrimento de camponeses), mas em função da capacitação do morto127 a nível mágico-ritual, como procuraremos desenvolver ao longo da nossa tese.

Aliás, se julgarmos pelo número de excertos de Textos das Pirâmides que passaram quase inalterados para os Textos dos Sarcófagos, temos de reconhecer que a atribuição a particulares de concepções funerárias pretensamente reservadas ao rei não levantou para os letrados Egípcios assinalável dificuldade, ou seja, dificilmente se pode advogar uma diferença de natureza entre os dois corpora do ponto de vista da «sociologia funerária», dado que os mesmos textos podiam ser aplicados aos reis e aos particulares. Em última instância, esta observação pode conduzir ao reexaminar da teoria tradicional que supõe que a «democratização» ou «demotização» das concepções funerárias estariam

124 Smith 2009, 11.

125 Smith 2009, 12.

126 Smith 2009, 2-4. Terá sido o que aconteceu com as estatuetas funerárias (chauabtis), primeiro de uso

generalizado entre os funcionários e só depois pelos faraós (iniciando com Ahmés) (Araújo 2003b).

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ligadas ao declínio progressivo do poder monárquico durante o Primeiro Período Intermediário128.

Bernard Mathieu vai mais longe ao propor que a relação entre a extensão do pretenso «privilégio» e o enfraquecimento da monarquia é altamente questionável e que a presença dos textos nas pirâmides dos reis, e depois nas pirâmides das rainhas, não significaria forçosamente uma finalidade exclusiva em proveito do rei e da rainha, pois, ainda que os particulares do Império Antigo não possuíssem os textos funerários nas suas sepulturas, tal não significa que eles não beneficiariam de um destino glorioso no Além. A elite era enterrada nas imediações do complexo funerário real e, em grande medida, o seu destino identificava-se e dependia já do destino do próprio rei129. A verdade é que a pirâmide continua a ser um exclusivo real, mas tal pode não significar de imediato um exclusivo de «privilégio», sob o pretexto de que os particulares não tinham textos gravados nesse suporte material.

Se esta noção de «democratização» do Além pode implicar a interpretação de que os privados não dependem já do rei para assegurar a vida eterna, pode ser argumentado, ao arrepio, que, ao derivarem dos Textos das Pirâmides, os novos textos vêm enfatizar o papel que o faraó desempenhava nos rituais funerários, tornando-se a principal referência para os privados130, que com ele agora se identificam mais plenamente. Ainda que a raiz da literatura funerária desde os Textos das Pirâmides, mas sobretudo a partir dos Textos dos Sarcófagos, se alicerce em termos míticos no ciclo osiríaco e no ciclo solar, as visões do Além encontram-se muito relacionadas com a imagem do rei e decorrem, em última instância, da instituição política e da teologia da realeza divina, mesmo durante e após o Primeiro Período Intermediário, com o fim do exclusivo real no uso da literatura funerária para acesso ao Além e com a abertura a novas interpretações mais abrangentes em termos de critérios para inclusão do morto no Além131.

Cremos, em última análise, que a questão da «democratização» do Além e da gradativa independentização dos privados em relação ao rei para assegurar a vida eterna é verificável não tanto no domínio da conceptualização mítico-religiosa dos textos funerários, mas na possibilidade de os privados chamarem a si a iniciativa da construção

128 Mathieu 2004, 256.

129 Mathieu 2004, 257.

130 Shaw e Nicholson 1995, s.v. «funerary texts», 121. 131 Assmann 2005, 390-391.

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do seu túmulo, que não depende já essencialmente de favor real, nem tem de se localizar necessariamente nas imediações do túmulo do rei. Em última análise, a questão não se situa essencialmente no problema do acesso ao Além que se generaliza (implicando que estava vedado a outros que não o rei anteriormente), mas na mudança e adaptação de práticas e crenças para a obtenção da imortalidade132.

John Baines advoga um modelo de transmissão nos monumentos funerários e sua composição que se baseia na ideia de que os textos funerários que adornavam o equipamento usado durante o ritual funerário e os objectos que rodeavam em proximidade a múmia real (por exemplo, sarcófagos, vasos de vísceras, papiros) foram mais tarde transferidos das paredes, como cópias ou substitutos133. Este modelo poderia explicar por que motivo as câmaras funerárias dos faraós do Império Médio aparecem desprovidas de decoração, considerando que a prática de colocar textos funerários em redor e no interior dos sarcófagos, verificada nos particulares com os Textos dos Sarcófagos, poderia ter sido adoptada igualmente no domínio real134.

Todavia, não é na discussão dos motivos do alargamento do uso de textos funerários aos sarcófagos de particulares que nos queremos centrar. Porque as diferenças entre textos de diferentes períodos parecem relacionar-se, a um nível básico, com

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